UM DIA DEPOIS DO OUTRO
Para lembrar as desconcertantes surpresas da vida, diz o rifão que não há nada como um dia depois do outro. E é verdade. Não há. Na semana passada, como talvez algum leitor ainda se recorde, tornei pública a alegria, e até não ocultei o proveito que tirei de uma barba feita em clima de contravenção. Ora, logo no dia seguinte, fui severamente punido. Foi assim: depois de duas aulas cansativas, e para ser pontual num encontro marcado no Centro Dom Vital, deixei meu carro ali entre o Ministério do Trabalho e o da Educação, onde, aliás, já estavam instalados outros caros maiores do que o meu. É verdade que nas redondezas havia diversos sinais e letreiros. Num deles, em torno de um P vermelho, via-se um texto longamente minucioso e enigmático. P, terças, quintas e sábados, das dezessete e trinta até tantas horas, e de tantas horas até quantas outras. Mais adiante, em torno de um P azul, anunciava-se que aquele pedaço de rua era capitania dos serventuários de não sei mais qual secretaria de não sei qual ministério. Apesar de conhecer razoavelmente a língua dos PP, nunca consegui entender o dialeto usado pela Inspetoria do Tráfego, e como ainda não pude dispor de três meses de férias para a aquisição dessa ciência, continuo afetado pela mesma incapacidade. Por isso, não dispondo, no momento, de uma equipe de assessores que me ajudassem a discernir meus direitos naquela trama complexa de proibições e privilégios, e tendo hora marcada, resolvi deixar ali mesmo o carro entregue à sorte.
Na saída, encontrei Fernando Carneiro e ofereci-lhe condução para as Laranjeiras. Mas quando nos acercamos do local, demos com um espetáculo terrível: o nosso pobre carrinho, modesto, manso como uma pomba, estava sendo arrastado por um monstro escuro e medonho. Era o reboque! Dava pena, não por ser meu, palavra de honra! Dava pena, ver aquele carrinho verde-claro nas garras da máquina que o suspendia pelos queixos e que o levava assim humilhado. Carneiro correu atrás da máquina e tentou explicar que aquele automóvel era de um professor brasileiro, carioca, que se demorara no Centro Dom Vital para não desatender a dois jovens chegados de Porto Alegre. Vão foi o seu patético discurso. A máquina levou a presa e nós ficamos perdidos no centro de uma cidade que maltrata os professores cansados. Foi então que ouvi um sermão severo, que me vinha das paredes do Ministério da Educação, e que ecoava nas paredes do Ministério do Trabalho.
— Então o senhor pensa, diziam-me as paredes da Educação, que pode praticar infrações em todos os dias da semana? Pensa que pode brincar com a lei? Pois está enganado, muito enganado. Quem é o senhor? É Senador? É Deputado? É ao menos suplente? Não é. Confessa que não passa de um simples professor. Então não tem automóvel dado, nem vaga para deixar o desprezível carrinho de segunda mão, que só conseguiu comprar com o dinheiro das aulas e à custa de constrangimentos e apertos. Ora, diga-me uma coisa: o senhor será, por acaso, parente da Presidência da República? Sobrinho, pela idade que aparenta, não pode ser; será tio? Ah! Não é! O senhor mesmo confessa que não é nada, que não passa de um desses anônimos que enchem as ruas, que pagam os impostos, e que são acionistas compulsórios da Petrobrás. Então, meu caro, trate de andar direitinho, mui-to di-rei-ti-nho, e contente-se com as sobras de rua, porque lei é lei.
“Dura lex sed lex”, ecoou sentenciosamente a parede do Trabalho, para mostrar à outra, que também tem instrução.
Calaram-se as pedras e nós saímos à procura de um veículo. No dia seguinte, pedi a um amigo que me ajudasse a libertar o carro, porque tinha aulas a dar na parte da manhã e da tarde. Meu primeiro impulso fora o de faltar às aulas, como vingança. Tanto mais que se trata de aulas extraordinárias, não remuneradas e pedidas, durante as férias, por moços que se interessam por electroacústica. Lembrei-me, porém, que não dou aulas a senadores e ministros, e que entre meus jovens alunos não há nenhum sobrinho de palácio. Seria uma vingança cretina, seria até masoquismo. Além disso, a gente custa a mudar os hábitos antigos.
