quarta-feira, julho 11, 2007

Palavras de outros

Recuo civilizacional
(Uma crónica de José António Saraiva)

Existe a ideia generalizada de que o movimento das sociedades se faz sempre para diante. E que esse movimento é necessariamente bom. Por isso, a palavra ‘conservador’ tem uma conotação negativa e a palavra ‘progressista’ significa um
elogio.
Mas uma coisa e outra nem sempre são verdadeiras. Na marcha das sociedades há avanços e recuos – e nem todo o progresso é bom. Há períodos em que o movimento da História se acelera e outros em que se verificam recuos civilizacionais. Existem momentos em que a História parece estar a chegar ao fim e outros em que se cheira o futuro e tudo parece em aberto.
Quando eu era criança havia uma colecção de cromos chamada Raças Humanas. Este nome hoje seria impossível, porque a palavra ‘raça’ foi banida do vocabulário. Mas o certo é que era uma colecção muito instrutiva. Através dela aprendíamos outros usos e costumes, percebíamos a existência de outras culturas, tomávamos conta da diversidade do planeta, conquistávamos outros horizontes.
Os cromos eram vendidos em pequenos envelopes fechados que custavam quatro tostões (40 centavos) e cada pacote continha três cromos. O momento da abertura do envelope era um momento sagrado e de grande expectativa: tratava-se de ver se já tínhamos ou não os cromos que vinham no interior. Se já os tínhamos, dizíamos que eram ‘repetidos’. Como na infância os miúdos têm uma memória infalível e que parece inesgotável, mal olhávamos para um cromo sabíamos logo se era ‘repetido’ ou não.
Quanto mais a colecção se aproximava do fim mais a coisa se complicava – porque o número de cromos ‘repetidos’ que cada pacote trazia naturalmente aumentava. Havia, porém, uma facilidade: os últimos 30 cromos requisitavam-se directamente à editora.
Entre todos os cromos da colecção, aquele que melhor recordo – e que na altura me impressionou imenso – mostrava uma mulher negra com argolas pendentes nas orelhas e no nariz, e um prato entalado no lábio inferior, que era cortado e depois esticado até conter o prato, tornando-se disforme.
Aquilo, mesmo tendo em conta o exotismo, tornava-se-me difícil de entender, tão absurda era a situação e tão arrepiante era o aspecto daquela mulher. E congratulava-me com o facto de o progresso da Civilização banir tão anacrónicos costumes.
Um destes dias, num elevador de Lisboa, fiquei cara-a-cara com uma adolescente que irresistivelmente me fez vir à memória a imagem da jovem negra da colecção de cromos: tinha as orelhas perfuradas em vários sítios por argolas, outras duas argolas no nariz, um furo entre o lábio inferior e o queixo, ‘ornamentado’ com uma pequena esfera prateada, e, quando abria a boca, deixava ver mais uma esfera cravada na língua.
Mas os sinais de ‘regressão civilizacional’ não se circunscrevem aos chamados piercings.
Picasso e Matisse, dois dos maiores génios da arte contemporânea e talvez os seus pintores mais representativos, buscaram a inspiração na arte étnica, transportando para as telas a força de pinturas nativas que pouco evoluíram desde a arte rupestre.
Falo disto à vontade, porque aprendi a admirar Picasso e Matisse e pertenço a uma geração que os olha como deuses. Mas quando vemos os seus quadros e depois contemplamos Rembrandt, Velázquez, Rubens ou Zurbarán, temos inevitavelmente uma sensação de retrocesso – como se uma Civilização tivesse atingido o apogeu e depois voltasse ao princípio, necessitando de aprender tudo de novo.
E na música passou-se o mesmo.
Quando entramos numa discoteca, onde o gigantesco ruído ambiente anula todas as nuances melódicas, só se ouve distintamente um som, ritmado, cavo, massacrante: Pam!... Pam!... Pam!... Pam!... Pam!... E isto qualquer que seja a música. É o regresso ao tempo dos batuques, aos sons minimalistas, à selva. Mas mesmo quando se consegue ouvir a voz do vocalista, a sofisticação não é muito maior: ruídos guturais, gritos quase animais, grunhidos.
Também aqui se tem a mesma ideia de que se deitaram fora séculos de história, de cultura, de aprendizagem. Alguém, ouvindo estas músicas, diria que são muito posteriores às sinfonias de Beethoven, às sonatas de Mozart ou às óperas de Wagner? Não parecem estes novos batuques contemporâneos uma espécie de provocação, uma resposta grotesca aos mestres da música, mostrando-lhes que pregaram no deserto dando pérolas a uma Humanidade que as não merecia?
E que dizer das danças? Do agitar frenético dos corpos nas discotecas de Vila Real de Santo António a Paris, Londres ou Berlim? Alguém dirá que por aqui passaram
muitos séculos de Civilização?
Falta ainda falar das tatuagens. De uma prática que eu julgava condenada, que há 40 anos estava circunscrita aos soldados que serviam nas colónias, e carinhosamente mandavam escrever no braço
Amor de mãe
Angola
(ou Guiné ou Moçambique)
1961
(ou outra data até 1974)
ou então aos ‘embarcadiços’, que ficavam longas temporadas no mar, longe das famílias, e adquiriam hábitos estranhos.
Pois bem: as tatuagens regressaram em força. Tatuam-se nomes, inscrições amorosas, desenhos (a preto e branco e a cores), deixando a pele salpicada de manchas escuras, quando não quase completamente coberta. E dando uma ideia de sujidade, de pouco asseio. Também aqui é flagrante o paralelo com certas práticas primitivas, em que se fazem desenhos na carne para toda a vida.
Vivemos, pois, uma época de regressão civilizacional.
Numa altura em que a ciência atinge uma velocidade vertiginosa e alcança um grau de sofisticação inimaginável, em que as novas tecnologias quebram todas as barreiras e nos maravilham diariamente com novas descobertas, os comportamentos humanos e as artes dão um salto para trás.
Há como que um regresso ao básico. Mesmo a arquitectura perdeu requinte – refugiando-se no mais elementar, no branco e nas linhas rectas, como que receosa
de cometer erros.
Que explicação haverá para isto?
Por que será que a um período de progresso técnico sem paralelo na História do Homem corresponde uma cultura urbana que deitou fora tudo o que aprendeu e se compraz na reprodução de modelos primitivos?

