A caixa de Pandora
(um artigo de José António Saraiva)
Nasci e vivi até casar numa casa da Calçada do Galvão, com frente para o Jardim Colonial – num prédio de dois andares com uma certa dignidade e um quintal murado, onde pontificavam duas imponentes palmeiras. Lá viviam quatro inquilinos: nós (no rés-do-chão esquerdo), uma modista, um casal alemão com dois filhos e a minha avó materna.
Como a casa era grande e a minha mãe trabalhava fora (era professora), tínhamos normalmente duas empregadas – que na época se chamavam ‘criadas’. ‘Criadas de servir’. Um dia, uma delas caiu doente. Tinha febre, não podia trabalhar e passava o dia na cama, encharcada em suor. Esgotou-se uma semana e ela não registava melhoras. Pelo contrário: no seu quarto começou a sentir-se um cheiro a podre que se foi espalhando pela casa tornando o ar irrespirável. A minha mãe interveio, chamou-se o médico e uma ambulância veio pouco depois buscá-la. Ficou uns 15 dias no hospital, ao fim dos quais regressou a nossa casa, curada.
A minha mãe explicou-me mais tarde, no meio de silêncios, que ela fizera um ‘desmancho’ e poderia ter morrido. Na altura não se usava a palavra aborto (que é, convenhamos, horrível). O ‘desmancho’ fora efectuado por uma parteira do bairro, que tinha fama de competente. A minha mãe indignou-se por ela ter feito aquilo sem lhe dizer nada. Mas o tempo passou, o episódio esqueceu – e ela acabou por casar com o homem que a engravidara e era dono de uma leitaria e de uma taberna situadas um pouco abaixo da nossa casa.
Eu é que não mais esqueci aqueles dias: o cheiro nauseabundo, a cara da empregada, pálida como a morte, a história da parteira. Na minha cabeça a palavra ‘parteira’ ficou para sempre associada não a nascimentos mas a actos horríveis praticados em ambientes sórdidos, que podiam levar as mulheres à morte.
Com estas memórias, dir-se-á que eu deveria aplaudir com as duas mãos a despenalização do aborto – que permitirá às mulheres abortar de forma limpa, em hospitais do Estado, com assistência médica garantida.
Mas não o faço.
Porque outra coisa que me marcou na adolescência foi uma conversa com o meu pai em que percebi a importância de se defender a ‘inviolabilidade da vida’. Quando se toca aí, nunca se sabe onde se irá parar. Quando se admite que a vida não é um valor intocável, quando se aceita que pode ser posta em causa em certas circunstâncias, abre-se uma ‘caixa de Pandora’ onde tudo se torna possível. Por que não aceitar a eutanásia? Por que não discutir a pena de morte? Por que só admitir o aborto até às 10 semanas?
Num programa Prós e Contras colocaram a certa altura a Edite Estrela uma pergunta incómoda:
– Se o resultado do referendo do aborto for a vitória do ‘Sim’, que permite o aborto até às 10 semanas, e se uma mulher for a tribunal por ter feito um aborto às dez semanas e meia, deve ser condenada?
Edite Estrela fez uma pausa, e acabou por responder com seriedade:
– Deve aplicar-se a lei, portanto deve ser condenada.
Esta pergunta e esta resposta tocaram o fundo da questão. Porque o que estava em cima da mesa, no debate, era acabar com os julgamentos das mulheres por abortarem. Ora, de repente, percebeu-se que a nova lei não resolverá o problema. Os julgamentos continuarão. Uma mulher poderá abortar livremente até às nove semanas e meia – mas será condenada se o fizer às dez semanas e meia.
Todas estas questões surgiram a partir do momento em que se transpôs a ‘linha da vida’. Até aí tudo era claro: a pena de morte não era aceite, a eutanásia era proibida, o aborto era crime. Não havia dúvidas. Não se colocava a discussão bizarra de saber ‘quando começa a vida’: é evidente que existe vida desde o momento da concepção – e que o aborto, seja em que altura for, representa uma violação da vida. Para sustentarem os seus argumentos, os propagandistas da relativização da vida apresentam exemplos-limite que nos chocam a todos. Mostram famílias cheias de filhos vivendo em tugúrios degradados, para ilustrar a importância do planeamento familiar; apresentam mulheres que foram despedidas dos empregos ou marginalizadas pelas famílias por aparecerem grávidas; contam a história de seres humanos vivendo há anos ou décadas como vegetais, num sofrimento indescritível, pedindo aos familiares para lhes porem fim ao sacrifício.
