sábado, agosto 12, 2006

Reflexões sobre o Iraque

Para que se veja como era fácil analisar os acontecimentos relacionados com o Iraque, repito a publicação do que aqui publiquei no primeiro dia de Setembro de 2003. Como se pode ver, há três anos já eu escrevia sobre muito do que só agora chegou às canetas de ilustrissimos comentadores. Não creio que isso prove a minha presciência, ou algum prodígio de inteligência (embora provavelmente demonstre a escassez desses dons nos tais comentadores).
Repito as minhas "reflexões sobre o Iraque" (caramba, o que eu já deixei escrito, para aí arrecadado nos arquivos deste blogue!), para que sejam lidas à luz da hora que passa.

Reflexões sobre o Iraque
I
Embora com alguma distância sobre os factos, resolvi também eu escrever uns breves apontamentos sobre o Iraque. Eis o primeiro.
Em muito pouco tempo, a embaixada da Jordânia no Iraque, as instalações da ONU na mesma capital, e a multidão de xiitas reunidos à volta de Al Hakim em Najaf, foram severamente atingidos por atentados que implicaram a mobilização de meios humanos e materiais consideráveis.
Em resultado disso ficou comprometida a presença no país da representação diplomática do único país vizinho com condições para falar com todos os grupos étnicos e religiosos e da única organização com a potencialidade de reorganizar uma administração nacional em alternativa ao poder fáctico do ocupante americano.
E foi lançado poderoso combustível para a fogueira já dificilmente controlável das rivalidades religiosas, étnicas e regionais, tornando risíveis as metas temporais em tempos anunciadas quanto à reorganização da administração, ou para a transição de poderes, ou a realização de eleições gerais.
Os autores destes atentados escolheram estes alvos sem qualquer critério? Ou pelo contrário a escolha obedeceu a critérios e finalidades predeterminados?
Porque não escolheram alvos aparentemente mais apetecíveis, como comandos, quartéis ou centros de poder da potência invasora?
A escolha resultou apenas da circunstância de estes alvos concretos estarem deficientemente protegidos?
Nesse caso porque estariam estes deficientemente protegidos, enquanto outros estão aparentemente seguros?
Tinha ou não havido alertas dos serviços de informação sobre a existência dessas ameaças iminentes, como chegou a divulgar-se na imprensa?
Se houve, como se explica que tais alertas tenham sido ignorados, para mais estando em causa as personalidades de que se tratava?
São perplexidades que dão que pensar.
II
Observando as acções violentas ocorridas no Iraque desde que se consumou a ocupação americana, parece-me ser possível distinguir claramente dois tipos de actuação bem diferenciados.
Temos por um lado um conjunto de acções com características de guerrilha larvar, levadas a cabo por pequenos grupos com grande mobilidade e utilização de armamento ligeiro, que parecem ter como objectivo o desgaste das forças militares ocupantes provocando regularmente baixas, através de emboscadas e ataques rápidos, do tipo bate e foge, de modo a causar a desmoralização e a insegurança permanente nos efectivos em presença.
A esta actuação aplica-se a designação já usada pelos militares, de guerra de baixa intensidade. E o seu alvo tem sido exclusivamente o pessoal militar do contingente americano-britânico, ou forças locais ao serviço deste.
A par disso, temos os atentados contra a embaixada da Jordânia, as instalações da ONU e a mesquita de Najaf. Qualquer dos três acontecimentos seguiu um padrão de actuação semelhante, e inteiramente diferente do anteriormente referido. Tratou-se em primeiro lugar de acções usando meios caracterizados por grande poder de destruição, utilizados de forma a maximizar o impacto em termos de danos materiais e perdas humanas – com o inerente efeito psicológico.
E ressalta à vista que os alvos foram outros: em qualquer dos casos (Jordânia, ONU e linha xiita protagonizada por Al Hakim) trata-se de actores que ou por via diplomática ou por via política representavam uma alternativa ao velho regime iraquiano mas também à continuidade da administração americana.
A ideia que me fica, em face do modo de actuação, dos meios usados, dos objectivos visados, é que os responsáveis últimos de um e outro dos tipos de acção descritos não podem ser os mesmos.
Se os estrategas da actuação referida em primeiro lugar poderão ter em vista uma mobilização das forças da nação iraquiana (se é que ela existe, o que sinceramente não sei) contra o estrangeiro ocupante, os estrategas da segunda não podem ignorar que as suas acções queimam de imediato qualquer alternativa a essa ocupação, abrindo mesmo caminho à intensificação dela – e ao mesmo tempo destroem as perspectivas de vivência conjunta entre as diversas comunidades que compõem o Iraque, elevando ao rubro todas as divisões e tensões. E com isso, portanto, o resultado prático da segunda estratégia traduz-se em destruir os próprios pressupostos da actuação da primeira.
