Os direitos do nascituro
O nosso direito civil prevê a possibilidade de o nascituro ser herdeiro. Sempre foi assim, e continua a ser essa a solução: se um homem morrer estando concebido filho seu ainda não nascido, este é seu herdeiro.
Esse direito do nascituro tem consequências: por exemplo se o falecido for solteiro e sem outra descendência e ao tempo da sua morte estiver vivo apenas o seu pai, o único herdeiro é o descendente nascituro, que afasta o progenitor. Se o falecido for casado, herdeiros serão a viúva e o nascituro, concorrendo os dois à herança do falecido. Naturalmente, a viúva pode ou não ser a mãe do nascituro.
Obviamente que o direito do nascituro depende do seu nascimento.
Mas, nesse caso, como compatibilizar essa regulamentação legal, que vê o nascituro como sujeito de direitos, e o direito da mulher a abortar livremente?
Repare-se que nos exemplos que demos o pai do falecido pode encontrar-se numa situação em que lhe será altamente vantajoso financiar generosamente o aborto voluntário da mulher grávida, já que se esta não for casada só ele ficará na posição de herdeiro; e a mulher grávida que seja casada com o falecido tem um evidente interesse patrimonial em abortar, já que com esse acto se tornará a única herdeira, em vez de dividir com o filho.
Os que assim procederem ficarão em situação de indignidade sucessória, e perdem a sua qualidade de herdeiros? Esta tem sido sempre a solução jurídica para afastar da sucessão quem cometa actos com essas implicações.
Mas poderá falar-se em indignidade sucessória se o acto em causa corresponder ao normal exercício de um direito? A mulher grávida abortou porque quis, e segundo a lei proposta pode fazê-lo. O facto não pode obviamente ser punido como crime, e assim também não se vê como será causa de indignidade sucessória.
O que dizer da unidade, harmonia e coerência de um sistema jurídico que no Direito das Sucessões tutela os direitos do nascituro, e estabelece uma regulamentação jurídica para os direitos deste, e no Direito Penal legaliza a eliminação dele, criando um verdadeiro direito a essa eliminação na esfera jurídica de quem normalmente tem direitos sucessórios próprios em colisão com os dele?
Esse direito do nascituro tem consequências: por exemplo se o falecido for solteiro e sem outra descendência e ao tempo da sua morte estiver vivo apenas o seu pai, o único herdeiro é o descendente nascituro, que afasta o progenitor. Se o falecido for casado, herdeiros serão a viúva e o nascituro, concorrendo os dois à herança do falecido. Naturalmente, a viúva pode ou não ser a mãe do nascituro.
Obviamente que o direito do nascituro depende do seu nascimento.
Mas, nesse caso, como compatibilizar essa regulamentação legal, que vê o nascituro como sujeito de direitos, e o direito da mulher a abortar livremente?
Repare-se que nos exemplos que demos o pai do falecido pode encontrar-se numa situação em que lhe será altamente vantajoso financiar generosamente o aborto voluntário da mulher grávida, já que se esta não for casada só ele ficará na posição de herdeiro; e a mulher grávida que seja casada com o falecido tem um evidente interesse patrimonial em abortar, já que com esse acto se tornará a única herdeira, em vez de dividir com o filho.
Os que assim procederem ficarão em situação de indignidade sucessória, e perdem a sua qualidade de herdeiros? Esta tem sido sempre a solução jurídica para afastar da sucessão quem cometa actos com essas implicações.
Mas poderá falar-se em indignidade sucessória se o acto em causa corresponder ao normal exercício de um direito? A mulher grávida abortou porque quis, e segundo a lei proposta pode fazê-lo. O facto não pode obviamente ser punido como crime, e assim também não se vê como será causa de indignidade sucessória.
O que dizer da unidade, harmonia e coerência de um sistema jurídico que no Direito das Sucessões tutela os direitos do nascituro, e estabelece uma regulamentação jurídica para os direitos deste, e no Direito Penal legaliza a eliminação dele, criando um verdadeiro direito a essa eliminação na esfera jurídica de quem normalmente tem direitos sucessórios próprios em colisão com os dele?
11 Comments:
Parece-me que a estimada leitora, além de outras, tem sérias dificuldades com o português elementar.