O fato é que até parece que eles fizeram de propósito e que leram o artigo da barba. Tenho para mim que a coincidência só não explica a coisa. Eles leram ou ouviram contar a alegria que tive e resolveram neutralizá-la, visto que este é, por definição, o ofício, a nota essencial da missão da máquina pública. E ouvindo contar o lucro que me havia dado a barba clandestina, tiraram-me o dinheiro ganho e obrigam-me a escrever este artigo de hoje para cobrir a multa. Paciência. Enquanto me pagarem, irei escrevendo, ora para ter lucro, ora para cobrir o prejuízo das multas. A vida é assim. Não há nada como um dia depois do outro.
Na saída, encontrei Fernando Carneiro e ofereci-lhe condução para as Laranjeiras. Mas quando nos acercamos do local, demos com um espetáculo terrível: o nosso pobre carrinho, modesto, manso como uma pomba, estava sendo arrastado por um monstro escuro e medonho. Era o reboque! Dava pena, não por ser meu, palavra de honra! Dava pena, ver aquele carrinho verde-claro nas garras da máquina que o suspendia pelos queixos e que o levava assim humilhado. Carneiro correu atrás da máquina e tentou explicar que aquele automóvel era de um professor brasileiro, carioca, que se demorara no Centro Dom Vital para não desatender a dois jovens chegados de Porto Alegre. Vão foi o seu patético discurso. A máquina levou a presa e nós ficamos perdidos no centro de uma cidade que maltrata os professores cansados. Foi então que ouvi um sermão severo, que me vinha das paredes do Ministério da Educação, e que ecoava nas paredes do Ministério do Trabalho.
— Então o senhor pensa, diziam-me as paredes da Educação, que pode praticar infrações em todos os dias da semana? Pensa que pode brincar com a lei? Pois está enganado, muito enganado. Quem é o senhor? É Senador? É Deputado? É ao menos suplente? Não é. Confessa que não passa de um simples professor. Então não tem automóvel dado, nem vaga para deixar o desprezível carrinho de segunda mão, que só conseguiu comprar com o dinheiro das aulas e à custa de constrangimentos e apertos. Ora, diga-me uma coisa: o senhor será, por acaso, parente da Presidência da República? Sobrinho, pela idade que aparenta, não pode ser; será tio? Ah! Não é! O senhor mesmo confessa que não é nada, que não passa de um desses anônimos que enchem as ruas, que pagam os impostos, e que são acionistas compulsórios da Petrobrás. Então, meu caro, trate de andar direitinho, mui-to di-rei-ti-nho, e contente-se com as sobras de rua, porque lei é lei.
“Dura lex sed lex”, ecoou sentenciosamente a parede do Trabalho, para mostrar à outra, que também tem instrução.
Calaram-se as pedras e nós saímos à procura de um veículo. No dia seguinte, pedi a um amigo que me ajudasse a libertar o carro, porque tinha aulas a dar na parte da manhã e da tarde. Meu primeiro impulso fora o de faltar às aulas, como vingança. Tanto mais que se trata de aulas extraordinárias, não remuneradas e pedidas, durante as férias, por moços que se interessam por electroacústica. Lembrei-me, porém, que não dou aulas a senadores e ministros, e que entre meus jovens alunos não há nenhum sobrinho de palácio. Seria uma vingança cretina, seria até masoquismo. Além disso, a gente custa a mudar os hábitos antigos.
O fato é que até parece que eles fizeram de propósito e que leram o artigo da barba. Tenho para mim que a coincidência só não explica a coisa. Eles leram ou ouviram contar a alegria que tive e resolveram neutralizá-la, visto que este é, por definição, o ofício, a nota essencial da missão da máquina pública. E ouvindo contar o lucro que me havia dado a barba clandestina, tiraram-me o dinheiro ganho e obrigam-me a escrever este artigo de hoje para cobrir a multa. Paciência. Enquanto me pagarem, irei escrevendo, ora para ter lucro, ora para cobrir o prejuízo das multas. A vida é assim. Não há nada como um dia depois do outro.
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