Os cérebros por detrás de uma e outra das linhas de actuação descritas não são os mesmos.
III
Um aspecto relevante do abundante noticiário, e conexos comentários, sobre os acontecimentos no Oriente Médio é a simplicidade redutora com que são generalizadamente etiquetados os actores em presença. E evidentemente que o simplismo da arrumação, em matéria de tal complexidade, dificulta seriamente a compreensão dos factos.
Veja-se o caso do “fundamentalismo islâmico”, deste modo sempre apresentado como uma realidade única. É sabido que o fundamentalismo, por sua natureza sectário, tende à divisão e não à reunião de forças; assim acontece também entre os muçulmanos, em que um fundamentalismo alimenta outro fundamentalismo, despoletando tensões incontroláveis – e sempre foi assim, como pode confirmar quem ainda que superficialmente conheça a história.
Quero eu dizer que, mesmo descontando escolas e correntes religiosas menores, o mundo islâmico tem assistido nas últimas duas ou três décadas a um recrudescer de dois “fundamentalismos islâmicos” já milenares, absolutamente antagónicos e irreconciliáveis, pois que se dirigem um contra o outro: o fundamentalismo de raiz sunita e o fundamentalismo de raiz xiita.
Essa oposição é essencial para compreender os acontecimentos na região do Iraque, e também no Irão, na Síria, no Líbano, no Paquistão, no Afeganistão – e, na rectaguarda, também na Arábia Saudita.
E tudo indica que esse factor seja do maior relevo para a explicação dos acontecimentos recentes, actuais e próximos futuros no Iraque e na sua zona de influência.
A reanimação desses ódios religiosos pode garantir a quem os incentiva, mexendo nos bastidores os cordelinhos certos, a eliminação por muitos anos da possibilidade de falar de um “mundo árabe” como uma realidade política capaz de constituir qualquer frente comum (e muito menos de um “mundo islâmico”, realidade ainda muito mais exigente).
IV
Confusão ainda mais grosseira e deturpadora tem sido a já corrente identificação de Saddam Hussein e dos seus com o tal “fundamentalismo islâmico”.
Com efeito, e na origem (o baasismo nasce na década de quarenta em Damasco, e o seu principal fundador e teorizador foi Michel Aflaq, cristão sírio) se algum fundamentalismo caracterizava o partido Baas e o seu regime era um fundamentalismo laico. Desde o início, na Síria e no Iraque, o laicismo e o pan-arabismo eram traços identificadores da ideologia baasista – o que determinou até posteriormente o seu alinhamento internacional duradouro pelos partidos integrados na Internacional Socialista.
Com a implantação do regime Baasista no Iraque, e mesmo durante muito tempo já com Saddam Hussein, o partido dedicou-se a destruir completamente as hierarquias religiosas, eliminar a sua influência, e modernizar, ou seja laicizar, a sociedade iraquiana. Isto explica que ainda agora a sociedade iraquiana fosse a mais aberta e tolerante, de entre os países islâmicos da zona, relativamente, por exemplo, ao papel da mulher e à situação das minorias, como os cristãos. Repare-se que o primeiro ministro era um cristão, Tarek Aziz, coisa impensável em qualquer outro país árabe, tirando o caso especial do Líbano.
Essa política garantiu o ódio, compreensível, de todos os fundamentalismos islâmicos já aludidos: o regime sempre foi caracterizado por eles como infiel, e os apelos à guerra santa contra esse regime repetiram-se sem interrupção durante o último quarto de século. Tal atitude tanto partia da hierarquia xiita, duramente reprimida, como dos activistas religiosos sunitas.
Recordo a este propósito não só a permanente guerra do regime contra o xiismo mas também as conhecidas, embora agora esquecidas por comodidade de análise, incompatibilidades com o activismo sunita: mesmo já no decurso da invasão americana todas as posições divulgadas pela Al Qaeda a respeito dos acontecimentos apelavam aos iraquianos para se unirem contra os invasores e também para derrubarem o regime infiel.