Um embrião é, rigorosamente, um nascituro (um ser já concebido mas ainda não nascido). Não é matéria sujeita a opiniões: é um facto.
Aliás, creio que este texto praticamente não tem opiniões, aponta incongruências entre um regime legal que vigora e um outro que se anuncia.
Quanto aos incómodos com as minhas "opiniões": lamento incomodar, mas evidentemente não vou reduzir-me ao silêncio por causa disso.
A senhora tem certamente grande dificuldade em aceitar o outro, seja no ventre seja nos blogues. Mas tem que ter paciência: aqui escrevo eu. Quem não gostar, não é obrigado a vir cá.
A porta, obviamente, está aberta a todos, para entrar ou para sair, e procura-se não tratar mal ninguém.
Manuel Azinhal: «Obviamente que o direito do nascituro depende do seu nascimento. Mas, nesse caso, como compatibilizar essa regulamentação legal, que vê o nascituro como sujeito de direitos, e o direito da mulher a abortar livremente?»
Como é evidente, não é o nascituro enquanto tal que herda, senão em caso de falecimento da mãe durante a gravidez teríamos de considerar que não só ela como o filho que transportava no ventre teriam herdeiros. Por exemplo, entre os herdeiros da falecida mãe poderia estar um filho de outro casamento, e os herdeiros do falecido filho poderiam ser o viúvo ou os eventuais irmãos existentes. Uma situação ridícula...
Mas há mais. Não sou jurista, mas asseguram-me que a lei prevê a hipótese de serem feitos testamentos em favor de nascituros ainda não concebidos (ou seja futuros filhos de alguém bem determinado, que ainda não existem e podem até nunca vir a existir). Se de facto é verdade e é isso que a lei quer dizer quando fala em nascituros não concebidos, então, aplicando o raciocínio acima indicado, poderemos perguntar: «Mas, nesse caso, como compatibilizar essa regulamentação legal, que vê o nascituro não concebido como sujeito de direitos, e o direito dos pais a usar qualquer espécie de contracepção?»
Ou será que a lei ao falar de «concepção» quer dizer na realidade «nascimento»?
Estou perplexo.
Está perplexo mas não há razões para tal.
O regime legal é bem claro.
Os direitos do nascituro dependem do seu nascimento com vida, como você próprio escreveu (é o que consta do Código Civil).
Portanto, não se põem sequer essas dificuldades sobre a morte da mãe e do feto, com alteração da linha sucessória, etc. etc.
Isso são fantasias, e o nosso Código é muito concreto e positivo.
Os direitos atribuídos ao nascituro dependem do seu nascimento, "completo e com vida", para usar a expressão, já anacrónica na época, que consta do Código a propósito do início da personalidade jurídica.
E agora quanto à possibilidade de testar a favor de concepturos (é a isso que se refere). Evidentemente que também não existe aqui nenuma dificuldade lógica: a lei prevê a hipótese de alguém declarar em testamento a sua vontade (um testamento é um acto de vontade) quanto a um concepturo, desde que filho de pessoa determinada viva ao tempo dessa disposição. É portanto uma declaração do género "ao primeiro filho que vier a nascer da minha irmã Xica...".
Como é evidente, a eficácia dessa manifestação de vontade depende inteiramente de factos futuro em relação ao testamento: desde logo é necessária a concepção, e depois também o nascimento com vida, como acontece com os nascituros.
Mas repare-se numa diferença fundamental. No caso dos concepturos trata-se de sucessão testamentária, portanto o que a lei reconhece é a legitimidade de uma manifestação de vontade, não de direitos de um sujeito inexistente (o concepturo não existe!).
No caso dos nascituros falamos de sucessão legal, trata-se de reconhecer efectivamente direitos a um ser existente, mas que ainda não nasceu. E estes direitos não dependem de manifestação de vontade, de testamento, resultam da lei. Nem o testamento em sentido contrário terá qualquer validade para afastar o nascituro da linha sucessória em que se encontre (pode beneficiá-lo atribuindo-lhe mais do que o seu quinhão legítimo, mas não pode retirar-lhe este).
A única forma mesmo será impedir o seu nascimento com vida...
«Mas repare-se numa diferença fundamental. No caso dos concepturos trata-se de sucessão testamentária, portanto o que a lei reconhece é a legitimidade de uma manifestação de vontade, não de direitos de um sujeito inexistente (o concepturo não existe!). No caso dos nascituros falamos de sucessão legal, trata-se de reconhecer efectivamente direitos a um ser existente, mas que ainda não nasceu.»
