Os 150 anos de Segismundo Freud
Terceiro e último artigo de Gustavo Corção dedicado a Freud e ao freudismo. Graças à Permanência.
O pessimismo de Freud
Referi-me, em artigo anterior, ao pessimismo intelectual, inerente ao analismo e à hipertrofia da investigação das causas materiais, que levava Freud a ver o mundo psíquico como um mecanismo de disfarces e de ilusionismos. Na extensão de sua concepção construiríamos uma metafísica em que o ser, em vez de ser objeto adequado à inteligência, é o enganador, o despistador. Teríamos uma espécie de deslealdade metafísica do ser, e um novo transcendental de perfídia. Daí não é de admirar que o genial investigador, de tanto considerar os fenômenos, tenha perdido a lucidez de ver as naturezas; e por isso não saiba mais distinguir a anormalidade da normalidade. Tratando das aberrações sexuais, eis o que conclui Freud: “Somos levados, diante dessa freqüência da perversão, a admitir que a disposição para a perversidade não é rara e excepcional, mas é parte integrante da constituição normal”. (Introduction à la Psychanalyse, p.424).
A primeira coisa que choca nesse trecho é a impropriedade dos termos. Se ele conclui que tais ou quais fenômenos, pela freqüência com que ocorrem, devem ser considerados normais, como se explica que ainda os chamem de perversões? A segunda coisa que produz espanto é o conceito que esse médico tem da normalidade. Normal, na sua definição, é aquilo que ocorre freqüentemente. Então, se houver uma epidemia que atinja a quase totalidade de uma população, os médicos poderão ficar em casa descansando, porque todos estão normais. Ou deverão talvez procurar os poucos não atingidos pela peste normalizadora para providenciar o enquadramento deles na norma fornecida pelas estatísticas. Já abordei esse problema, há tempo, a propósito de certos sociólogos que, seguindo as lições de Durkeim (Les Régles de la Methode Sociologique), definiam como normal aquilo que mais freqüentemente ocorre. Há erros filosóficos que se explicam pela sutileza dos elementos postos em equação; mas este é tão grosseiro, tão prodigiosamente estúpido que só se explica por uma colossal obliteração da inteligência, ou por uma espécie de fatalidade que leva os homens mais inteligentes a pagar um tributo à burrice universal. Disse atrás que esses analisadores, atentos demais aos fenômenos, não vêem as naturezas. O conceito de normalidade é correlato ao de natureza. Só posso saber, de uma coisa, que está em condições normais quando sei o que ela é. As essências entretanto não se concretizam, não existem em estado puro. Inseridas nas outras existências, sujeitas aos choques, às interseções, elas nos aparecem machucadas, feridas, amassadas. Na medida que sofrem esses acidentes que lhes subtraem alguma perfeição devida à sua natureza, as coisas se afastam da normalidade. A anormalidade é, portanto, definida pela presença de um mal físico ou moral que desfalca uma perfeição exigida por natureza. No compacto universo criado, a anormalidade pode ser muito mais freqüente do que a normalidade. Há mais automóveis arranhados do que ilesos; há mais dentaduras incompletas que perfeitas. E assim, não será por via estatística que poderemos decidir a questão. Nem sempre o cientista está habilitado a se pronunciar sobre a normalidade em que se acha uma coisa, porque nem sempre sabe defini-la, ou nem sempre vê a sua essência. Num caso desses pode lançar mão do que os filósofos chamam “abstração total”, e que consiste na consulta da coleção de coisas da mesma espécie; para ter uma descrição mediana que toma provisoriamente o lugar da definição. Mas tem a obrigação de saber que não pode generalizar esse critério. Na maioria dos casos não podemos dizer que a estatura de um homem é anormal, a não ser por uma comparação com o valor médio. Mas é evidente que o médico, diante de uma apendicite supurada ou de um câncer, não seguirá esse mesmo critério. Como também eu sei que devo procurar um lanterneiro ainda que todos os sociólogos da escola de Durkeim me provem que o automóvel-médio no Rio de Janeiro tem um ou dois pára-lamas amassados.