A irredutível inimizade entre o regime de Saddam e o fundamentalismo islâmico não era aliás desconhecida por Washington, que a utilizou para os seus interesses quando alimentou a sangrenta guerra lançada contra o recém-nascido Irão revolucionário. Saddam só veio aliás a adoptar uma retórica religiosa, postando-se então em protector de um islamismo sunita renovado, com nova hierarquia de sua criação, quando a ruptura das suas relações privilegiadas com a América e a ameaça daí resultante lhe veio impor novas estratégias e novas solidariedades.
Os fiéis do baasismo e de Saddam que ainda subsistam estão agora unidos na acção com os fundamentalistas religiosos, como parece depreender-se do noticiário espalhado pelas agências? Parece duvidoso. O contencioso é por demais inultrapassável. Tem mortos a mais. Se assim acontecer pontualmente, será uma daquelas alianças em que cada um dos lados vive a esperar o momento adequado para decapitar o provisório aliado.
V
Grande parte da opinião publicada sobre os acontecimentos que levaram à ocupação do Iraque tem defendido que a causa determinante das decisões americanas está no objectivo de lançar mão das reservas iraquianas de petróleo, de modo a garantir o controle dessas reservas estratégicas. Essa seria a explicação para a guerra, e do que se lhe seguiu.
Não compartilho as conclusões assim expostas. Em primeiro lugar, e tendo em conta tudo o que hoje é público e notório, parece-me indubitável que a guerra, até ao desmantelamento total do regime, estava realmente decidida, e foi planeada e preparada, com larga antecedência sobre o lançamento das operações militares.
Nisso estou de acordo – a condução dos acontecimentos por parte da administração americana e o desenrolar da própria ofensiva militar, como ressalta dos meios envolvidos, não deixa dúvidas quanto a esse ponto. E nem me parece que os actuais responsáveis americanos continuem seriamente a negar esse facto.
Temos pois como facto certo que a campanha de opinião que antecedeu em alguns meses o início da invasão propriamente dita não passou efectivamente de guerra psicológica, de preparação das opiniões públicas, de procura de pretextos e justificações – numa palavra, de sucessivas cortinas de fumo para dar cobertura ao plano em marcha.
Concretamente no que respeita à polémica sobre armas de destruição em massa, obviamente que se pode dizer que se tratou de monumental embuste – com os sofisticados meios de informação que possuem os responsáveis políticos em causa sabiam perfeitamente o que os iraquianos tinham e não tinham.
E atrevo-me a dizer que agiram com a absoluta certeza da inexistência dos perigos (químicos, biológicos, nucleares) que agitavam – caso contrário usariam de muito maior prudência nas suas decisões, como fazem em relação à Coreia do Norte.
Mas chegado a esse ponto encontro a minha discordância. Na verdade, a guerra até ao desmantelamento completo do regime iraquiano estava decidida e não dependia das “armas de desaparição massiva”, ou das resoluções das Nações Unidas, ou de quejandos assuntos que, como é notório por outros casos, não interessam muito os governantes americanos.
Todavia, não foi o petróleo que determinou essa decisão; se fosse essa a força motriz dos acontecimentos a guerra teria sido evitada. Os responsáveis do regime de Bagdad estavam dispostos a tudo para impedir o desencadear do conflito armado cujo fim não ignoravam. E o tudo incluía oferecer aos americanos o controle total sobre as reservas petrolíferas iraquianas, se fosse esse o preço da permanência no poder.
A sobrevivência era já o único objectivo. E, como reconhecerá quem esteve atento ao noticiário imediatamente anterior ao desencadear das hostilidades, esta transacção foi efectivamente oferecida a Bush. Que logo a rejeitou, declarando, com verdade, que nada tinha a negociar com o governo de Bagdad.
Ora fosse o petróleo a razão da guerra alguém duvida que a transacção teria sido consumada? O modelo americano não é, um pouco por todo o lado, aquele que daí resultaria?
Se o que se pretendia era pôr a mão no petróleo, uma vez garantido isso para quê fazer a guerra? Que interessava aos americanos que Saddam fosse um tirano assassino se este lhes garantisse o que queriam? Quantos tiranos assassinos não mantiveram e mantêm eles mundo fora, desde que os seus interesses estejam assegurados?
A decisão de desmantelar pela força o regime que vigorava no Iraque teve portanto outra razão e outras finalidades, que não o petróleo. Embora, naturalmente, e agora que lá estão, essa preocupação também não tenha sido descurada.
VI
Quem observe o Iraque no momento presente, creio que concordará com a conclusão de que, tirando o comando militar das forças de ocupação, nenhum centro de poder existe que abranja todo o país. E mais: nenhum centro de poder se apresenta de momento com a viabilidade de estender a sua efectiva jurisdição a todo o país.
