quarta-feira, novembro 28, 2007

O declínio da verdade

(artigo para o semanário regionalista "O Almonda", de Torres Novas)

O constitucionalista Vital Moreira, falando há dias sobre o Tratado Reformador que visa dar forma constitucional à Europa, defendeu que o PS e José Sócrates não devem sentir-se obrigados a convocar um referendo para ratificar o tratado, tal como prometeram durante a última campanha eleitoral, porque «há certos compromissos que o pior que lhes pode acontecer é serem cumpridos».
Um ingénuo poderia estranhar a ligeireza com que se assumem esses compromissos, se empenha a palavra e se espalham promessas, mas está visto que isso são despropósitos próprios de quem não compreende a magnitude do que está em jogo.
Questionado sobre a invasão do Iraque, Durão Barroso explica que as posições que tomou na altura foram baseadas em informações erradas. “Vi os documentos, tive-os à minha frente, dizendo que havia armas de destruição maciça no Iraque. Isso não correspondeu à verdade”. Acrescenta que Bush e Clinton também estavam enganados, e com eles mais de meio mundo, subentende-se que todos pela mesma forma e com a mesma boa fé. Todavia, diz ele, não há que haver arrependimentos. A História logo mostrará o acerto do que se fez.
Eu confesso que gostava de ver mais esclarecimento nisso dos enganos, e mais sentido da responsabilidade. Ao menos, saber quem enganou quem; mas isto obviamente porque ainda estou anacronicamente preso a valorações caídas. Fiquemos, pois, com Durão Barroso; não se deve dar importância ao caso. O que conta são os fins (que eram excelentes, subentende-se).
Vive-se o ocaso da verdade? Que a cotação dela parece andar mais rasteira que barriga de jacaré, constata-se. É valor em que já ninguém aposta, na volátil bolsa de valores que é a vida dos nossos dias. Se fosse só no futebol, onde assumidamente o que hoje é verdade amanhã é mentira... mas não, a queda alastrou a todos os campos e tornou-se geral.
Já não há sector, área ou actividade onde a verdade seja apreciada e situada entre os valores mais altos.
Na política e na governação, então, houve um afundamento dramático. De atributo essencial à credibilidade e respeitabilidade da acção, e orgulho dos homens públicos, a pobrezinha foi degradada para uma posição de atavio incómodo e embaraçoso.
Mantendo a verdade a cotação que já teve, dificilmente os poderosos de hoje estariam nos seus pedestais. Se não fossem corridos e enxovalhados por multidões indignadas, como mentirosos e aldrabões compulsivos, ao menos teriam que recolher-se discretos e envergonhados para algum eremitério recatado. Em vez disso, vicejam e prosperam; e se mudam de poiso é sempre para poleiro mais vantajoso.
Triunfou no mundo a dúvida de Pilatos, que não era bem dúvida, mas cepticismo, desdém, ou cinismo. Quem pergunta “o que é a verdade?” mesmo estando defronte dela, é porque não crê, nem quer crer, na sua realidade. Os homens de hoje não acreditam na verdade, e habituaram-se a viver na mentira. Daí já não nasce revolta alguma, nem incómodo de maior. Consumou-se a transformação: a verdade não é mais critério valorativo, nem virtude a considerar nas relações sociais. Temo que com ela tenha sumido também a honradez, ou até talvez a simples decência, que em tempos eram património indispensável a quem se respeitasse e quisesse ser respeitado.
E lembro-me de Gustavo Corção: “o mundo frequentemente pretende nos insinuar como boa, até como excelente, a filosofia do fato consumado, pela qual, graças à ação dissolvente ou lubrificante do hábito e da repetição, passamos a considerar com naturalidade aquela mesma coisa que nos provocaria gritos de repulsa ou de susto se fosse apresentada de repente, nua e crua.
Não é provável que este caminho traga aos homens, às sociedades humanas, a felicidade, ou ao menos a tranquilidade de espírito para a buscar. Observa-se antes, se bem estou a ver, uma inquietação difusa e profunda que se instala em todas as manifestações humanas, como nuvem de mau estar que nos envolve. Não é de estranhar: Platão já explicava que todo o humano “sabe” o que é a verdade. Conhecer é recordar, descobrir algo já presente em nós. Podem os fumos dos tempos obscurecer esse conhecimento, pode a recordação ser vaga e longínqua, mas sempre subsistirá nas gentes o desconforto e a insatisfação perante a mentira. A nostalgia da verdade.

Manuel Azinhal

manuel.azinhal@gmail.com

1 Comments:

At 7:44 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Mentira... Justamente. É sob a capa de mentiras colossais que este pobre Povo está a ser mafiosamente dirigido e escandalosamente enganado há décadas.
Ontem tentei deixar aqui um comentário a 'glorificar' este 'belo' regime (não, não me enganei, já não é só o sistema que está ferido de morte) e os 'honradíssimos' políticos que o comandam designando-o sistemàticamente de sublime perante os portugueses e apondo-lhe o selo d'obra-prima, intocável portanto, mas é muito engraçado, sempre que tento demonstrar que o que se passa é exactamente o contrário do que eles apregoam adjectivando-o/os tal como ele e eles merecem, por norma o comentário desaparece como fumo... é muito estranho, realmente. Mas hei-de voltar aqui um dia destes precisamente ao assunto "mentira", nesta ou noutra caixa de comentários. O excelente artigo do Manuel merece que ele não caia no esquecimento.

Maria

 

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