A violência só vem depois...
(escrito para o semanário regionalista O Almonda, de Torres Novas)
Se tentarmos fazer esse exercício de imaginação, rapidamente concluiremos que é muito difícil encontrar uma burrice que seja tão grande, tão grande que nunca tenha encontrado defensores dos mais ilustrados e brilhantes. Sobretudo, entre os especialistas.
Pensei isto, mais uma vez, ao deparar com as considerações de um especialista em violência escolar, tema que está agora em congresso (problema “complexo” e “multidimensional”, já se sabe).
Perguntado sobre as raízes do problema, explica o especialista:
“Apontaria em primeiro lugar as características físicas e arquitectónicas das escolas em relação à qualidade e conforto de espaços formais e informais, em segundo lugar a qualidade do projecto pedagógico de cada escola em paralelo com uma boa supervisão dos alunos e finalmente a existência de projectos de intervenção centrados na diminuição da violência (vítimas e agressores).”
Ficamos esclarecidos. Mudem-se as características físicas e arquitectónicas, criem-se comissões que redijam magníficos projectos pedagógicos e projectos de intervenção, e as escolas que actualmente produzem delinquentes e analfabetos passarão a ser um alfobre de santos e sábios.
Da mesma escola de pensamento devem ser os especialistas do Ministério da Justiça, que anunciaram ao mundo com espavento um portentoso programa de construção de um novo parque prisional. São as futuras prisões-hotéis, construídas de raiz, com muitas actividades de lazer, salas de cinema, bibliotecas recheadas, campos de futebol, salas de aula, espaços autónomos para visitas de amigos, famílias e advogados, e ainda unidades para os casais, recluso e cônjuge, de forma a terem mais privacidade. Daqui a muitas centenas de milhões de euros sairão dali só ex-reclusos ressocializados e integrados, cidadãos tão exemplares como se andassem na juventude socialista desde pequeninos.
Sobre a violência nos tribunais, assunto que explodiu por estes dias (e que receio fundadamente poder ainda dar muito mais que falar, quanto mais não seja pelo efeito de imitação que o destaque noticioso geralmente provoca) o tom dos especialistas ouvidos também se inclina muito para as condições de segurança dos tribunais, os espaços físicos em que funcionam, os edifícios, a vigilância, os equipamentos, a polícia. Não são, obviamente, questões menores. Mas não é certamente por aí que se explica o aparecimento da violência nesses locais. É fácil percorrer muitas dezenas de tribunais, de um extremo a outro do país, sem nunca encontrar nenhum que tenha as agora faladas “condições mínimas de segurança”. Nem mínimas nem máximas: nunca tiveram nenhumas. Seguindo por aí, fechavam todos. Os tribunais sempre foram locais de acesso inteiramente livre, sem qualquer constrangimento, onde todos podiam entrar e deambular à vontade, desde as salas de audiência às secretarias, desde as áreas destinadas ao público até às destinadas aos magistrados. Só há poucos anos começaram a surgir, em uns poucos, alguns típicos sinais dos tempos: polícias à entrada, detectores de metais, uns resguardos e separadores envidraçados... Mas isso é ainda exclusivo de dois ou três, em Lisboa e no Porto. Em regra mantém-se tudo por todo o lado como desde tempos imemoriais: de dia entra quem quer, e vai para onde quer, e de noite só não vai lá quem não quiser (basta normalmente um leve encontrão numa porta ou numa janela, caso esteja fechada).
Em nenhuma repartição ou organismo público é observável semelhante ausência total das, agora faladas, “condições de segurança”.
E - concluo agora com aquilo que tinha aqui guardado para dizer - a verdade é que não eram precisas. Por piores que fossem as instalações, por nulas que fossem as precauções de segurança. Nunca acontecia nada. (Facto que, a meu ver, constituía um bom motivo para congratulação e orgulho).
Não eram necessárias, essas preocupações de segurança. Agora, como resulta de tudo o que se vai sabendo, parece que são mesmo. O que mudou, evidentemente, em nada se relaciona com as realidades focadas nos discursos dos especialistas. Por esse caminho poderão conter-se ou atalhar-se as manifestações mais óbvias da doença. Mas o mal (este mal) está bem a montante, muito a montante.