Esta conclusão, que já se perfilava como verdadeira antes dos sangrentos acontecimentos que visaram a embaixada da Jordânia, a sede da ONU e a liderança xiita de Najaf, muito mais evidente se tornou após essas ocorrências. De tal modo é assim que apetece dizer que tais atentados tiveram em vista exactamente cortar em definitivo com qualquer perspectiva de solução unitária para o Iraque.
Temos assim a desenhar-se no horizonte uma situação de inviabilidade de qualquer poder interno unificador. E desse modo ou se caminha para uma administração unitária americana, indefinidamente prolongada, o que a meu ver representará a prazo uma situação que a América não estará disposta a suportar, ou acabará por se aceitar uma partilha de facto que, se bem observarmos, já é descortinável.
Passariam por essa evolução a existir na prática três estados independentes uns dos outros, um a Norte governado pelos partidos curdos, um na faixa central dominado pelas autoridades sunitas e outro mais a Sul, destinado aos xiitas. Como é evidente, nenhum desses pequenos estados, com ou sem protectorado expresso dos americanos, terá condições para fazer sombra ou rivalizar com o poder de qualquer dos estados vizinhos.
Torna-se neste ponto inevitável recordar que este objectivo de divisão do Iraque em três pequenos estados étnicos, como saberão os mais atentos, já vinha a ser defendida como objectivo estratégico de fundo desde anos antes do conflito americano-iraquiano, como sendo uma etapa necessária da recomposição do equilíbrio de poderes no Médio Oriente e dessa forma uma via para abrir caminho para a solução almejada no interminável conflito israelo-palestiniano.
Aqui se me afigura estar a chave certa para a compreensão dos acontecimentos, nomeadamente as raízes das determinações americanas. O regime iraquiano era mesmo para ser varrido, ainda que não exista qualquer plano coerente e viável para o substituir e ainda que os poderes emergentes com a sua queda tragam perigos nada negligenciáveis – porque a isso obrigava o objectivo radical de alteração dos equilíbrios de forças na região, se for preciso mesmo com a modificação do mapa político da zona, e em todo o caso com a mudança dos poderes políticos instalados nos principais países islâmicos da área.
VII
Se os acontecimentos avançarem no sentido da efectiva partição do Iraque, nomeadamente com a instauração de um estado curdo independente a Norte, incrementado pelos serviços secretos israelitas e pelos seus aliados curdos, será interessante ficar a ver como reagem os americanos. Com efeito, esse rumo das coisas deixa-os a braços com sérios problemas que terão de enfrentar sozinhos – e com a desajuda dos seus mais íntimos aliados.
Esses problemas serão evidentemente no espaço territorial correspondente ao Iraque, mas serão também e sobretudo no relacionamento sempre delicado com o importante aliado turco. Recorde-se que a aliança com a Turquia tem sido mantida (e com sérias dificuldades por parte dos governantes desta) a troco de promessas que para os turcos não são negociáveis, por corresponderem a interesses essenciais e permanentes do país. A primeira dessas promessas consiste precisamente na garantia de que não será permitido um estado independente curdo no flanco sul da Turquia.
Quebrada essa promessa, como será possível dominar a situação na Turquia? Com efeito, o segundo compromisso americano traduz-se em assegurar à Turquia que, para além de a manter como sua protegida na NATO, e para além dos grossos financiamentos, tudo seria feito para a sua plena integração na União Europeia. Ora esta promessa apresenta-se quase irrealizável, apesar de todas as vontades internas em fazer a vontade ao amigo americano – efectivamente, não parece provável que a União Europeia sobrevivesse a tal imposição.
Mas, enfrentando os americanos os previsíveis sarilhos com a Turquia, e as dificuldades daí decorrentes com a Europa, a somar às dificuldades experimentadas no vespeiro iraquiano restante, e aos acrescidos problemas no mundo árabe e islâmico (pense-se na inimizade com a Síria e o Irão, evidentemente sem solução enquanto estes viverem a pensar que podem ser “o próximo”), e aos impasses políticos em outros pontos estratégicos, como são o Paquistão e o Afeganistão, como irá evoluir a sua sensibilidade para a problemática global em jogo?
Tudo depende da efectiva solidez do poder da comunidade judaica americana. Mas há razões para pensar que este nosso tempo poderá trazer dilemas que virão a questionar até as ligações que mais inquestionáveis se apresentam. Não é certo que a grande América não venha um dia a sentir que também precisa das centenas de milhões de muçulmanos cuja amizade foi progressivamente alienando.