Cortem-lhe a cabeça!
(um artigo de Luciano Amaral, no DN)
Portugal tem mesmo coisas engraçadas. Um grupo de maduros sem mais nada para fazer põe-se a telefonar para a televisão do Estado e "elege" Salazar como o "maior português" de todos os tempos. Foi quanto bastou para as nossas almas pensantes se mortificarem em reflexões espantosas sobre um sinistro salazarismo latente ou renascente. Parece que não eram só os maduros dos telefones que não tinham mais nada para fazer.
Dos múltiplos e vastos lençóis perpetrados sobraram dois excelentes artigos de Jorge Almeida Fernandes e Pedro Magalhães, ambos no jornal Público. Concentro-me no primeiro, por ter apreciado especialmente algumas considerações. Almeida Fernandes relembrou a atávica "dificuldade da esquerda em pensar o salazarismo", nunca ultrapassando o prisma da caricatura. Coisa que, como muito bem notou, "saiu-lhe cara". Recorda ele que, ao longo dos anos 60, Portugal conheceu as mais elevadas taxas de crescimento da sua História, viu os campos esvaziarem-se e o país urbanizar-se, viu nascer uma nova classe média, viu os costumes alterarem-se. E podia ter ido mais longe: também foi sob Salazar que Portugal entrou na "Europa", a Europa da Escandinávia, do Reino Unido, da Suíça e da Áustria, que se juntou na EFTA em 1960; também foi sob Salazar que o analfabetismo se reduziu drasticamente no País; também foi sob Salazar que começou a primeira expansão séria da Segurança Social (ainda com o nome de "Previdência"). Tudo coisas que podem ser feitas sem liberdade política. Dito de forma breve, foi sob o salazarismo que o País começou a "modernizar-se", no sentido que o termo adquiriu no século XX, algo que entretanto prosseguiu até hoje, agora incluindo também a tal liberdade política. Fernandes nota até como, por causa disto, a oposição se sentiu obrigada nos anos 60 a alterar o seu discurso: da crítica "antifascista" passou à crítica "anticapitalista", precisamente porque via o País aproximar-se dos índices do "centro" capitalista.
Para Fernandes, estranho é o "antifascismo" serôdio que agora deu em aparecer. E está muito bem estranhado. Na verdade, não se percebe a que "fascismo" se opõe ele. Ou talvez perceba: também as crianças têm os seus amigos e inimigos imaginários. Parece a rainha de copas de Alice no País das Maravilhas, que via adversários por todo o lado e passava o tempo a mandar cortar-lhes a cabeça.
Donde se conclui que o mais interessante não foi o resultado do concurso mas as reacções da intelligentsia nacional a ele. Esta intelligentsia mostrou que não percebeu, não quer perceber e provavelmente nunca perceberá o século XX português. De facto, o nosso século XX só poderá ser percebido se também o salazarismo for percebido de forma apropriada. O salazarismo é o momento pivot do século, que define o seu passado e o seu futuro imediatos. Prova disso é o facto de tanta gente precisar ainda hoje de definir o nosso regime relativamente a ele, nem que seja por oposição. O que, aliás, não é bom sinal. O regime deveria valer pelo que tem a oferecer de positivo e não por comparação com uma coisa que, pelos vistos, era tão notoriamente má.
A concentração da reflexão (?) na violência política do salazarismo impede muita gente de perceber que ele teve mais adesões do que se julga. A maior parte dos que estavam com ele não era por medo da pancadaria e da censura, mas por gostarem da solução. Não falo de casos raros e minoritários, do estilo do comunista Carlos Rates, que se passou para o regime. Falo sobretudo do pessoal político da I República, gente que teria de ser considerada de "esquerda" e aderiu em grande número ao salazarismo. De facto, o salazarismo dividiu esse pessoal político entre um grupo que se lhe opôs e outro que se lhe juntou (talvez a maioria). Basta pensar em alguns colaboradores de Salazar, que incluíam maçons, carbonários e constituintes de 1911, como Albino dos Reis, Manuel Rodrigues, Bissaia Barreto ou Duarte Pacheco. Porque é que isto aconteceu não se percebe com as banalidades costumeiras sobre o assunto.
Salazar não merece certamente ser considerado o "maior português", mas merece algo mais do que aquilo que apologistas e detractores andam por aí a dizer. Sobretudo, merece ser estudado e des-mitificado. Se isso já tivesse sido feito, provavelmente nem sequer ganharia o famoso reality show histórico. Como em muitas outras coisas, parece que o cidadão comum percebe melhor o que se passa do que tantas cabeças atafulhadas de livros e teorias. Quando perguntados sobre quem achavam ser o maior português, em sondagens que cumpriam os necessários requisitos técnicos, nomeadamente sem o enviesamento da amostra que existiu no concurso da televisão, os portugueses votaram nos clássicos Afonso Henriques, Camões ou D. Henrique. Mostraram ser bem mais crescidinhos do que as luminárias que querem guiar o nosso caminho.