Manuel Azinhal
manuel.azinhal@gmail.com
Se tentarmos fazer esse exercício de imaginação, rapidamente concluiremos que é muito difícil encontrar uma burrice que seja tão grande, tão grande que nunca tenha encontrado defensores dos mais ilustrados e brilhantes. Sobretudo, entre os especialistas.
Pensei isto, mais uma vez, ao deparar com as considerações de um especialista em violência escolar, tema que está agora em congresso (problema “complexo” e “multidimensional”, já se sabe).
Perguntado sobre as raízes do problema, explica o especialista:
“Apontaria em primeiro lugar as características físicas e arquitectónicas das escolas em relação à qualidade e conforto de espaços formais e informais, em segundo lugar a qualidade do projecto pedagógico de cada escola em paralelo com uma boa supervisão dos alunos e finalmente a existência de projectos de intervenção centrados na diminuição da violência (vítimas e agressores).”
Ficamos esclarecidos. Mudem-se as características físicas e arquitectónicas, criem-se comissões que redijam magníficos projectos pedagógicos e projectos de intervenção, e as escolas que actualmente produzem delinquentes e analfabetos passarão a ser um alfobre de santos e sábios.
Da mesma escola de pensamento devem ser os especialistas do Ministério da Justiça, que anunciaram ao mundo com espavento um portentoso programa de construção de um novo parque prisional. São as futuras prisões-hotéis, construídas de raiz, com muitas actividades de lazer, salas de cinema, bibliotecas recheadas, campos de futebol, salas de aula, espaços autónomos para visitas de amigos, famílias e advogados, e ainda unidades para os casais, recluso e cônjuge, de forma a terem mais privacidade. Daqui a muitas centenas de milhões de euros sairão dali só ex-reclusos ressocializados e integrados, cidadãos tão exemplares como se andassem na juventude socialista desde pequeninos.
Sobre a violência nos tribunais, assunto que explodiu por estes dias (e que receio fundadamente poder ainda dar muito mais que falar, quanto mais não seja pelo efeito de imitação que o destaque noticioso geralmente provoca) o tom dos especialistas ouvidos também se inclina muito para as condições de segurança dos tribunais, os espaços físicos em que funcionam, os edifícios, a vigilância, os equipamentos, a polícia. Não são, obviamente, questões menores. Mas não é certamente por aí que se explica o aparecimento da violência nesses locais. É fácil percorrer muitas dezenas de tribunais, de um extremo a outro do país, sem nunca encontrar nenhum que tenha as agora faladas “condições mínimas de segurança”. Nem mínimas nem máximas: nunca tiveram nenhumas. Seguindo por aí, fechavam todos. Os tribunais sempre foram locais de acesso inteiramente livre, sem qualquer constrangimento, onde todos podiam entrar e deambular à vontade, desde as salas de audiência às secretarias, desde as áreas destinadas ao público até às destinadas aos magistrados. Só há poucos anos começaram a surgir, em uns poucos, alguns típicos sinais dos tempos: polícias à entrada, detectores de metais, uns resguardos e separadores envidraçados... Mas isso é ainda exclusivo de dois ou três, em Lisboa e no Porto. Em regra mantém-se tudo por todo o lado como desde tempos imemoriais: de dia entra quem quer, e vai para onde quer, e de noite só não vai lá quem não quiser (basta normalmente um leve encontrão numa porta ou numa janela, caso esteja fechada).
Em nenhuma repartição ou organismo público é observável semelhante ausência total das, agora faladas, “condições de segurança”.
E - concluo agora com aquilo que tinha aqui guardado para dizer - a verdade é que não eram precisas. Por piores que fossem as instalações, por nulas que fossem as precauções de segurança. Nunca acontecia nada. (Facto que, a meu ver, constituía um bom motivo para congratulação e orgulho).
Não eram necessárias, essas preocupações de segurança. Agora, como resulta de tudo o que se vai sabendo, parece que são mesmo. O que mudou, evidentemente, em nada se relaciona com as realidades focadas nos discursos dos especialistas. Por esse caminho poderão conter-se ou atalhar-se as manifestações mais óbvias da doença. Mas o mal (este mal) está bem a montante, muito a montante.
Manuel Azinhal
manuel.azinhal@gmail.com
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