Eurasismo : o fascínio das fantasias imperiais
Reproduzindo o artigo que publiquei na ALAMEDA DIGITAL:
Alguns leitores estarão a par da actual popularidade em certos círculos políticos e intelectuais, com expressão nomeadamente em Roma, Paris ou Berlim, para além do óbvio centro moscovita, de teorias geopolíticas que usam a denominação eurasismo.
A esses não escapará a notória diferenciação desse eurasismo digamos que “ocidental” em relação ao fenómeno ideológico, geopolítico e historiográfico que esteve no princípio da designação.
Não são de estranhar evoluções semelhantes, pois quase sempre as ideias ganham vida própria, e nos seus desenvolvimentos assumem até por vezes contornos que pouco se identificam com as origens, sobretudo sob o influxo de diferentes circunstâncias de tempo e espaço.
E frequentemente verifica-se que existem origens diferentes para realidades que circulam com a mesma denominação.
Para alguns dos actuais entusiastas do eurasismo a sua posição representa no essencial a expressão política das aspirações teorizadas há umas décadas por Jean Thiriart.
É a “Europa Unida de Dublin a Vladivostok”. É um sonho a que com mais acerto se chamaria “Grande Europa” do que “Eurásia”, se atentarmos no sentido do movimento da construção proposta.
A visão geopolítica aqui presente é a da “Europa Imperial”, coincidente com a doutrinação inicial de Jean Thiriart e neste ponto também com as posições geopolíticas de Julius Evola.
Nem Ocidente, nem Oriente, sim à Europa Imperial.
Todavia, com o desaparecimento da ameaça comunista, que preenchia o conteúdo que se rejeitava no segundo termo da equação, parece que o “eurasismo”, ao menos em alguns dos seus entusiastas, se foi deslocando no sentido de erigir o “Ocidente”, identificado com o americanismo, como o inimigo único global. Houve uma mudança nítida, de uma posição terceirista para uma concepção bipolar que chega a exprimir-se na oposição dicotómica entre a “talassocracia” e a “telurocracia”, o mar e a terra.
Esta evolução, curiosamente, aproxima o eurasismo das suas origens russas – e do debate fundamental sobre a estratégia nacional da Rússia pós-soviética.
Recorde-se que o eurasismo foi originalmente uma doutrina geopolítica desenvolvida na Rússia. Surgiu nos começos dos anos vinte do século passado, e veio depois a cair no esquecimento.
Após o fim da URSS a doutrina ganhou novo vigor, impulsionada sobretudo pelo filósofo e geopolítico russo Alexandre Douguine, por vezes com o nome de “neo-eurasismo”.
Ao que leio, esta doutrina estará agora muito espalhada na Rússia e no seu “estrangeiro próximo” (principalmente as ex-repúblicas muçulmanas soviéticas da Ásia Central, com o Kazaquistão, o Turqueménistão, o Tadjiquistão e a Quirguízia, e também na Turquia, no Irão, etc.).
Na sua formulação inicial, o eurasismo tinha sido teorizado cerca de 1920 por intelectuais russos da emigração (N. Troubetskoy, P. Savitsky, N. Alexeiev, etc.).
Afirmavam eles que a identidade russa resultara de uma fusão original entre os elementos eslavo e turco-muçulmano, que a Rússia constituía um “terceiro continente” situado entre o Ocidente (já então denunciado como materialista e decadente) e a Ásia.
O livro-manifesto do movimento chamava-se aliás “Tournant vers l’Orient” (Petr Savitsky, 1921).
Para os eurasistas russos os Urais não eram uma fronteira mas o centro mesmo da Rússia.
Os eurasistas demarcavam-se portanto quer dos nacionalistas clássicos quer dos eslavófilos. Sem serem comunistas, olhavam no entanto para a experiência soviética como a continuação da ideia imperial russa.
O neo-eurasismo de Douguine retoma estas ideias mas vai mais longe. Eleva a teoria de Mackinder que opunha talassocracia e telurocracia, “ilha mundial” (América) e “terra mundial” (Eurásia), ao nível de uma explicação da história.
A civilização talassocrática, anglo-saxónica, protestante, de espírito capitalista, seria irremediavelmente oposta à civilização continental, russo-euroasiática, ortodoxa e muçulmana, de espírito socialista.
O Ocidente, onde o Sol se põe, representa o declínio, a dissolução. A Eurásia representa o renascimento, é a terra dos deuses, pois que é lá que o sol se levanta.
O objectivo declarado do movimento neo-eurasista é constituir um grande bloco continental euroasiático para enfrentar em pé de igualdade a potência marítima “atlantista”, que representa o “mal mundial”, arrastando o mundo para o caos.
Deste modo a escatologia mistura-se à geopolítica.
No contexto da política russa, há ainda a destacar entre os diversos movimentos neo-eurasistas que emergiram durante os anos 1990 a corrente protagonizada por A. S. Panarin, da Academia das Ciências de Moscovo.
