quinta-feira, março 08, 2007

O salazarismo e a História

A imagem comum sobre o período da governação salazarista é a de um tempo em que nada acontecia. Mesmo pondo de lado os casos extremos da estereotipada “longa noite” da vulgata comunista ou do paraíso bucólico e tranquilo da mitologia ingénua de alguns adeptos. A visão vulgar geralmente aceite como pressuposto em qualquer troca de ideias encara essa época, e o Portugal dessa época, praticamente como realidades fora da História.
Todos, mais povo ou mais intelectuais, nos encontrámos já em situações em que sem pestanejar nem reflectir nos referimos a esses dias calmos e infindáveis. Um enorme parêntesis na nossa agitada e difícil existência colectiva.
Já houve até quem, tendo responsabilidades governativas, tenha desabafado comigo com um suspiro fundo e sofrido que então era fácil governar, não havia nada destas chatices que infernizam agora essa dificílima tarefa.
Dei por mim a pensar que a análise crítica da generalização desta imagem é fundamental para a compreensão do que foi o regime salazarista e para a sua justa valoração. Com efeito, o fenómeno que descrevi relaciona-se indubitavelmente com um estilo próprio de governar que é a marca inconfundível de Salazar.
Ele quis que os portugueses vivessem habitualmente; e os portugueses viveram habitualmente, desligando-se até de tudo o que ameaçava essa habitualidade.
Porque, e aqui chego aonde queria chegar, estamos efectivamente perante um efeito de ilusão, um erro tremendo que impede completamente a compreensão da história de Portugal durante a maior parte do século XX e a correcta avaliação dos sucessos e das personagens.
Salazar e o salazarismo ocupam um espaço temporal que abrange as décadas de 30, 40, 50 e 60 do século passado.
Se procurarmos situar e enquadrar interna e externamente a vida política do regime e do seu criador constatamos facilmente como essa visão da existência amena e pacífica está longe da realidade.
Salazar surge no poder e estrutura um regime após vários anos de lutas políticas internas, com golpes e contra-golpes, revoluções e ameaças disso, com facções de uma ponta a outra do espectro político, em número hoje difícil de imaginar, digladiando-se pelo poder por todos os meios possíveis.
Depois desses primeiros anos trinta, em que o poder estava realmente nos canos das espingardas e toda a gente tinha espingardas, pareceu por breves instantes que o regime tinha atingido a estabilidade.
Todavia, surgiu logo à porta de casa o mais ameaçador desafio que algum governo português tinha enfrentado desde havia muitos anos: a guerra civil espanhola.
O território português não era invadido nem era palco de guerra desde as longínquas lutas civis do século XIX. Mas quem poderia garantir que não o seria, nesses anos de 1936 a 39 – e logo a seguir, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial?
O governo de Salazar teve que manter-se numa situação internacional que não era só volátil, como agora se ouve dizer – era explosiva, e a explosão parecia a todo o momento poder atingir-nos.
Foi assim o panorama durante os anos 30 e 40 – com descanso na frente interna ou na frente externa é que o regime nunca contou certamente.
Quanto a Salazar, até ao atentado à bomba teve que sobreviver.
Do ponto de vista interno, a oposição reflectia o que se passava externamente: em 1945 era ideia geral que o regime duraria pouco mais. Quem parecia imparável a cavalgar a onda, empurrada pelos ventos da História, era o MUD, o juvenil e o senil.
Quanto às relações internacionais, não vale a pena sublinhar os prodígios de equilíbrio necessários para sobreviver enquanto todo o mundo em volta estava em chamas.
Chamo apenas a atenção para uma circunstância hoje em dia normalmente esquecida: durante o tempo da governação de Salazar as relações externas não tinham que contar apenas com um vizinho e mais umas ligações formais a Estados com que não temos contradição de interesses, porque não podemos.
Nesse tempo era preciso governar sabendo que tínhamos fronteiras muitas e variadas. O Japão e a Austrália eram nossos vizinhos, e invadiram Timor. A Índia nasceu paredes meias com a nossa casa de há 500 anos. O Daomé ou a África do Sul tinham fronteiras com Portugal, reconhecidas por toda a comunidade internacional.