Se eu me convencesse de que é impossível conhecer uma natureza para poder formar juízo do estado em que tal natureza se concretiza, então, por amor à propriedade do termo e à lógica, eu deixaria de usar as expressões “normal” e “anormal”, substituindo-as por “encontradiço” e “raro”. E, se fosse médico, fecharia o consultório.
É triste ter de repetir coisas tão óbvias. Mas o mundo é assim, cheio de anormalidades. No caso de Freud, dirão que não se pode incriminar o psiquiatra por suas deficiências filosóficas. É exato. Talvez seja mais justo incriminar os filósofos que possuíam a melhor tradição, os mais sólidos critérios, a mais gloriosa herança intelectual, e que, por uma terrível mediocridade, não conseguiram dar o tom à cultura contemporânea. Há, entretanto, um mínimo de bom senso e de saúde de espírito que podemos reclamar em qualquer cientista, e que falta de um modo impressionante em Sigmund Freud.
Atrás daquele erro filosófico, e daquela impropriedade de termos, escondem-se complexos de um radical e profundo pessimismo. Freud pertence a uma família espiritual que traz na alma um certo rancor do ser, um pessimismo infeccioso que vê o mal nas essências, ou que, por fim, já não vê o mal onde ele existe. Se tudo é perversão, alegremo-nos com riso amarelo, e cantemos o cântico novo que anuncia a extinção da secular e incômoda diferença entre o bem e o mal, entre o mórbido e o saudável, entre o reto e o torto. Neurotics, be glad! Amanhã ou depois, pela generalização crescente, será a vez de se alegrarem os homossexuais. E desde já podem aprontar o foguetório de ingresso na normalidade os peculatários, os aproveitadores do poder, os funcionários que ganham pelo que não fazem, porque o padrão de comportamento deles, pela freqüência, está se tornando “parte integrante da constituição normal” de nosso país.
("Diário de Notícias", 3 de junho de 1956)
Referi-me, em artigo anterior, ao pessimismo intelectual, inerente ao analismo e à hipertrofia da investigação das causas materiais, que levava Freud a ver o mundo psíquico como um mecanismo de disfarces e de ilusionismos. Na extensão de sua concepção construiríamos uma metafísica em que o ser, em vez de ser objeto adequado à inteligência, é o enganador, o despistador. Teríamos uma espécie de deslealdade metafísica do ser, e um novo transcendental de perfídia. Daí não é de admirar que o genial investigador, de tanto considerar os fenômenos, tenha perdido a lucidez de ver as naturezas; e por isso não saiba mais distinguir a anormalidade da normalidade. Tratando das aberrações sexuais, eis o que conclui Freud: “Somos levados, diante dessa freqüência da perversão, a admitir que a disposição para a perversidade não é rara e excepcional, mas é parte integrante da constituição normal”. (Introduction à la Psychanalyse, p.424).