O seu discurso caracteriza-se por ser imediatamente político, embora muito elaborado teoricamente: o mundo posterior à bipolaridade é um mundo “pós-moderno”, marcado por novos valores (o sentido de colectividade o regresso da religião e do ascetismo, um forte sentimento ecológico, etc.) e à frente dele encontra-se naturalmente a Rússsia pós-totalitária.
Panarin defende para a Rússia, e para o seu “estrangeiro próximo”, uma geopolítica anti-ocidentalista baseada em postulados culturalistas que podemos identificar com os de Samuel Huntington.
Panarin procura sobretudo reabilitar filosoficamente e politicamente, a noção de império. Espera assim ultrapassar as rupturas ideológicas e estabelecer linhas de continuidade entre csarismo, União Soviética e época contemporânea. O império seria então a construção estatal “natural” do espaço euroasiático, única forma de garantir a preservação das culturas nacionais sem deixar de constituir a expressão da identidade russa. O neo-eurasismo de Panarin propõe assim ao seu país uma nova ideologia identitária apresentada como capaz de evitar qualquer divisão nacionalista ao definir uma Rússia tanto russo-ortodoxa como turco-muçulmana.
As ideias eurasistas nunca constituíram, até agora, uma qualquer ideologia oficial na Rússia, mas permitiram uma nova grelha de leitura da história russa, essencial num tempo em que se coloca de modo premente a questão de saber o que é a Rússia.
Neste ponto, importa parar e reflectir sobre a compatibilidade entre este eurasismo “oriental”, cuja essência é a definição da identidade russa e a defesa da sua centralidade no mundo, com o eurasismo “ocidental” que foi referido no início (aquele que nasce fundamentalmente de visões geoestratégicas como o recorrente eixo Paris-Berlim-Moscovo).
Para quem se coloque na perspectiva da “terra mundial”, da Rússia-continente, a península asiática a que normalmente chamamos Europa não excede em importância as restantes periferias, como a Índia, a China, o Japão.
Para quem se situa (pese embora o seu repúdio do “Ocidente” e do “atlantismo”) na perspectiva de Paris, Roma ou Berlim, não parece que possa ser aceitável essa deslocação do centro de gravidade do que sempre considerou a Europa, apagada inevitavelmente nessa outra subalternização alternativa que seria a concretização da geo-estratégia moscovita.
O comum inimigo americano não parece ser cimento suficiente para dar consistência a uma tal confusão.
Alguns leitores estarão a par da actual popularidade em certos círculos políticos e intelectuais, com expressão nomeadamente em Roma, Paris ou Berlim, para além do óbvio centro moscovita, de teorias geopolíticas que usam a denominação eurasismo.
A esses não escapará a notória diferenciação desse eurasismo digamos que “ocidental” em relação ao fenómeno ideológico, geopolítico e historiográfico que esteve no princípio da designação.
Não são de estranhar evoluções semelhantes, pois quase sempre as ideias ganham vida própria, e nos seus desenvolvimentos assumem até por vezes contornos que pouco se identificam com as origens, sobretudo sob o influxo de diferentes circunstâncias de tempo e espaço.
E frequentemente verifica-se que existem origens diferentes para realidades que circulam com a mesma denominação.
Para alguns dos actuais entusiastas do eurasismo a sua posição representa no essencial a expressão política das aspirações teorizadas há umas décadas por Jean Thiriart.
É a “Europa Unida de Dublin a Vladivostok”. É um sonho a que com mais acerto se chamaria “Grande Europa” do que “Eurásia”, se atentarmos no sentido do movimento da construção proposta.
A visão geopolítica aqui presente é a da “Europa Imperial”, coincidente com a doutrinação inicial de Jean Thiriart e neste ponto também com as posições geopolíticas de Julius Evola.
Nem Ocidente, nem Oriente, sim à Europa Imperial.
Todavia, com o desaparecimento da ameaça comunista, que preenchia o conteúdo que se rejeitava no segundo termo da equação, parece que o “eurasismo”, ao menos em alguns dos seus entusiastas, se foi deslocando no sentido de erigir o “Ocidente”, identificado com o americanismo, como o inimigo único global. Houve uma mudança nítida, de uma posição terceirista para uma concepção bipolar que chega a exprimir-se na oposição dicotómica entre a “talassocracia” e a “telurocracia”, o mar e a terra.
Esta evolução, curiosamente, aproxima o eurasismo das suas origens russas – e do debate fundamental sobre a estratégia nacional da Rússia pós-soviética.
Recorde-se que o eurasismo foi originalmente uma doutrina geopolítica desenvolvida na Rússia. Surgiu nos começos dos anos vinte do século passado, e veio depois a cair no esquecimento.
