quinta-feira, maio 08, 2008

Este tempo não é para velhos

(para o semanário regionalista O Almonda, de Torres Novas)

São os consensos, os lugares comuns, as atitudes generalizadas, as banalidades e vulgaridades de uma época os traços que melhor revelam o espírito do tempo.
Ao olhar-se com olhos de ver os hábitos dos dias que correm nota-se uma solicitude suspeita em relação às poucas crianças existentes. Estas reinam, idolatradas com todos os rituais do consumismo. Porém, a veneração da infância e o culto da juventude coexistem com o desprezo da velhice. Os avós desapareceram. Foram arrecadados em escusos e distantes lares. Têm direito a uma visita rápida e envergonhada. Hoje são eles a camada mais frágil e desprotegida da sociedade.
Pudicamente designados de terceira idade, como se houvesse outra idade a seguir-se a essa, os velhos foram afastados do convívio dos outros. Nas casas não cabem. Os filhos não têm tempo. Os netos não chegam a conhecê-los.
Aparecem na televisão só aqueles que podem fingir a juventude: o octogenário que corre a maratona, os septuagenários que casaram na capela do asilo, a classe de ginástica onde a média de idades é setenta e dois anos, o grupo de teatro da terceira idade.
Não os outros. Os que são todos os dias abandonados nos hospitais, porque ninguém os quer. Os que jazem encaixotados em recolhimentos improvisados, à espera da morte. Os que passam fome. Os que são vítimas de maus tratos, físicos e psicológicos. E não se queixam, por que não podem, e ninguém o fará por eles. Aqueles, e são tantos, a quem até as poucas economias e reformas são desviadas para sustentar o padrão de consumo dos filhos.
Nas sociedades contemporâneas os velhos formam hoje um enorme continente invisível, olhado com embaraço e vergonha – e medo, porque todos se antevêem ali, desgraçados num mundo virado para a religião da juventude. Não há declarações de direitos dos velhos, nem associações de protecção ao idoso, nem se fazem campanhas de alerta e prevenção a favor deles. As crianças, as que nasceram, essas sim: para elas se concentram todas as atenções, com sinceridade ou hipocrisia. Penso que deve ser do medo. Um esforço para contratualizar o futuro. Um seguro de velhice.
Não será surpreendente se esta transacção envergonhada vier a sair frustrada. As crianças de hoje, quando amanhã forem adultos e os velhos formos nós, vão provavelmente tratar-nos como nos vêem agora a tratar os nossos velhos. O futuro pode construir-se, mas dificilmente pode comprar-se.


Manuel Azinhal
manuel.azinhal@gmail.com

4 Comments:

At 11:18 da tarde, Anonymous Anónimo said...

como é que está a decorrer o julgamento do século?

 
At 7:27 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Texto muito bom.
Parabéns.

 
At 7:36 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Nú e crú.
A verdade assim é.
Nuno

 
At 8:31 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Como ninguém diz maiz nada parece que todos embatucaram perante a verdade que os espera e em que não querem acreditar.
Pois.
A verdade é que, mais dia menos dia, lá estão todos no Lar (doce lar) dos velhinhos já que não têm onde cair de mortos. Mesmo os que pagaram seguros caros estão definitivamente arrumados para um canto por que a família quer são os poucos tostões que eles anda têm nos bolsos.
Os putos de hoje estão-se inteiramente para o bem estar dos velhos, seja que for, mesmo os avós ou, por que não, os pais.
Quando acorgarem será tarde.
Melhor dizendo, "tarde piaste"!

Nuno

 

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