terça-feira, dezembro 05, 2006

Ainda o 25 de Novembro e o PCP

Com este título publicou hoje José Manuel Barroso um importante artigo no DN (na sequência aliás de um esclarecido e esclarecedor trabalho de... esclarecimento que tem vindo a desenvolver ao longo do tempo).
Por coincidência, surge este texto na mesma altura em que apareceu a
Alameda Digital tendo como tema forte os tais idos de Novembro.
Leia-se então o que diz
Barroso, e o que consta da Alameda Digital. Eu se tivesse tempo faria também uns comentários. Fica para a próxima, quando for.

Recordo, como se fosse hoje - para além do anotado no meu caderno de apontamentos -, o rosto do marechal Costa Gomes, quando, 20 anos depois do 25 de Abril, o entrevistei para uma série de crónicas históricas publicadas no DN. E recordo esse pormenor porquê? Porque, habitualmente, Costa Gomes controlava o seu discurso e as suas reacções, fossem quais fossem as perguntas. Naquele dia (na terceira de uma série de conversas que com ele tive), o ex-presidente da República reagiu com estranha irritação quando - após me ter dito que o 25 de Novembro fora "obra da extrema-esquerda, o PCP não teve nada a ver com isso" - eu lhe perguntei porque ele se não dirigira aos líderes desses partidos, para controlar as gentes que se haviam juntado frente às unidades militares importantes de Lisboa a pedir armas e a solicitar aos militares que se juntassem aos "revolucionários" (isto é, aos militares sublevados contra o poder legal).
É que, na sequência do pedido que eu lhe fizera, para que me revelasse os passos dados, desde que tivera conhecimento da sublevação dos pára-quedistas da Base de Tancos, da ocupação do comando operacional da Força Aérea, em Monsanto, Lisboa, da tomada de posição do Ralis, junto ao aeroporto de Lisboa e à via Norte e da RTP pela EPAM (unidade do Exército junto ao Lumiar), ele me respondera ter tomado a iniciativa de ligar para o secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, e para os dirigentes da Intersindical, a central sindical dos comunistas. Costa Gomes sentiu-se em contradição e respondeu- -me com mal disfarçada irritação, ilibando de novo o PCP.
Se outras dúvidas eu não tivesse - e não as tinha já, face aos depoimentos conhecidos de personalidades diversas - esta "confissão" de um homem tão inteligente e hábil como Costa Gomes era, para mim, um reconhecimento claro da realidade. Parece óbvio que, se o PCP nada tivesse a ver com os acontecimentos, a sindical central que ele dominava e as estruturas locais do partido não se teriam arriscado, mesmo tomando em conta o ambiente efervescente da época, não teriam avançado para as unidades militares - para incentivar ou para impedir a saída de militares, conforme a tendência conhecida de cada uma delas.
Ninguém, entre a classe política da época e os historiadores da conjuntura, conseguiu identificar (para além de Otelo, que nada fez ao lado dos revoltosos, e das gentes da Polícia Militar, esquerdistas aliados do PCP) que organizações esquerdistas estariam por detrás das movimentações militares e civis. Mas alguns "investigadores" insistem na tese do mistério, o que constitui um verdadeiro mistério dentro do mistério.
Vamos por partes. O presidente da República contacta Cunhal e a Intersindical; as cúpulas das unidades que se sublevam eram dominadas pelo PCP (os pára-quedistas de Tancos através do comandante fantoche que lá ficara, depois que 123 oficiais moderados a haviam abandonado, e do verdadeiro grupo-líder, os sargentos e a EPAM, que ocupa a RTP); o SDCI (embrião dos novos serviços secretos militares), onde estavam sedeados dirigentes da Esquerda Militar, coordena movimentações. E nada desta gente tem a ver com o PCP?
Mais. Cunhal e o PCP classificarão sempre os moderados como "contra-revolucionários", nunca condenarão a sublevação, protege os militares detidos no rescaldo do golpe (enviando ao Palácio de Belém, para apelar a Costa Gomes, uma comissão dirigida por um comunista conhecido, professor Ruy Luís Gomes, ex-tutor político de Costa Gomes, quando jovem estudante de Matemáticas no Porto). Os militares fugidos à prisão (Duran Clemente, Costa Martins, Varela Gomes) serão protegidos pelas estruturas do PCP, enviados em fuga para uma residência de um conhecido militante comunista de Coimbra, professor de Direito Constitucional, na Beira Interior, passados a salto para Espanha, refugiados na embaixada cubana em Madrid, circulados depois por Moscovo e por Havana e, depois do regresso a Portugal, protegidos pelas câmaras comunistas da Grande Lisboa, e nada disto tem a ver com o PCP?
Se não tem, porque não abandonou à sua sorte o PCP essa extrema-esquerda aventureirista? Na verdade, apesar da confusão do momento e da época, uma parte dessa "extrema-esquerda" estava ligada ao PCP e muitos dos seus elementos eram apenas agentes infiltrados nela.
Muita gente que, hoje, ainda fala de mistério, sabe que esse mistério não existe. Apenas o alimenta por razões políticas de diversa ordem. É certo que o PCP não quis, também, uma guerra civil. É certo que lhe falhou o apoio, por muitos esperado, de Otelo, como chefe militar. É certo que Costa Gomes alinhou pelo lado da geopolítica da URSS - libertando África e largando a Península Ibérica. Mas o certo é também que foi com o PCP que Costa Gomes e o Grupo dos Nove negociaram nos dias 25 e 26 de Novembro de 1975. Na tese do "mistério" isso parece um movimento louco: negociar com quem não teria nada a ver com o assunto.