Não era o mesmo dirigir uma diplomacia assim ou as relações públicas do Estado português actual.
Contra todas as previsões, sobreviveu o regime, e Salazar, às tempestades que assolaram a Europa nos anos 30 e 40, e aos esforços dos oposicionistas. E logo entrou numa década de 50 em que começou por enfrentar a grande ofensiva que culminou na campanha de Norton de Matos e acabou a ressacar da campanha de Humberto Delgado.
Os anos 50 são a década em que o mundo presenciou a grande vaga dos anticolonialismos, soprados pelas potências ascendentes que tinham ganho a grande guerra, União Soviética e Estados Unidos, e mais uns “não-alinhados” que obviamente também sonhavam em ser potências algum dia.
Todos queriam varrer o que restava do poderio das potências europeias, porque cada um tinha nisso a sua própria conveniência.
Portugal estava evidentemente na linha de fogo. Ainda nessa década de 50 veio a dar-se a ocupação de São João Baptista de Ajudá e também a de Dadrá e de Nagar Aveli.
Amenos, os anos 50? O regime gostava de falar dos planos de fomento, mas evoquemos os episódios relacionados com Norton de Matos, Quintão Meireles ou Humberto Delgado, ou lembremos as nuvens negras sobre todas as possessões ultramarinas da nação, para se perceber como está longe da verdade qualquer ideia de facilidade.
Os anos 60 já estão mais perto de nós. Começaram para Portugal e para o regime com o ataque ao quartel de Beja, com o assalto ao Santa Maria, com a invasão e ocupação de Goa, Damão e Diu, com as guerras lançadas sobre Angola, Moçambique e Guiné.
Nenhuma nação europeia teve que viver sob um esforço tão desproporcionado como manter durante anos e anos três guerras em três frentes situadas a milhares de quilómetros de distância da metrópole, com forças em combate dispersas por territórios muito mais vastos do que o conjunto de toda a Europa Ocidental.
A frente interna ia desde a agitação estudantil, do princípio ao fim da década, até ao terrorismo aberto, com a ARA do PCP, as Brigadas Revolucionárias, ou a LUAR de Palma Inácio. Pelo meio, as organizações da oposição oficial, desde os comunistas de Cunhal e os socialistas de Soares até aos católicos e monárquicos progressistas, que despertavam cheirando-lhes a fim de regime.
Por vezes aconteceu-me ouvir umas críticas sábias e zombeteiras sobre a campanha do trigo dos anos 30, chamando a atenção para os evidentes estragos ecológicos causados por essa cultura imposta artificialmente em solos que não são os adequados a essa finalidade, para além da irracionalidade económica subjacente a esse cultivo em meio tão pouco favorável. Fiquei sempre a pensar onde teriam os iluminados críticos ido buscar trigo para alimentar a população na conjuntura desses anos 30 e 40, se por acaso tivessem então o encargo de governar e se tivessem coerentemente recusado a tão obscurantista opção. Saberão eles que mesmo assim os portugueses ainda tiveram que sofrer a escassez e o racionamento nos anos mais duros de 40?
Outras vezes tenho encontrado doutas lamentações sobre o fraco nível de crescimento económico verificado em Portugal nesses anos 60 em que Salazar governou, logo enquanto os outros, desde o Japão à Espanha, rebentaram a escala do desenvolvimento. Terão esses críticos conhecimento dos números, e feito a comparação destes levando em conta as condicionantes nuns e noutros sítios?
Em resumo: Salazar governou até 1968. O regime, por inércia, ainda durou mais uns anos. Quando foi que teve vida fácil?
Se houve governante que nunca “viveu habitualmente”, porque nunca lhe foi possível, porque as circunstâncias internas e externas nunca lhe permitiram esse descanso de alma, foi certamente Salazar.
Se houve regime sempre no fim da navalha, sob permanente ameaça, e conseguindo apesar disso transmitir a sensação de estabilidade e de harmonia, esse foi certamente o Estado Novo.
Ao que parece, conseguiu que os portugueses em geral sentissem que viviam assim, habitualmente. Julgo que ele se sentiria satisfeito com isso.