A primeira coisa que choca nesse trecho é a impropriedade dos termos. Se ele conclui que tais ou quais fenômenos, pela freqüência com que ocorrem, devem ser considerados normais, como se explica que ainda os chamem de perversões? A segunda coisa que produz espanto é o conceito que esse médico tem da normalidade. Normal, na sua definição, é aquilo que ocorre freqüentemente. Então, se houver uma epidemia que atinja a quase totalidade de uma população, os médicos poderão ficar em casa descansando, porque todos estão normais. Ou deverão talvez procurar os poucos não atingidos pela peste normalizadora para providenciar o enquadramento deles na norma fornecida pelas estatísticas. Já abordei esse problema, há tempo, a propósito de certos sociólogos que, seguindo as lições de Durkeim (Les Régles de la Methode Sociologique), definiam como normal aquilo que mais freqüentemente ocorre. Há erros filosóficos que se explicam pela sutileza dos elementos postos em equação; mas este é tão grosseiro, tão prodigiosamente estúpido que só se explica por uma colossal obliteração da inteligência, ou por uma espécie de fatalidade que leva os homens mais inteligentes a pagar um tributo à burrice universal. Disse atrás que esses analisadores, atentos demais aos fenômenos, não vêem as naturezas. O conceito de normalidade é correlato ao de natureza. Só posso saber, de uma coisa, que está em condições normais quando sei o que ela é. As essências entretanto não se concretizam, não existem em estado puro. Inseridas nas outras existências, sujeitas aos choques, às interseções, elas nos aparecem machucadas, feridas, amassadas. Na medida que sofrem esses acidentes que lhes subtraem alguma perfeição devida à sua natureza, as coisas se afastam da normalidade. A anormalidade é, portanto, definida pela presença de um mal físico ou moral que desfalca uma perfeição exigida por natureza. No compacto universo criado, a anormalidade pode ser muito mais freqüente do que a normalidade. Há mais automóveis arranhados do que ilesos; há mais dentaduras incompletas que perfeitas. E assim, não será por via estatística que poderemos decidir a questão. Nem sempre o cientista está habilitado a se pronunciar sobre a normalidade em que se acha uma coisa, porque nem sempre sabe defini-la, ou nem sempre vê a sua essência. Num caso desses pode lançar mão do que os filósofos chamam “abstração total”, e que consiste na consulta da coleção de coisas da mesma espécie; para ter uma descrição mediana que toma provisoriamente o lugar da definição. Mas tem a obrigação de saber que não pode generalizar esse critério. Na maioria dos casos não podemos dizer que a estatura de um homem é anormal, a não ser por uma comparação com o valor médio. Mas é evidente que o médico, diante de uma apendicite supurada ou de um câncer, não seguirá esse mesmo critério. Como também eu sei que devo procurar um lanterneiro ainda que todos os sociólogos da escola de Durkeim me provem que o automóvel-médio no Rio de Janeiro tem um ou dois pára-lamas amassados.
Se eu me convencesse de que é impossível conhecer uma natureza para poder formar juízo do estado em que tal natureza se concretiza, então, por amor à propriedade do termo e à lógica, eu deixaria de usar as expressões “normal” e “anormal”, substituindo-as por “encontradiço” e “raro”. E, se fosse médico, fecharia o consultório.
É triste ter de repetir coisas tão óbvias. Mas o mundo é assim, cheio de anormalidades. No caso de Freud, dirão que não se pode incriminar o psiquiatra por suas deficiências filosóficas. É exato. Talvez seja mais justo incriminar os filósofos que possuíam a melhor tradição, os mais sólidos critérios, a mais gloriosa herança intelectual, e que, por uma terrível mediocridade, não conseguiram dar o tom à cultura contemporânea. Há, entretanto, um mínimo de bom senso e de saúde de espírito que podemos reclamar em qualquer cientista, e que falta de um modo impressionante em Sigmund Freud.
Atrás daquele erro filosófico, e daquela impropriedade de termos, escondem-se complexos de um radical e profundo pessimismo. Freud pertence a uma família espiritual que traz na alma um certo rancor do ser, um pessimismo infeccioso que vê o mal nas essências, ou que, por fim, já não vê o mal onde ele existe. Se tudo é perversão, alegremo-nos com riso amarelo, e cantemos o cântico novo que anuncia a extinção da secular e incômoda diferença entre o bem e o mal, entre o mórbido e o saudável, entre o reto e o torto. Neurotics, be glad! Amanhã ou depois, pela generalização crescente, será a vez de se alegrarem os homossexuais. E desde já podem aprontar o foguetório de ingresso na normalidade os peculatários, os aproveitadores do poder, os funcionários que ganham pelo que não fazem, porque o padrão de comportamento deles, pela freqüência, está se tornando “parte integrante da constituição normal” de nosso país.
("Diário de Notícias", 3 de junho de 1956)
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