Estes casos são, de facto, comoventes – e parecem não deixar dúvidas sobre aquilo que se propagandeia. O problema não são estes casos (relativamente raros); o problema são todos os outros (a esmagadora maioria). O problema da banalização do aborto são os abortos feitos levianamente, precipitadamente, inconscientemente, que mais tarde provocam arrependimento e deixam traumas para toda a vida. O problema da legalização da eutanásia são as fraudes a que pode dar lugar pelo país fora, estimulando as cumplicidades entre familiares e médicos para ‘aliviarem’ a vida a idosos com o objectivo de lhes ficarem com a fortuna. E assim por diante.
Por isso, repito: o grande problema foi transpor-se a ‘linha da vida’. Foi esse o grande passo. A partir desse momento tudo se relativizou, tudo se tornou passível de discussão, nada já é seguro. Isso mesmo foi visível em Portugal. Desde o dia em que se admitiu a legalidade do aborto, o processo nunca mais parou. Primeiro, reivindicou-se o aborto para acorrer a situações excepcionais; depois, a situações menos excepcionais; e agora defende-se que possa ser praticado sem quaisquer condições. E o mesmo se passará com as semanas de gestação: agora são 10, amanhã (quando começarem a ser julgadas mulheres por terem abortado às 11 ou 12 semanas) serão 12 e depois 14 e assim sucessivamente.
A transposição da linha que separava a vida e a morte foi um passo tremendo. Porque legitimou todas as intervenções: a vida no útero pode ser interrompida, os vivos poderão ser mortos antes de morrerem, o suicídio é tolerado, a pena de morte poderá voltar a ser discutida, quem sabe?
Abriu-se, como atrás se disse, uma ‘caixa de Pandora’. A caixa da morte.
Nasci e vivi até casar numa casa da Calçada do Galvão, com frente para o Jardim Colonial – num prédio de dois andares com uma certa dignidade e um quintal murado, onde pontificavam duas imponentes palmeiras. Lá viviam quatro inquilinos: nós (no rés-do-chão esquerdo), uma modista, um casal alemão com dois filhos e a minha avó materna.
Como a casa era grande e a minha mãe trabalhava fora (era professora), tínhamos normalmente duas empregadas – que na época se chamavam ‘criadas’. ‘Criadas de servir’. Um dia, uma delas caiu doente. Tinha febre, não podia trabalhar e passava o dia na cama, encharcada em suor. Esgotou-se uma semana e ela não registava melhoras. Pelo contrário: no seu quarto começou a sentir-se um cheiro a podre que se foi espalhando pela casa tornando o ar irrespirável. A minha mãe interveio, chamou-se o médico e uma ambulância veio pouco depois buscá-la. Ficou uns 15 dias no hospital, ao fim dos quais regressou a nossa casa, curada.
A minha mãe explicou-me mais tarde, no meio de silêncios, que ela fizera um ‘desmancho’ e poderia ter morrido. Na altura não se usava a palavra aborto (que é, convenhamos, horrível). O ‘desmancho’ fora efectuado por uma parteira do bairro, que tinha fama de competente. A minha mãe indignou-se por ela ter feito aquilo sem lhe dizer nada. Mas o tempo passou, o episódio esqueceu – e ela acabou por casar com o homem que a engravidara e era dono de uma leitaria e de uma taberna situadas um pouco abaixo da nossa casa.
Eu é que não mais esqueci aqueles dias: o cheiro nauseabundo, a cara da empregada, pálida como a morte, a história da parteira. Na minha cabeça a palavra ‘parteira’ ficou para sempre associada não a nascimentos mas a actos horríveis praticados em ambientes sórdidos, que podiam levar as mulheres à morte.
