sábado, novembro 18, 2006

Neurodegenerativas

Lembrado pelas jornadas ibéricas da doença de Alzheimer, que decorreram nestes dias, entretive-me a tentar compreender o "diagnóstico diferencial" de Alzheimer/demência por corpos de Lewis/demência frontal. Manias. Talvez algum leitor entenda a minha curiosidade. Sabem os que sabem. A generalidade do público leitor, e mesmo profissionais de saúde, julgo que sente estranheza, talvez algum temor, ao evocar esse domínio. São ciências ocultas, ou ameaça difusa. Foge-se enquanto se pode. Muitas vezes concretiza-se, e é o diabo. Daria muito para conseguir dizer quanto sofrimento vai por aí, quase sempre escondido e calado. O que são os nossos doentes, a miséria que rói a alma, a impotência das famílias, dos "cuidadores". A desestruturação pessoal e familiar de uma dor que não é de um dia, porque é de todos os dias, durante anos e anos. Falar de mortes que duram anos...
Tenho para mim que o pior das nossas sociedades é o destino dos velhos e dos incapazes. E que a pedra de toque de uma sociedade verdadeiramente humana está no tratamento que for capaz de lhes dar. A dedicação, o afecto, o carinho e o respeito que formos capazes de assegurar aos que já não são capazes de nada é a marca da humanização. Nas sociedades animais eles seriam abandonados, ou eliminados.
E nas nossas? Creio mesmo que é na resposta a essa pergunta que temos que procurar as diferenças. Ou as semelhanças.
Na época que vivemos assiste-se a uma estranha solicitude e reverência para com as crianças. Desde as universais proclamações de direitos das crianças até à comum indignação perante os atentados que urgem. A preocupação em si não será certamente má, mas o fenómeno, e as dimensões do fenómeno, e algumas das suas manifestações mais estridentes e disparatadas, têm-me feito desconfiar. O que vejo muitas vezes nessa obsessão contemporânea parece-me ser medo; e se é medo, o impulso é ainda o egoísmo. Explicando melhor, quero eu dizer que por instinto e má consciência os homens de hoje olham para as crianças e pensam que elas serão os adultos de amanhã; e temem a sorte que esses adultos lhes reservarão, a eles que então serão velhos e indefesos. Não é pois bondade e altruísmo - é ainda cautela e calculismo a tal solicitude moderna pelos direitos das crianças. Tratar bem das crianças é ainda investimento interesseiro.
Com os velhos, ou simplesmente incapazes, não acontece nada assim. Eles estão condenados ao desaparecimento, não têm futuro para se vingar, não ameaçam nem se queixam. Nunca se queixam: os leitores ficariam chocados se eu descrevesse aqui a que extremos de abjecção são capazes de descer homens e mulheres iguais a nós. Há entre nós um número inacreditável de velhos que são maltratados, torturados, achincalhados. Pelos seus mais próximos, por pessoal sem escrúpulos dos depósitos horrendos onde são colocados para morrer, por gente impaciente que tem pressa de os ver desaparecer. Ninguém imagina o que filhos podem fazer aos pais, por pura maldade, por mesquinhez, pela cobiça de uma magra reforma ou de umas magras economias. E eles nunca se queixam!
Fico na minha. O que fizermos dos nossos velhos é que é a marca da nossa humanidade.

8 Comments:

At 10:30 da manhã, Blogger Flávio Santos said...

Dos velhos e das crianças. Mesmo sem lembrar os horripilantes casos de pedofilia que têm vindo a lume, existem muitas escolas onde os petizes são maltratados, apanham, passam fome, sofrem castigos desumanos.
Numa época em que os pais são-no cada vez menos jovens, assiste-se a uma revalorização do papel dos avós, que têm (se a saúde o permitir) disponibilidade para dar assistência aos netos e fazem parte integrante do seu processo de crescimento e aprendizagem.
Crueldade para com os velhos e as crianças sempre houve e sempre haverá. Não vejo como é que podemos destrinçar as duas situações em termos de avaliação da desumanidade de uma sociedade concreta, são ambas o reflexo do grau daquela.

 
At 12:04 da tarde, Blogger Manuel said...

Eu sei o que quis dizer. Falta-me certamente o talento para o dizer.

 
At 3:48 da tarde, Blogger �ltimo reduto said...

Não creio que tenha faltado ao Manuel o talento para dizer. Creio, isso sim, que há assuntos e situações que é necessário viver de perto, mesmo que superficialmente, para que se possa "apanhar a ideia". Recordo-me bem da incredulidade de muitos conhecidos quando se lhes declinava o convite para uma saída, em vista do que havia que cuidar em casa. Quase todos pensavam de imediato nesses tais depósitos onde é suposto para o mundo moderno colocar os que à primeira vista só atrapalham. E os que elogiavam o esforço por regra declaravam-se incapazes de seguir o exemplo. Acho que é egoísmo.

 
At 10:31 da tarde, Blogger Manuel said...

Pois. As crianças são adoráveis, são uma alegria, uma ternura, é fácil gostar.
Tratar das feridas de um acamado, lavá-lo e tornar a lavá-lo quando se suja, mudá-lo de posição várias vezes por noite, mudar as fraldas a quem já não nos reconhece, nem nunca mais reconhecerá, alimentá-lo e hidratá-lo pelo tubo, não esquecer de verificar a algália.... e repetir tudo até à exaustão sabendo que não haverá nenhum final que não seja o irremediável, isso tem certamente menos graça.

 
At 10:47 da tarde, Blogger �ltimo reduto said...

Tive a oportunidade de conviver quase diariamente com tudo o que refere durante quatro anos - ainda hoje a palavra "escara" me faz alguma confusão. Felizmente que num dos casos que vivi a ausência de reconhecimento durou apenas uma pequena parte desses anos, mas que fosse só um mês e já era obra. Saí da experiência com a convicção profunda de que não muita gente capaz de tratar de tudo isso em casa, e nem sequer é pela apregoada falta de tempo ou pelo muito trabalho, que isso toca a quase todos.

 
At 6:23 da tarde, Blogger Nuno Adão said...

O manuel está, se me permite, cada vez mais lúcido.
Um filósofo, de nome JAL, já dizia o mesmo que o manuel. Enquanto não se ensinar a piedade filial, jamais haverá respeito por uns, e pelos outros.

Cumprimentos de Thoth

 
At 6:23 da tarde, Blogger Nuno Adão said...

O manuel está, se me permite, cada vez mais lúcido.
Um filósofo, de nome JAL, já dizia o mesmo que o manuel. Enquanto não se ensinar a piedade filial, jamais haverá respeito por uns, e pelos outros.

Cumprimentos de Thoth

 
At 12:02 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Num çérto lugar tinham por costume,levar para a montanha os vélhos para morrerem.Chegou o dia em que um jovem seguia o costume,levou o pai mas chegando a montanha teve pena e deixou um cobertor para que o vélho homem se cobri-se.O qual respondeu..léva contigo para que o teu filho to deixe!!Ofilho ouvindo éssas palavras e compreendendo o sentido,voltou com o pai para casa..Gostei do teu post.Parabens

 

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