quinta-feira, dezembro 28, 2006

Partidas da memória

Tem-me acontecido frequentemente. Gente com quem me cruzei algures no passado, e que tinha perdido de vista há eternidades, partilha comigo recordações, imagens de passados perdidos que seriam comuns.
E de repente a sensação de cumplicidade do reencontro volve-se estranheza, fica-me a remoer por dentro um gosto incómodo e desconfortável.
O que se lembram eu não me lembro, e o que me lembro não condiz. As lembranças e os instantes de que me falam, e em que seria suposto rever-me, ou não os vivi ou não ficaram comigo. Não me reconheço nos retratos, o que guardei de mim não é o que ficou nos outros.
Habituei-me a ouvir numa atitude que procura ser compreensiva e afectuosa. Afinal, há que dizer que as pessoas falam de algo que fazem gosto que seja assim, e provavelmente interpretariam mal desmentidos ou correcções.
Abstenho-me porém de retribuir exibindo pelo meu lado lembranças que tenha do interlocutor. Temo a queda no mesmo abismo.
E, fico a pensar, no fim de contas, o que me garante que é a memória deles que está errada, e que não é a minha que me falseia?
Por vezes penso que a memória pode ser um órgão que se constrói a si mesmo, regido por leis e impulsos inexplicáveis para nós, que somos sujeitos dela.
Outras vezes penso que o problema pode não estar só nas construções e reconstruções da memória, mas sim logo na percepção e impressão originais. Como acontece na estafada história dos cegos e do elefante, em que a cada um só foi dado apalpar uma parte do animal – a tromba, a cauda, uma pata, a barriga – e a partir dessa experiência sensível cada um cria uma noção de elefante que reproduz as características do que tocou.
Como é evidente, nesta reflexão não entram mentirosos. Por isso é que a questão é complicada.

1 Comments:

At 7:42 da manhã, Anonymous Anónimo said...

É, para mim, interessante o sentimento que expõe. Julgo que se passa o mesmo com todos nós. A garantia da nossa memória está, penso eu, na possibilidade de estabelecer comparações e concluír que, afinal, a nossa memória está certa - ou, eventualmente, corrigi-la.

 

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