Sem apelo nem agravo
Já aqui apontei como a recente reforma do Código de Processo Penal, fruto que foi da convergência de diferentes forças e interesses, aparece desprovida de qualquer lógica interna, de qualquer fio condutor que unifique o todo e em que seja possível descortinar coerência e harmonia.
São modificações avulsas, introduzidas a retalho, conforme as pretensões particulares das respectivas fontes, exprimindo não raro tendências opostas e contraditórias.
Têm sido criticadas as opções tomadas em sede de intercepções telefónicas, ou de segredo de justiça, ou de prazos e condicionantes da prisão preventiva, e mais umas quantas matérias em que aflorou com pujança a vontade de garantir a uma certa classe de arguidos uma situação de inexpugnável segurança.
Todavia, têm sido menos focadas outras alterações em que ao menos alguns advogados dos que aplaudem a reforma deveriam atentar melhor.
Refiro-me por exemplo às restrições ao recurso, onde parece ter-se ido longe demais, correndo o risco de vir a dar origem a graves complicações com o Tribunal Constitucional.
A sensação que fica é que se quis combater o abuso dos recursos, e acabou por atingir-se o próprio direito ao recurso de forma excessiva.
O próprio Ministério Público viu a sua faculdade de recorrer restringida, de um modo que não parece justificável, no art. 219º, n.º 1: não pode interpor recurso do despacho que aplicar, mantiver ou substituir medidas de coacção... a não ser “em benefício do arguido”.
Concretizando: se o juiz de instrução aplicar a medida de apresentação semanal na PSP sempre que o Ministério Público requerer a prisão preventiva, terá o MP que se conformar. Para piorar a situação do arguido a decisão não admite recurso, por mais gritante que seja a necessidade de medida mais grave que a aplicada. Se houver algum juiz de instrução que a isso se decida, podem ficar todos com termo de identidade e residência.
Em sede de instrução, foi modificado o art. 291º, onde se consigna por um lado que o juiz defere ou indefere os actos que lhe sejam requeridos conforme entenda que interessam ou não à instrução e pode determinar oficiosamente os que considerar úteis, e por outro lado estatuiu-se que desse despacho cabe apenas reclamação e do despacho que a decidir não cabe recurso. Anteriormente dispunha a lei que o despacho do juiz que deferia ou indeferia diligências requeridas era irrecorrível, mas do mesmo podia reclamar-se e seguidamente do despacho que decidisse a reclamação podia recorrer-se... Era substancialmente diferente, os sujeitos processuais afectados com a decisão podiam conseguir por via de recurso a apreciação superior da questão controvertida.
E não é necessário sublinhar a essencialidade desta matéria: como é bom de ver, o indeferimento de diligências requeridas pode significar o esvaziamento prático da fase de instrução.
Mais à frente, o art. 310º veio estabelecer que a decisão instrutória que pronunciar o arguido nos mesmos termos da acusação não admite recurso – nem mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
Compreende-se neste ponto a preocupação do legislador em combater abusos que afectavam a boa marcha dos processos: sobretudo depois da fixação de jurisprudência que determinava a subida imediata e em separado dos recursos interpostos sobre essas questões, havia uma tendência irreprimível para arguir nulidades, excepções e questões prévias a torto e a direito, o que causava uma situação de extraordinária sobrecarga adicional (pense-se nos processos com milhares e milhares de folhas que tinham que ser copiados vinte ou trinta vezes para que subissem em separado os recursos em causa) e provocava notória instabilidade e insegurança no processo (pensemos que este seguia para julgamento quando existiam por apreciar um sem número de recursos que poderiam ver a deitar por terra o julgamento que se realizasse).
Porém, afigura-se razoável pensar que os inconvenientes da regulamentação legal antes em vigor podiam ser evitados estatuindo-se simplesmente que esses recursos só subiriam com o que fosse interposto da decisão final. Dessa forma nem os sujeitos processuais ficavam impedidos de suscitar a apreciação superior dessas questões nem o uso da faculdade de recorrer entravava intoleravelmente a boa marcha do processo.
Agora abolir a possibilidade de recorrer para obviar aos abusos... é como curar uma dor de cabeça cortando a cabeça ao paciente.
Repare-se no que está em causa: pode haver crimes prescritos ou amnistiados, pode o procedimento criminal estar extinto por não ter sido exercido devidamente o direito de queixa, podem os factos terem sido entretanto descriminalizados, podem ocorrer mil e uma nulidades – que se o MP acusar de certa forma e o juiz de instrução se limitar a acolher a acusação nos seus precisos termos, desta decisão instrutória não cabe qualquer recurso. Não parece bem, nem sustentável face à jurisprudência constitucional respeitante ao direito ao recurso. Uma coisa é regular o uso e o abuso, outra coisa é excluí-lo.
