A direita que não quer ser
O meu contributo para o mais recente número da ALAMEDA DIGITAL. A direita, essa desconhecida.
Aceitando os dados oferecidos pela experiência histórica, é forçoso constatar que a direita existe. Tem existido sempre, na vida política contemporânea, uma esquerda que se identifica e uma direita identificável. Pese embora a frequente ausência de autoidentificação, esta é geralmente encontrável e localizável, em cada confrontação política.
Penso por isso que, ainda que não diga o nome, parece não suscitar dúvidas a sua existência – com o respeito devido aos que já explicaram que ela não existe.
Já quanto aos que sustentaram que a direita é uma invenção da esquerda, desde que com isso não se entenda a falta da sua existência real parece-me mais difícil negar-lhes significativa razão. Efectivamente, pode observar-se que a direita não gosta de ser, e nunca gostou.
Esse facto aliás esteve na origem da tese de um politólogo que já foi célebre segundo o qual se um indivíduo diz que não é de direita nem de esquerda podemos ficar certos que é de extrema-direita. A dupla negação traduz a identidade.
Tanto entre os que teorizaram a inexistência da direita (gente firmemente direitista), como entre os que defenderam que a direita foi inventada pela esquerda (pessoal não menos direitista), como entre os que concluíram que a negação da dicotomia esquerda-direita era a essência do direitismo (intelectuais de esquerda) o que se nota é que a direita resiste ao rótulo, foge à identificação, recusa a definição e a identidade.
Pode realmente ter-se por fundamentalmente correcto que a direita teve geralmente a sua situação determinada a partir da esquerda.
A direita é em geral a não-esquerda, não se assume, disfarça-se de centro, às vezes diz-se o centro-direita, e no tempo comum encolhe-se e esconde-se.
Consequentemente, nada tem de estranho que habitualmente a direita apareça como reacção. São as ideias e as iniciativas da esquerda que assinalam esta e é a sua rejeição que demarca a direita.
Este fenómeno implica uma extraordinária debilidade no confronto político.
Fazer política é uma actividade em que uns quantos que estão convencidos forcejam por convencer os que não têm as suas convicções, e na sua esmagadora maioria não têm convicção nenhuma.
Quem se apresenta ao debate afirmativo, seguro, firme, vivendo a sua verdade, leva vantagem.
Ora a esquerda apresenta-se forte na sua identidade, de bandeira erguida, orgulhosa de ser, proclamando as suas ideias e avançando nos seus planos políticos.
E a direita surge geralmente atrasada, contrafeita, a fazer o contraponto – e sem ousar dizer o nome. Opõe-se, mas não passa de ser oposição. Aparece para dizer não, muitas vezes quando é insustentável persistir no sim, mas geralmente fica-se por aí. Não raras vezes a direita acaba por chegar ao poder; mas quase sempre porque a inépcia e as asneiras da esquerda comprometem o exercício a que esta se lançou.
Fica então a direita temporariamente a gerir o que a esquerda lhe deixa, umas vezes mal e outras vezes pior. Porém, a superioridade da esquerda, a sua famosa superioridade moral, permanece intocada. O que se conclui nessas ocasiões é que a esquerda é necessariamente boa, e generosa, tem as melhores ideias e excelente coração, mas não sabe gerir. Pensa bem, mas gere mal. E a direita cala e consente: vai gerindo. Até os desastres da esquerda. Algum tempo depois, repete-se o ciclo. A esquerda regressa e a direita reage, aflita e a correr atrás dos acontecimentos.
A falta de autoestima e de consciência de si tem ainda outras consequências curiosas.
Por exemplo, impressiona ver como tantas vezes as organizações políticas de direita insistem enfaticamente logo na sua apresentação em afirmar que são algo de radicalmente novo, rejeitando qualquer ligação a formas e modelos passados. Com essa atitude não são os do passado que perdem, são os do presente que se encontram subitamente num processo político que é cumulativo, feito de aquisições sucessivas, de evoluções e transformações, e em que tudo o que existe hoje está em relação com o que existiu ontem - mas esbracejando para negar influências, heranças, continuidades.
Vão tão longe na sua teimosa originalidade que estão sistematicamente a partir do zero, a arrancar do nada. Com a preocupação de não imitar, parece até que se negam a aprender.
A esquerda ostenta a sua história e genealogia, exibindo-as em tons épicos e heróicos – mesmo que seja preciso inventá-las ou pintá-las a gosto.
A direita esquece e esconde, na tentativa de se demarcar do passado e aparecer sem carga histórica – deixando à esquerda o domínio do passado e da história.
E o pior é que desse impulso de autonegação tem resultado um verdadeiro desconhecimento de si. A direita, que deveria ser forte em história, em raízes e memórias, apresenta-se hoje no terreno político, não raramente, despida de referências, de ideias, de fundamentos. Vai pelo imediatismo, pelo que está a dar, mobiliza-se pelo circunstancial.
Como é lógico, desse modo pode às vezes apanhar uma boa onda e ter o seu momento, mas inevitavelmente a onda desfaz-se e o momento passa. E não fica nada.
Outro fenómeno curioso que radica na mesma vontade de não ser é a extraordinária propensão da direita para o que Molnar chamou “o falso herói contra-revolucionário”. É realmente espantoso observar a facilidade com que as direitas na história se aprestaram em levar às costas personagens que patentemente reuniam todos os requisitos para comprometer as suas causas e princípios – só porque na aparência exterior, por uma ou outra característica, na pose ou na oratória, ostentavam algum traço grato à sensibilidade e à estética direitista.
Apesar das repetições amargas, a tendência para o “falso herói” persiste inalterável - desde que pareça ser, há fortes probabilidades de ser aceite como sendo, por muitos que o lamentarão depois por muitos e amargos anos (a direita diz-se com muita frequência traída, depois de ter feito o que era preciso para tal).
Perguntarão os leitores onde pretendo chegar com estas considerações mal alinhavadas. Obviamente, como calculam, é na direita portuguesa que estou a pensar, mesmo quando o discurso divaga. Dizer que a conheço bem, não seria verdade. Os apontados hábitos de ocultação são por cá mais fortes ainda do que em outros lugares. Aqui, por atavismo entranhado, até a política é sentida como coisa vergonhosa e a evitar. Políticos são só os outros. Com isso de não nos metermos em política até assistimos ao insólito de um regime que perdurou mais de 40 anos com geral agrado e aceitação não ter na altura da sua queda nenhum defensor ou partidário (nem mesmo entre os seus ministros). Ora quem de fazer política faz cruzes de ser de direita benze-se e arrenega.
Não é possível, portanto, avaliar com nitidez o que seja a direita em Portugal actualmente, e onde estará ela, e qual a sua força, e qual o seu futuro. Uma vez admitido que existe, ela andará por aí, provavelmente disfarçada com outros nomes e outros rostos. Com a confusão não se pode saber o que é autêntico e o que é fingimento.
Confesso-me por tudo incapaz de análises e prognósticos, e frustrado por essa confessada incapacidade. Mas um axioma me parece seguro, e dele tenho a certeza. Deixo-o aqui sintetizado e sublinhado, para que seja tido em conta na hora de se pensar em algum futuro para a direita.
É este:
O primeiro passo para ser é realmente querer ser.
1 Comments:
Um artigo excelente, dentro da linha a que já nos habituou, identificando os handicaps de que a direita padece e dos quais nunca mais se livra. Já o havia lido na A.D., pelo que já o conhecia desde há dias.
Maria
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