1 Comments:

At 8:11 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Farto-me de pensar nos porquês de tanta regressão social.
Haveria imenso a expôr, tudo temas a aprofundar.
Nem todos temos o mesmo tempo e, siceramente, o meu é demasiado curto - como será, ao fim e ao cabo, para todos nós...
Tenho para mim que o materialismo conquistou as sociedade ditas mais evoluidas onde os tais valores do passado - tão recente... - perderam qualquer significado Ainda há, felizmente, quem sinta essa saudade de bem estar social e em harmonia. Porém, é corrente qualquer família tradicional - que ainda há - deparar-se, sem saber porquê, com problemas horrorosos e insolúveis que lhes são trazidos pelos filhos, sobrinhos, próximos, todo gente a viver a adolescência.
Tudo isto acontece porque a institucionalização do facilismo tem sido acarinhada e decretada pelos sucessivos "poderes socialistas" que se instalaram nos países ditos desenvolvidos.
As crianças vêm das escolas - primárias, meu Deus! - ensinadas a comportar-se da maneira mais associal que se pode imaginar e que ninguém espera. Já vi, ouvi, presenciei e testemunhei as coisas mas disparatadas e indecentes que nunca me haviam passado pela cabeça... e pior, porque muitas vezes, os próprios professores eram, de alguma maneira, coniventes. Creio poder dizer à vontade que a grande maioria desses responsáveis, senão incentiva, pelo menos, defende ou então desinteressa-se.
Lutar contra isto, só com a estrutura de David.
Em miúdo, era giro ter correspondência com raparigas mais livres com quem, às vezes, viria a conseguir um encontro, quase sempre, naqueles tempos, em acampamentos. Foi o princípio.
Hoje, compreendo que, afinal, se estavam a dar os primeiros (seriam os primeiros?) passos para uma devassidão que não mais se refreou.
Piercings? Quem pensava nisso? Quem autorizava? No presente, quem impede?
Meninas grávidas? Uma vergonha! Acontecia, claro, mas as famílias resolviam esses problemas com discrição. Provavelmente, alguns recorriam ao aborto - outra vergonha - mas a maioria procurava soluções na intimidade. Hoje? A solução é o aborto ou uma desgraça pegada.
Palavrões? Claro que se proferiam! Mas com prudência, embora se dissesse que mulher séria não tem ouvidos. Hoje? Quem se atira ao ar por que um idiota qualquer resolve reconhecer a má família que tem e a pouca educação que recebeu?
A História mostra bem o que o chamado socialismo fez às nossas sociedades. A quem mais se pode assacar responsabidade pela desgraçada situação em que nos encontramos?


Nuno

 

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