Certo. O esclarecimento é cabal e a lei é inteiramente explícita e conclusiva em matéria de direito successório, como eu supunha (a perplexidade era evidentemente retórica).
Mas penso que acaba por trazer alguma água ao meu moinho. Se de facto o direito do nascituro, obviamente dependente do seu nascimento, (como escreve) nos devesse colocar problemas em termos do direito da mulher a abortar, então porque razão não poderíamos igualmente afirmar que um fantasma a quem se reconhece outro direito legal, a saber não à herança automática mas a ser objecto de herança por disposição testamentária em seu favor, obviamente dependente da sua concretização (como escreverei eu) nos deveria colocar problemas em relação ao direito dos pais a usar qualquer espécie de contracepção?
É claro que isto é uma redução a absurdo para mostrar que não é por aí que se poderá eventualmente justificar uma criminalização do aborto. O que me está a dizer, no fundo, é que o estatuto ontológico do nascituro já concebido é superior ao do simples concepturo, e não posso senão concordar com essa evidência, mas se a concretização dos direitos ou ausências de direitos que invoca é apenas à nascença, num como no outro caso, e já que não existe nenhuma carta dos direitos da vida intra-uterina, concluir que isso deve interferir com o direito a abortar, parece-me um erro.
Obviamente que uma mulher poderá, por exemplo, abortar um filho para não ter concorrência a uma herança, mas também poderá adoptar medidas activas de contracepção para naõ concretizar um filho e isso não torna a contracepção criminosa.
Por outra palavras, a falácia que me parece subjazer ao argumento -- tal como o interpretei a partir de diversas exposições por várias personalidades, desde que Bagão Félix o trouxe a debate -- é que requer que a terminação da vida intra-uterina seja a priori considerada uma prática criminosa (por quaisquer outros possíveis motivos que não vêm ao caso).
Essa argumentação não procede por uma razão bem simples: as referências que o regime legal faz a concepturos situam-se no âmbito da tutela da autonomia da vontade, em concreto para regular a aplicação desse princípio em matéria testamentária. Portanto, se algum direito é criado por via dessas normas ele situa-se na esfera jurídica do testador, que fica com a faculdade de dispor desse modo.
Trata-se apenas de definir até onde pode chegar, validamente, a liberdade de testar.
Não se trata de direitos do concepturo, que obviamente não existe no momento dessa declaração de vontade - por isso é apenas concepturo.
Se ele vier a existir, e ao tempo da morte do testador este não tiver mudado as suas disposições, então poderá falar-se em direito à sucessão - mas então já se trata ou de nascituro ou de nascido...
Ao contrário, a regulamentação legal que tutela a situação dos nascituros é de natureza imperativa e refere-se a uma realidade já existente no momento da sucessão, estabelece verdadeiros direitos para o nascituro, que não dependem da vontade de ninguém, nem têm nesta a sua fonte.
Num caso não se pode falar de "direitos do concepturo" (o concepturo não existe!) no outro caso há realmente direito do nascituro, por si, como uma realidade própria, direito que tem por fonte a própria lei.
Nalguma acepção de um «direito do nascituro» que não seja na prática exactamente o mesmo que um direito do recém-nascido a partir da nascença (ainda que «em reserva»), pode explicar-me então por que razão se procede absolutamente em tudo como se esse «direito do nascituro» fosse exactamente o mesmo que um «futuro direito do futuro recém-nascido»? Não é um pouco como dizer que os nascituros têm direito de voto, mas só quando atingem a maioridade cívica, ou (de forma ainda mais absurda) que os mortos também têm direito de voto, mas só enquanto estão vivos? Parecer-me-ia muito mais lógico dizer que o nascituro que deixa de o ser porque nasce passa a ter o direito que referimos justamente quando e porque nasce, do que criar tanta confusão em torno de um direito que no fundo só existirá quando e se se verificar justamente o término da condição que nos interessa (a de «nascituro» em oposição à de «nascido»), exactamente como me parece que o direito à vida de um recém-nascido não pode ser visto nos mesmos termos que um hipotético direito à vida de um zigoto.
