sexta-feira, novembro 10, 2006

Ser de esquerda

O "Diário de Notícias" resolveu mergulhar no mais fundo dos enigmas que afligem a alma humana, e indagar "o que é ser de esquerda".
Perguntou então a um vasto conjunto de luminárias, todos de esquerda evidentemente (ali segue-se a doutrina Louçã, só pode pronunciar-se quem tem a experiência) e o resultado foi estampado na edição de hoje.
E qual foi esse resultado? Pois, meus amigos, um estendal de banalidades que nem num inquérito à saída da festa do "Ávante". Ser de esquerda é ser um gajo porreiro, é ter bons sentimentos, pá. Só isso!
Nunca um aprofundamento deu em tanta superficialidade.
Para o Prof. Boaventura, profundissimo, "ser de esquerda é lutar por um futuro melhor". Para a arquitecta Roseta, ser de esquerda é manter "uma posição inconformada e inconformista perante as injustiças". Para o cronista Brederode, ser de esquerda é ter "um perfil e um temperamento que cultivam a inquietação da dúvida, contra o conforto da certeza". Para o cineasta Silva Melo, é "não aceitar como acabadas as leis, os princípios, os regimes".
Como corolário, as conclusões do escritor Mário de Carvalho, segundo o qual aquilo que na direita é essência na esquerda é acidente; e, pois claro, como estão a pensar, "o estalinismo, o maoísmo e o kimilsunguismo não são de esquerda". De uma penada fica arrumada a questão, e todas as polémicas passadas, presentes e futuras: os bons são da esquerda, os maus são da direita.
Ao pé destes, o Rui de Albuquerque, que estive a ler ontem à noite, é um prodígio de equilíbrio e objectividade (tem aquela fixação algo infantil no liberalismo, e põe aquilo sempre no centro de tudo; mas não disfarça, e fora essa mania inofensiva procura não distorcer demasiado a realidade).