Portugal tem mesmo coisas engraçadas. Um grupo de maduros sem mais nada para fazer põe-se a telefonar para a televisão do Estado e "elege" Salazar como o "maior português" de todos os tempos. Foi quanto bastou para as nossas almas pensantes se mortificarem em reflexões espantosas sobre um sinistro salazarismo latente ou renascente. Parece que não eram só os maduros dos telefones que não tinham mais nada para fazer.
Dos múltiplos e vastos lençóis perpetrados sobraram dois excelentes artigos de Jorge Almeida Fernandes e Pedro Magalhães, ambos no jornal Público. Concentro-me no primeiro, por ter apreciado especialmente algumas considerações. Almeida Fernandes relembrou a atávica "dificuldade da esquerda em pensar o salazarismo", nunca ultrapassando o prisma da caricatura. Coisa que, como muito bem notou, "saiu-lhe cara". Recorda ele que, ao longo dos anos 60, Portugal conheceu as mais elevadas taxas de crescimento da sua História, viu os campos esvaziarem-se e o país urbanizar-se, viu nascer uma nova classe média, viu os costumes alterarem-se. E podia ter ido mais longe: também foi sob Salazar que Portugal entrou na "Europa", a Europa da Escandinávia, do Reino Unido, da Suíça e da Áustria, que se juntou na EFTA em 1960; também foi sob Salazar que o analfabetismo se reduziu drasticamente no País; também foi sob Salazar que começou a primeira expansão séria da Segurança Social (ainda com o nome de "Previdência"). Tudo coisas que podem ser feitas sem liberdade política. Dito de forma breve, foi sob o salazarismo que o País começou a "modernizar-se", no sentido que o termo adquiriu no século XX, algo que entretanto prosseguiu até hoje, agora incluindo também a tal liberdade política. Fernandes nota até como, por causa disto, a oposição se sentiu obrigada nos anos 60 a alterar o seu discurso: da crítica "antifascista" passou à crítica "anticapitalista", precisamente porque via o País aproximar-se dos índices do "centro" capitalista.
Para Fernandes, estranho é o "antifascismo" serôdio que agora deu em aparecer. E está muito bem estranhado. Na verdade, não se percebe a que "fascismo" se opõe ele. Ou talvez perceba: também as crianças têm os seus amigos e inimigos imaginários. Parece a rainha de copas de Alice no País das Maravilhas, que via adversários por todo o lado e passava o tempo a mandar cortar-lhes a cabeça.
Donde se conclui que o mais interessante não foi o resultado do concurso mas as reacções da intelligentsia nacional a ele. Esta intelligentsia mostrou que não percebeu, não quer perceber e provavelmente nunca perceberá o século XX português. De facto, o nosso século XX só poderá ser percebido se também o salazarismo for percebido de forma apropriada. O salazarismo é o momento pivot do século, que define o seu passado e o seu futuro imediatos. Prova disso é o facto de tanta gente precisar ainda hoje de definir o nosso regime relativamente a ele, nem que seja por oposição. O que, aliás, não é bom sinal. O regime deveria valer pelo que tem a oferecer de positivo e não por comparação com uma coisa que, pelos vistos, era tão notoriamente má.
A concentração da reflexão (?) na violência política do salazarismo impede muita gente de perceber que ele teve mais adesões do que se julga. A maior parte dos que estavam com ele não era por medo da pancadaria e da censura, mas por gostarem da solução. Não falo de casos raros e minoritários, do estilo do comunista Carlos Rates, que se passou para o regime. Falo sobretudo do pessoal político da I República, gente que teria de ser considerada de "esquerda" e aderiu em grande número ao salazarismo. De facto, o salazarismo dividiu esse pessoal político entre um grupo que se lhe opôs e outro que se lhe juntou (talvez a maioria). Basta pensar em alguns colaboradores de Salazar, que incluíam maçons, carbonários e constituintes de 1911, como Albino dos Reis, Manuel Rodrigues, Bissaia Barreto ou Duarte Pacheco. Porque é que isto aconteceu não se percebe com as banalidades costumeiras sobre o assunto.
Salazar não merece certamente ser considerado o "maior português", mas merece algo mais do que aquilo que apologistas e detractores andam por aí a dizer. Sobretudo, merece ser estudado e des-mitificado. Se isso já tivesse sido feito, provavelmente nem sequer ganharia o famoso reality show histórico. Como em muitas outras coisas, parece que o cidadão comum percebe melhor o que se passa do que tantas cabeças atafulhadas de livros e teorias. Quando perguntados sobre quem achavam ser o maior português, em sondagens que cumpriam os necessários requisitos técnicos, nomeadamente sem o enviesamento da amostra que existiu no concurso da televisão, os portugueses votaram nos clássicos Afonso Henriques, Camões ou D. Henrique. Mostraram ser bem mais crescidinhos do que as luminárias que querem guiar o nosso caminho.
2 Comments:
Sinceramente, ninguém de bom senso e conhecedor da História, poderá concordar com o que publica.
Nuno
Há qualquer coisa de mórbido neste post.
O povo, da sua algibeira, votou em Salazar porque o estima e se lembra dele depois da sua morte há 40 anos.
De resto, tem como termo de comparação a trampa que vigora depois da revolução dos cravas tão "bem" aproveitada pelos comunistas que levaram a reboque os idiotas do reviralho.
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