10 Comments:

At 1:43 da manhã, Blogger António Viriato said...

Bom artigo, feito com seriedade e paciência, para chamar à realidade tanto espírito contemporâneo perturbado, exaltado ou equivocado com que por aí topamos.

Não é preciso ser Salazarista, para ficar irritado com tanto anti-fascismo descocado e serôdio, subitamente despertado por simples concurso televisivo, de origem britânica, bem democrática, portanto, mas sem credenciais de um qualquer imaginado tribunal histórico.

Quando poderemos, finalmente, avaliar com serenidade, com equilíbrio, com sensatez, a figura histórica de Salazar ?

 
At 2:14 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Sem tirar nem pôr.
Parabéns pela exposição e análise que fez do anterior Regime. E muito fez Salazar tendo em conta os condicionamentos com que se deparou nesses quarenta anos. Se não quisermos citar mais nenhum feito digno de nota e há muitíssimos, basta que nos cinjamos a essa extraordinária Exposição do Mundo Português e o período em que foi realizada, que, segundo meus pais contavam, foi um acontecimento absolutamente extraordinário e único, citado e enaltecido internacionalmente (deixando a oposição a roer-se de inveja e, pelo facto, a proferir impropérios àcerca do governante e do País - como aliás sempre o fizera antes e continuou a fazer depois - e o mundo estupefacto e maravilhado pela sua sumptuosidade e beleza), qualquer coisa que só um País muito rico poderia ter-se dado ao luxo de realizar, tal como foi concebida e levada a cabo.
Devido ao respeito que Salazar lhe inspirava apesar de tudo - quanto mais não fôra pelas vitórias por ele conseguidas nas várias frentes de luta e não só a armada (a par de não poucas traições à Pátria e conspirações sofridas) com o mínimo de meios e homens, mas também e sobretudo pela dificílima neutralidade por ele negociada e obtida durante a Segunda Guerra Mundial, poupando desse modo ao Povo português e à Nação desgraças e sofrimentos mil - nunca ouvi da parte de meu pai, um republicano talhado à maneira antiga mas patriota acima de tudo, uma única palavra ou frase de desagravo em relação ao regime ou à pessoa de Salazar. Nunca por nunca ser. Quando muito e uma vez ou outra, simplesmente "Salazar é um político autoritário" e disto não passava. E tendo em conta que não gostava dele nem um só bocadinho, como naturalmente qualquer republicano que se prezasse, devo constatar que tal atitude foi obra. E por essa sua nobreza de carácter e patriotismo sem mácula estou-lhe duplamente agradecida.
Salazar, por tudo quanto fez em benefício do País e do Povo e ainda que se não goste dele como pessoa ou governante, merece o nosso máximo respeito. Isto é, merece-o da parte dos Portugueses que o são de facto, daqueles que amam incondicionalmente a sua Pátria.

Maria

 
At 4:28 da manhã, Blogger C said...

Muito lhe devemos.
Tenho acompanhado todos estes interessantes artigos, parabéns!

 
At 7:44 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Ao autor,
Tenho vários escritos e apontamentos todos condizentes com o que, tão correcta e sinteticamente, expôs.
Pedia-lhe o favor de me deixar copiar este texto.
Agradeço-lhe antecipadamente.

Nuno

 
At 9:31 da manhã, Blogger Manuel said...

Esteja à vontade!
Eu é que fico honrado com o apreço...
Obrigado!

 
At 3:08 da tarde, Blogger Francisco Múrias said...

Brilhante

 
At 4:28 da tarde, Blogger Marcos Pinho de Escobar said...

Grande texto.

 
At 4:29 da tarde, Blogger Marcos Pinho de Escobar said...

Grande texto.

 
At 7:45 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Parabéns pelo excelente texto.

 
At 8:41 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Muito obrigado, Manuel.

Nuno Soares Franco

 

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