Com estas memórias, dir-se-á que eu deveria aplaudir com as duas mãos a despenalização do aborto – que permitirá às mulheres abortar de forma limpa, em hospitais do Estado, com assistência médica garantida.
Mas não o faço.
Porque outra coisa que me marcou na adolescência foi uma conversa com o meu pai em que percebi a importância de se defender a ‘inviolabilidade da vida’. Quando se toca aí, nunca se sabe onde se irá parar. Quando se admite que a vida não é um valor intocável, quando se aceita que pode ser posta em causa em certas circunstâncias, abre-se uma ‘caixa de Pandora’ onde tudo se torna possível. Por que não aceitar a eutanásia? Por que não discutir a pena de morte? Por que só admitir o aborto até às 10 semanas?
Num programa Prós e Contras colocaram a certa altura a Edite Estrela uma pergunta incómoda:
– Se o resultado do referendo do aborto for a vitória do ‘Sim’, que permite o aborto até às 10 semanas, e se uma mulher for a tribunal por ter feito um aborto às dez semanas e meia, deve ser condenada?
Edite Estrela fez uma pausa, e acabou por responder com seriedade:
– Deve aplicar-se a lei, portanto deve ser condenada.
Esta pergunta e esta resposta tocaram o fundo da questão. Porque o que estava em cima da mesa, no debate, era acabar com os julgamentos das mulheres por abortarem. Ora, de repente, percebeu-se que a nova lei não resolverá o problema. Os julgamentos continuarão. Uma mulher poderá abortar livremente até às nove semanas e meia – mas será condenada se o fizer às dez semanas e meia.
Todas estas questões surgiram a partir do momento em que se transpôs a ‘linha da vida’. Até aí tudo era claro: a pena de morte não era aceite, a eutanásia era proibida, o aborto era crime. Não havia dúvidas. Não se colocava a discussão bizarra de saber ‘quando começa a vida’: é evidente que existe vida desde o momento da concepção – e que o aborto, seja em que altura for, representa uma violação da vida. Para sustentarem os seus argumentos, os propagandistas da relativização da vida apresentam exemplos-limite que nos chocam a todos. Mostram famílias cheias de filhos vivendo em tugúrios degradados, para ilustrar a importância do planeamento familiar; apresentam mulheres que foram despedidas dos empregos ou marginalizadas pelas famílias por aparecerem grávidas; contam a história de seres humanos vivendo há anos ou décadas como vegetais, num sofrimento indescritível, pedindo aos familiares para lhes porem fim ao sacrifício.
Estes casos são, de facto, comoventes – e parecem não deixar dúvidas sobre aquilo que se propagandeia. O problema não são estes casos (relativamente raros); o problema são todos os outros (a esmagadora maioria). O problema da banalização do aborto são os abortos feitos levianamente, precipitadamente, inconscientemente, que mais tarde provocam arrependimento e deixam traumas para toda a vida. O problema da legalização da eutanásia são as fraudes a que pode dar lugar pelo país fora, estimulando as cumplicidades entre familiares e médicos para ‘aliviarem’ a vida a idosos com o objectivo de lhes ficarem com a fortuna. E assim por diante.
Por isso, repito: o grande problema foi transpor-se a ‘linha da vida’. Foi esse o grande passo. A partir desse momento tudo se relativizou, tudo se tornou passível de discussão, nada já é seguro. Isso mesmo foi visível em Portugal. Desde o dia em que se admitiu a legalidade do aborto, o processo nunca mais parou. Primeiro, reivindicou-se o aborto para acorrer a situações excepcionais; depois, a situações menos excepcionais; e agora defende-se que possa ser praticado sem quaisquer condições. E o mesmo se passará com as semanas de gestação: agora são 10, amanhã (quando começarem a ser julgadas mulheres por terem abortado às 11 ou 12 semanas) serão 12 e depois 14 e assim sucessivamente.
A transposição da linha que separava a vida e a morte foi um passo tremendo. Porque legitimou todas as intervenções: a vida no útero pode ser interrompida, os vivos poderão ser mortos antes de morrerem, o suicídio é tolerado, a pena de morte poderá voltar a ser discutida, quem sabe?
Abriu-se, como atrás se disse, uma ‘caixa de Pandora’. A caixa da morte.
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