São modificações avulsas, introduzidas a retalho, conforme as pretensões particulares das respectivas fontes, exprimindo não raro tendências opostas e contraditórias.
Têm sido criticadas as opções tomadas em sede de intercepções telefónicas, ou de segredo de justiça, ou de prazos e condicionantes da prisão preventiva, e mais umas quantas matérias em que aflorou com pujança a vontade de garantir a uma certa classe de arguidos uma situação de inexpugnável segurança.
Todavia, têm sido menos focadas outras alterações em que ao menos alguns advogados dos que aplaudem a reforma deveriam atentar melhor.
Refiro-me por exemplo às restrições ao recurso, onde parece ter-se ido longe demais, correndo o risco de vir a dar origem a graves complicações com o Tribunal Constitucional.
A sensação que fica é que se quis combater o abuso dos recursos, e acabou por atingir-se o próprio direito ao recurso de forma excessiva.
O próprio Ministério Público viu a sua faculdade de recorrer restringida, de um modo que não parece justificável, no art. 219º, n.º 1: não pode interpor recurso do despacho que aplicar, mantiver ou substituir medidas de coacção... a não ser “em benefício do arguido”.
Concretizando: se o juiz de instrução aplicar a medida de apresentação semanal na PSP sempre que o Ministério Público requerer a prisão preventiva, terá o MP que se conformar. Para piorar a situação do arguido a decisão não admite recurso, por mais gritante que seja a necessidade de medida mais grave que a aplicada. Se houver algum juiz de instrução que a isso se decida, podem ficar todos com termo de identidade e residência.
Em sede de instrução, foi modificado o art. 291º, onde se consigna por um lado que o juiz defere ou indefere os actos que lhe sejam requeridos conforme entenda que interessam ou não à instrução e pode determinar oficiosamente os que considerar úteis, e por outro lado estatuiu-se que desse despacho cabe apenas reclamação e do despacho que a decidir não cabe recurso. Anteriormente dispunha a lei que o despacho do juiz que deferia ou indeferia diligências requeridas era irrecorrível, mas do mesmo podia reclamar-se e seguidamente do despacho que decidisse a reclamação podia recorrer-se... Era substancialmente diferente, os sujeitos processuais afectados com a decisão podiam conseguir por via de recurso a apreciação superior da questão controvertida.
E não é necessário sublinhar a essencialidade desta matéria: como é bom de ver, o indeferimento de diligências requeridas pode significar o esvaziamento prático da fase de instrução.
Mais à frente, o art. 310º veio estabelecer que a decisão instrutória que pronunciar o arguido nos mesmos termos da acusação não admite recurso – nem mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
Compreende-se neste ponto a preocupação do legislador em combater abusos que afectavam a boa marcha dos processos: sobretudo depois da fixação de jurisprudência que determinava a subida imediata e em separado dos recursos interpostos sobre essas questões, havia uma tendência irreprimível para arguir nulidades, excepções e questões prévias a torto e a direito, o que causava uma situação de extraordinária sobrecarga adicional (pense-se nos processos com milhares e milhares de folhas que tinham que ser copiados vinte ou trinta vezes para que subissem em separado os recursos em causa) e provocava notória instabilidade e insegurança no processo (pensemos que este seguia para julgamento quando existiam por apreciar um sem número de recursos que poderiam ver a deitar por terra o julgamento que se realizasse).
Porém, afigura-se razoável pensar que os inconvenientes da regulamentação legal antes em vigor podiam ser evitados estatuindo-se simplesmente que esses recursos só subiriam com o que fosse interposto da decisão final. Dessa forma nem os sujeitos processuais ficavam impedidos de suscitar a apreciação superior dessas questões nem o uso da faculdade de recorrer entravava intoleravelmente a boa marcha do processo.
Agora abolir a possibilidade de recorrer para obviar aos abusos... é como curar uma dor de cabeça cortando a cabeça ao paciente.
Repare-se no que está em causa: pode haver crimes prescritos ou amnistiados, pode o procedimento criminal estar extinto por não ter sido exercido devidamente o direito de queixa, podem os factos terem sido entretanto descriminalizados, podem ocorrer mil e uma nulidades – que se o MP acusar de certa forma e o juiz de instrução se limitar a acolher a acusação nos seus precisos termos, desta decisão instrutória não cabe qualquer recurso. Não parece bem, nem sustentável face à jurisprudência constitucional respeitante ao direito ao recurso. Uma coisa é regular o uso e o abuso, outra coisa é excluí-lo.
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