Morte das ideologias?
Reproduzo aqui o pequeno texto que dei à discussão na mais recente edição da Alameda Digital.
As ideologias: ocaso ou eclipse?
Em 1964, Gonzalo Fernández de La Mora escreveu e publicou "O Crepúsculo das Ideologias".
A obra teve larga difusão, traduzida em múltiplas edições e abundante literatura crítica. Em português, viria a surgir só no Verão de 1973, pela mão de Henrique Barrilaro Ruas, que a traduziu para a Editora Ulisseia.
Entretanto, esqueceu.
Relendo-a agora, passados 43 anos sobre a sua feitura, o que se pode dizer?
O autor pronunciava-se pelo “fim das ideologias”, quer por via da convergência que observava entre elas quer daquilo a que chamava a “racionalização da política”.
Na sua posição torna-se porém difícil distinguir o que é convicção e o que é proposta, o que é conclusão e o que é programa – o que não deixa de ser irónico num autor que faz sua marca pessoal precisamente o apelo à racionalidade.
As ideologias não passariam da “projecção popular e prática de um sistema de ideias”, estariam no domínio da crença, e a adesão a elas resultaria de mecanismos identificáveis com a paixão irracional. Daí a sua malignidade, e o imperativo de as substituir por “ideias rigorosas, adequadas e concretas”. Como se vê, novamente a passagem rápida do diagnóstico para o projecto.
Surge fácil a tentação de perguntar se o autor ele próprio não estaria a ser vítima de uma crença, querendo expressar uma convicção.
E, pior, uma crença interessada.
Numa sociedade desenvolvida o “entusiasmo colectivo” tende a ser substituído por “consensos”?
A verdade é que a tecnocracia esclarecida propugnada por Gonzalo Fernandez de La Mora parece não ter passado satisfatoriamente a prova do tempo – como se exemplifica com a evolução política espanhola das décadas de sessenta e setenta.
Não custa admitir a existência de fenómenos como os descritos pelo pensador espanhol quando fala de “apatia política” e “convergência das ideologias”. Efectivamente, com essas ou outras denominações tem sido amplamente discutido quer o afastamento da generalidade dos cidadãos em relação à coisa pública quer a progressiva indiferenciação doutrinária das estruturas de poder, maxime partidos de governo, nas sociedades actuais.
Em ligação com tais evoluções, pode também referir-se a marginalização das afirmações ideológicas fortes, relegadas para as franjas (os “extremos” do linguajar comum).
Equivale isto a concluir pelo “fim das ideologias”?
Afigura-se-nos ingénuo, pelo menos, acreditar que quem tem poder não tem ideologia.
E também será precipitado pensar que quem tem ideologia está irremediavelmente condenado a não ter poder, nos tempos que correm ou nos que se seguirão.
As ideologias, como corolário inevitável da massificação, podem ver-se como Fernandez de La Mora as via: "subprodutos degenerados de uma actividade mental vulgarizada e patética".
(Curiosamente, não serão tanto assim num tempo em que estão relegadas para margens e redutos; tal situação garante-lhes certamente mais pureza do que em tempos em que dominavam o discurso político mais imediato).
Mas elas estão aí, e nenhum de nós conhece as voltas do destino. A História costuma ir ao enterro de todos os que lhe prognosticaram o fim.
Aceita-se o descritivo de Fernandez de La Mora sobre o objecto estudado. Lembra-me aliás Fernando Jasmins Pereira, que com espírito observava que as ideologias são sistemas de ideias que há muito deixaram de ser pensadas (fio-me na memória). Seria porém um erro subestimar o seu potencial, mormente em épocas em que a inquietação volte a desassossegar os espíritos. Um estremeção, e as sociedades agitam-se, revolvidas por vezes por vagas incontroláveis onde ninguém antes vira sinais de tempestade.
Eu não sei se as ideologias vivem o seu ocaso definitivo, ou um eclipse temporário, ou estão adormecidas enquanto a maré vai e volta.
Todavia, regressando ao diagnóstico de Fernandez de La Mora, confesso que me traz fundadas dúvidas. Para morrer, não é preciso tanto tempo.
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