Acabemos de vez com este tradicionalismo
(artigo já publicado na Alameda Digital)
Surge-nos frequentemente um tradicionalismo que revela uma curiosa similitude com o progressismo, a que constitui uma espécie de contraponto simétrico. Reproduz no entanto o mesmo esquema mental na visão da história e das sociedades humanas, invertendo os termos valorativos. Para uns o bom está no fim, para outros estava no princípio. Para uns temos caminhado sempre no rumo de um futuro radioso, para outros temos caído cada vez mais fundo, degrau a degrau.
Estes tradicionalistas caracterizam-se pela crença numa mítica tradição concebida como uma idade do ouro primordial, de que a civilização mais e mais se foi afastando, em consequência de uma queda ocorrida em momento incerto do passado. A decadência resultou do abandono da tradição, e tudo na nossa época sofre com esse afastamento. Atingimos assim uma idade das trevas, que teremos que suportar até que chegue o fim do ciclo.
Consequentemente, perante essa predeterminação dos tempos, o que cada um deve fazer é preocupar-se com o espiritual, o aperfeiçoamento interior, a imunização contra o espírito do tempo. Chega-se assim ao elogio da contemplação não se sabe bem de quê, e ao desprezo de toda a acção, tida de antemão como inútil.
Os progressistas, em geral nascidos do viveiro de milenarismos e profetismos que assolaram a Europa bem antes de se terem revestido das roupagens racionalistas e científicas com que se adornam, também acreditam na existência de um sentido da história, subjacente à marcha da humanidade. Para eles as sociedades humanas caminham inelutavelmente na via do progresso, entendido como um avançar constante rumo a um qualquer paraíso terreno. É flagrante o paralelismo com o pensamento tradicionalista mencionado – vendo uns no fim da linha o que os outros colocam no início.
Nota-se todavia um óbvio ilogismo no comportamento dos progressistas. É que se acreditam no carácter inevitável da marcha da história seria de esperar que se poupassem a esforços, e nada fizessem para influenciar o seu andamento. Se tudo está fatalmente destinado a acontecer de forma previamente determinada, segundo leis que são cognoscíveis mas que não estão dependentes das vontades dos sujeitos, então o melhor seria esperar sentados. Reside neste ponto a minha principal perplexidade perante o frenesim dos crentes no materialismo histórico, por exemplo. Mas, diga-se a verdade, não são eles os únicos militantes. Em geral os progressistas sempre arderam de zelo em fazer o que podem pela aproximação das sociedades aos ideais que eles mesmos conceberam como representando o tal aperfeiçoamento progressivo que traduziria a marcha inevitável da humanidade. Talvez tenham falta de confiança no prognóstico, mas não lhes tem faltado historicamente o empenho em fazer coincidir a realidade com os desejos.
Diferentemente, os tradicionalistas que comecei por referir adoptam uma atitude muito mais lógica. Se tudo tem que ser assim, deixemos que aconteça. Não está na nossa mão. Esperemos sentados.
A atitude é mais lógica, mas causa no plano político a maior das impotências. A bem dizer, indiferença assumida ou simplesmente lamentosa. A verdade é que essa atitude mental acarreta a passiva aceitação do que está, a capitulação fatalista perante todos os males que se apontam.
É preciso reconhecer os graves danos que semelhante filosofia provoca nas fileiras que deviam ser as nossas, aproveitando a crise de confiança nos próprios valores que fizeram a glória do Ocidente. O pessimismo desmobilizador, o derrotismo, o individualismo paradoxal dos seus seguidores, redundam na descrença radical perante o combate político.
Importa desmascarar a superficialidade desse pretensioso tradicionalismo, que mais não é do que uma vulgata de certas correntes orientais, obviamente mal digeridas, por vezes baseadas em leituras apressadas de alguns autores que mereciam melhor sorte. É um orientalismo de bazar, semelhante a tantos que invadiram o Ocidente.
A posição criticada é incompatível com a tradição ocidental, para quem a acção do homem é que modela o mundo. O valor de um homem ou de uma cultura está nas suas realizações, não nalguma obscura essência metafísica. É pela construção histórica concreta que temos que combater. Precisamos de homens de pensamento e de homens de acção, e ainda mais daqueles que reunirem as duas qualidades. O modelo do sábio oriental não é o nosso. A reflexão não pode ser o pretexto para um exercício gratuito, meramente contemplativo, desligado de toda a acção transformadora do mundo, construtora de cultura e de história.
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