quarta-feira, novembro 15, 2006

O rei da Ericeira

Embora de meu natural nada propenso a entusiasmos e perfeitamente protegido contra delírios messiânicos (duramente fustigados por JM), confesso um fascínio antigo pela problemática sebastianista.
Há-de conceder até o impiedoso crítico, como concederam mesmo os autores críticos que mencionou com benevolência, que se trata de fenomenologia relevante para o traçar de uma psicografia desse mistério que é o ser português (digo mistério sem recear o látego; nesse ponto tenho que acompanhar as inquietações de alguns dos criticados, porque me parece realmente subsistir mistério na coisa).
Ora dessa minha velha fascinação resultaram algumas peregrinações (para além da atracção por anacronismos, gosto de andar por caminhos onde ninguém mais anda).
Em tempos, para bem exemplificar, ocupei-me a percorrer os passos do Rei da Ericeira, levado em parte pela curiosidade da descoberta de uma estória magnífica (sim, pesei o adjectivo, ou lá o que seja segundo a nova terminologia, e acho mesmo que tem ingredientes que o justifiquem; provavelmente não para fazer boa política, mas que chegue para fazer boa literatura e já lhe devemos atenção).
A outra parte do interesse deveu-se ao gosto pela Ericeira, e Mafra, e por mil e um pomenores e pormaiores que sempre me prenderam na região.
Agora, num momento de descompressão, e por impulso de curiosidade, deu-me para introduzir no Google para busca a expressão Rei da Ericeira. Para ver o que havia.
Experiência traumática!
Comecei por encontrar um "Guia do Concelho" onde se explica que a origem do nome da Ericeira, comprovável até por um velho brasão da vila, se relaciona não com o ouriço do mar mas sim com o "ouriço caixeiro". Como esta designação vem repetida, não parece ser lapso de escrita. É mesmo "caixeiro" o ouriço. Acho bem: se fosse "cacheiro" parecia que trabalhava nalgum jornal, onde a vida são cachas, sendo "caixeiro" deve trabalhar nalgum banco, agora, ou, como o brasão é antigo, devia trabalhar no Grandella. Em todo o caso, trata-se de um ouriço de caixa.
A seguir no mesmo texto lança-se mão da autoridade de Manuel Gandra para atirar o bicho até uns cultos fenícios. Sinceramente, sou mais indulgente do que JM e acho o Gandra uma figura deveras pitoresca e inofensiva, com algum talento de ficcionista e razoável imaginação. Num tempo de cinzentões, é um personagem colorido. O que quer mais o JM?
Continuando, a referência ao Rei da Ericeira: diz-se que em 1593 "um jovem ermitão da Capela de S. Julião, a sul da Ericeira, faz-se passar por D. Sebastião, o rei vencido em Alcácer Quibir, coroa a mulher como rainha, distribui benesses e castigos e concede títulos de nobreza. Acaba na guilhotina e os seus apoiantes nas galés." O quadro é revisteiro, e o final tão feliz como a caixa do ouriço. Na guilhotina!!
A segunda referência que se encontra na pesquisa é ao livro de Alberto Pimentel e Marcelino Mesquita com o mesmo título.
A terceira referência vem do Oeste Diário e surge a propósito da igrejinha de São Julião ("Foi aqui ermitão um homem de nome Mateus Álvares que, pretendendo fazer-se passar por D. Sebastião, ficou conhecido como o Rei da Ericeira..."). A citação está certa, e louvamos a Carvoeira. Só na cronologia, um pouco abaixo, é que surge colada a esse facto a data de 1554, o que, convenhamos...
Prontos, sabe-se como a nova pedagogia da História é hostil a preocupações cronológicas. Adiante.
A resposta seguinte à nossa pesquisa apareceu do sítio da Câmara Municipal de Mafra, na parte dedicada à Freguesia da Carvoeira. Também para falar da Ermida de São Julião, escreve-se sobre esta que "inteiramente revestida de magníficos azulejos setecentistas, foi palco de um episódio patriótico: Mateus Álvares, denominado Rei da Ericeira, resistiu aí à ocupação filipina, fazendo-se passar por D. Sebastião." A escrita do parágrafo também obedece a um estilo um tanto cinematográfico, e transmite mensagens fundamentalmente inexactas. A Igreja de São Julião que ali é observável é toda ela muito posterior ao episódio falado, pelo que mesmo aceitando-se a existência anterior de uma pequena ermida no mesmo sítio não seria legítimo apresentar esta como palco do que quer que seja. E, sobretudo, o advérbio de lugar reportado à resistência do Rei da Ericeira não é nada feliz. O que se sabe é que o personagem em causa viveu como ermita nesse lugar de São Julião, então isolado e remoto. Provavelmente numa gruta natural ali existente. Também é geralmente aceite que o seu nome fosse Mateus Álvares, e aventa-se que seria dos Açores, e teria estado antes de vir para ali nos Capuchos, na Serra de Sintra (o conhecido Convento da Cortiça). Porém, naquele lugar ele só esteve, ao que se sabe, para se isolar do mundo, em cumprimento da sua vocação ascética. Quando se espalhou a nova da sua identidade, e foi chamado a desempenhar outro papel, que acabou por aceitar, o jovem frade saiu dali. No lugar de São Julião não é lícito portanto localizar a "resistência à ocupação filipina", que ali não teve lugar.
Curiosamente, na mesma página, e logo a seguir, aparece falada e fotografada a igrejinha de Nossa Senhora do Ó, um pouco afastada da povoação da Carvoeira, sede da freguesia. Aqui sim, devia o cicerone localizar o último e comovedor combate da milícia de labregos que de Pero Pinheiro a Torres Vedras se ergueram um dia a desafiar o poder de Filipe IV. Foi nesse local, junto ao curso do Lizandro, onde está ainda hoje melancolicamente só a humilde capela o o modesto cemitério anexo, no fundo do vale desenhado pelo rio, que se travou o derradeiro combate dos que não se renderam ao avanço das tropas que vieram de Lisboa. Os altos cabeços que de um lado e do outro bordejam ali o Lizandro assistiram há quatrocentos anos à fuga desordenada das hostes saloias, e os muros da igreja à obstinada resistência dos teimosos. São conhecidos os factos, até as identidades (dos mortos), e parece-me a mim que se justificava uma qualquer lembrança.
Para concluir, o rei da Ericeira veio a ser enforcado mais tarde, no Cabeço da Forca, como sabe na terra qualquer indígena.

2 Comments:

At 4:33 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Excelente post, meu Caro Manuel. A propósito do Rei da Ericeira e de outros falsos D. Sebastião (pelo menos um deles - o Prisioneiro de Veneza, que não era o calabrês Marco Tulio Catizone, emissário de D. Sebastião - não era certamente falso, como alguns documentos o comprovam), poderá encontrar muita informação no livro de Miguel D'Antas «Os Falsos D. Sebastião», da editora Heuris.

Contudo, sobre a desmontagem de muitos mitos erróneos da História Sebástica, recomendo-lhe (se é que já não o conhece) o excelente «D. Sebastião Na História e na Lenda», do Dr. Mário Saraiva, da editora Universitária.

E tem toda a razão: na capelinha da Senhora do Ó, junto ao Lizandro, ainda se respira uma melancolia e uma tristeza muito particulares. Obrigado pela lembrança.

Um abraço.

 
At 5:53 da tarde, Blogger Manuel said...

Obrigado.
Conheço efectivamente o livro do falecido Dr. Mário Saraiva que mencionou. E também a muito interessante "Nosografia de D. Sebastião", do mesmo autor (Edição Delraux, 1980, Lisboa).

 

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