Obviamente que regular o "direito do nascituro" não é o mesmo nem conduz aos mesmos resultados práticos que regular o "futuro direito de um futuro nascido".
Por isso mesmo é que existe essa previsão e regulamentação legal (não resisto a observar-lhe que as soluções jurídicas decorrem normalmente de uma ciência que é milenar, e não são assim tão ingénuas e fáceis de rebater).
No caso, para responder às dúvidas que expõe basta observar que o momento da abertura da sucessão é o momento da morte do "de cujus".
Esta é uma estatuição comum, presente em todos os ordenamentos jurídicos que conheço.
Assim sendo, nesse momento em que se definem os direitos sucessórios só poderiam ser titulares deles aqueles já nascidos, por já terem adquirido personalidade jurídica.
A tutela legal dos direitos dos nascituros teve como causa primeira precisamente a constatação de que ignorá-los conduziria a um resultado injusto: o bébé que tivesse nascido na véspera do decesso teria tudo, e aquele que se atrasasse na barriga da mãe, mesmo que só um dia, não ficaria com nada, não existiria para a sucessão.
Não se trata portanto de regular direitos futuros e virtuais, mas direitos efectivos e actuais no momento do falecimento, e encabeçados pelo nascituro.
Creio que isto é matéria básica que consta de qualquer vulgar Manual de Direito das Sucessões. Não se trata de matéria controvertida!
Pensemos na hipótese de um homem que engravida duas mulheres.E no momento do seu falecimento uma acabou de ter a criança,na véspera, e outra só a terá no dia seguinte.
Sem a tal previsão que você diz que nada adianta, que é a mesma coisa, o herdeiro único seria o filho que já nasceu, e o que nasce no dia seguinte não teria qualquer direito, pois os direitos em regra dependem da personalidade jurídica e a personalidade jurídica depende do nascimento com vida, logo no momento da sucessão o que está para nascer não existe.
Poderia até dar-se o caso de a criança que nasceu na véspera vir a morrer cinco dias depois. Pois assim sendo a herança do falecido, que passou para esse filho, iria por sucessão deste beneficiar a mãe dele - continuando a manter-se de fora o irmão se acaso ainda não tivesse nascido. Se este já tivesse nascido no momento do falecimento então já contaria...
Entende-se facilmente ao que conduziria a omissão da referência expressa ao nascituro em matéria de Direito das Sucessões.
Nem conheço aliás ninguém,no universo jurídico que alguma vez tivesse contestado a necessidade e a justiça dessa inclusão, que é pacífica (tanto a indispensabilidade da previsão como a justiça dela).
«Sem a tal previsão que você diz que nada adianta, que é a mesma coisa, o herdeiro único seria o filho que já nasceu,»
Não é isso que eu digo, ou pelo menos não foi isso que na minha relativa ignorância da linguagem jurídica quis dizer.
O que digo é que não me parece razoável transformar essa «referência expressa ao nascituro em matéria de Direito das Sucessões» -- que reconheço plenamente que faz sentido nesse contexto -- numa espécie de precedente justificativo do reconhecimento de direitos (e o direito á vida não seria com certeza o menor deles), como penso que concorda quando escreve que «os direitos em regra dependem da personalidade jurídica e a personalidade jurídica depende do nascimento com vida».
Parecer-me-ia absurdo dizer, por exemplo, que se criou um direito legal de uma vida intra-uterina a nascer só porque a sua existência foi, por assim dizer, «devidamente anotada» tendo em vista determinadas regras sucessórias.
E no caso de um feto anencéfalo, onde cabe, neste caso o direito sucessório. Um feto a nascer por minutos ou nascer morto, ou ainda, em caso da interrupção da gravidez?
As questões do José Manoel estão respondidas de forma clara em tudo o que se escreveu antes.
E no Direito das Sucessões também.
Ouso discordar do Sr. Manuel, quando este diz que a questão do anencéfalo proposta por José Manoel já estaria respondida. Entenderia o Sr. que o anencéfalo é um natimorto? Ou que nascendo com vida e morrendo logo após, teria capacidade de transmitir a herança para sua genitora?
São questões que ainda são discutidas no Brasil. Em minha modesta opnião o anencéfalo deve ser considerado como natimorto tendo em vista sua total impossibilidade de vida. Obrigado pela atenção.
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