Após o fim da URSS a doutrina ganhou novo vigor, impulsionada sobretudo pelo filósofo e geopolítico russo Alexandre Douguine, por vezes com o nome de “neo-eurasismo”.
Ao que leio, esta doutrina estará agora muito espalhada na Rússia e no seu “estrangeiro próximo” (principalmente as ex-repúblicas muçulmanas soviéticas da Ásia Central, com o Kazaquistão, o Turqueménistão, o Tadjiquistão e a Quirguízia, e também na Turquia, no Irão, etc.).
Na sua formulação inicial, o eurasismo tinha sido teorizado cerca de 1920 por intelectuais russos da emigração (N. Troubetskoy, P. Savitsky, N. Alexeiev, etc.).
Afirmavam eles que a identidade russa resultara de uma fusão original entre os elementos eslavo e turco-muçulmano, que a Rússia constituía um “terceiro continente” situado entre o Ocidente (já então denunciado como materialista e decadente) e a Ásia.
O livro-manifesto do movimento chamava-se aliás “Tournant vers l’Orient” (Petr Savitsky, 1921).
Para os eurasistas russos os Urais não eram uma fronteira mas o centro mesmo da Rússia.
Os eurasistas demarcavam-se portanto quer dos nacionalistas clássicos quer dos eslavófilos. Sem serem comunistas, olhavam no entanto para a experiência soviética como a continuação da ideia imperial russa.
O neo-eurasismo de Douguine retoma estas ideias mas vai mais longe. Eleva a teoria de Mackinder que opunha talassocracia e telurocracia, “ilha mundial” (América) e “terra mundial” (Eurásia), ao nível de uma explicação da história.
A civilização talassocrática, anglo-saxónica, protestante, de espírito capitalista, seria irremediavelmente oposta à civilização continental, russo-euroasiática, ortodoxa e muçulmana, de espírito socialista.
O Ocidente, onde o Sol se põe, representa o declínio, a dissolução. A Eurásia representa o renascimento, é a terra dos deuses, pois que é lá que o sol se levanta.
O objectivo declarado do movimento neo-eurasista é constituir um grande bloco continental euroasiático para enfrentar em pé de igualdade a potência marítima “atlantista”, que representa o “mal mundial”, arrastando o mundo para o caos.
Deste modo a escatologia mistura-se à geopolítica.
No contexto da política russa, há ainda a destacar entre os diversos movimentos neo-eurasistas que emergiram durante os anos 1990 a corrente protagonizada por A. S. Panarin, da Academia das Ciências de Moscovo.
O seu discurso caracteriza-se por ser imediatamente político, embora muito elaborado teoricamente: o mundo posterior à bipolaridade é um mundo “pós-moderno”, marcado por novos valores (o sentido de colectividade o regresso da religião e do ascetismo, um forte sentimento ecológico, etc.) e à frente dele encontra-se naturalmente a Rússsia pós-totalitária.
Panarin defende para a Rússia, e para o seu “estrangeiro próximo”, uma geopolítica anti-ocidentalista baseada em postulados culturalistas que podemos identificar com os de Samuel Huntington.
Panarin procura sobretudo reabilitar filosoficamente e politicamente, a noção de império. Espera assim ultrapassar as rupturas ideológicas e estabelecer linhas de continuidade entre csarismo, União Soviética e época contemporânea. O império seria então a construção estatal “natural” do espaço euroasiático, única forma de garantir a preservação das culturas nacionais sem deixar de constituir a expressão da identidade russa. O neo-eurasismo de Panarin propõe assim ao seu país uma nova ideologia identitária apresentada como capaz de evitar qualquer divisão nacionalista ao definir uma Rússia tanto russo-ortodoxa como turco-muçulmana.
As ideias eurasistas nunca constituíram, até agora, uma qualquer ideologia oficial na Rússia, mas permitiram uma nova grelha de leitura da história russa, essencial num tempo em que se coloca de modo premente a questão de saber o que é a Rússia.
Neste ponto, importa parar e reflectir sobre a compatibilidade entre este eurasismo “oriental”, cuja essência é a definição da identidade russa e a defesa da sua centralidade no mundo, com o eurasismo “ocidental” que foi referido no início (aquele que nasce fundamentalmente de visões geoestratégicas como o recorrente eixo Paris-Berlim-Moscovo).
Para quem se coloque na perspectiva da “terra mundial”, da Rússia-continente, a península asiática a que normalmente chamamos Europa não excede em importância as restantes periferias, como a Índia, a China, o Japão.
Para quem se situa (pese embora o seu repúdio do “Ocidente” e do “atlantismo”) na perspectiva de Paris, Roma ou Berlim, não parece que possa ser aceitável essa deslocação do centro de gravidade do que sempre considerou a Europa, apagada inevitavelmente nessa outra subalternização alternativa que seria a concretização da geo-estratégia moscovita.
O comum inimigo americano não parece ser cimento suficiente para dar consistência a uma tal confusão.
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