terça-feira, agosto 12, 2008

Marxismo e asma

(um novo velho artigo do meu sempre admirado Nelson Rodrigues)

Já lhes falei do meu amigo marxista. Sempre o encontro com a bombinha da asma. Ele próprio declara, com tenebroso humor, que se não fosse a bombinha estaria morto e enterrado desde a Primeira Batalha do Marne. Dizem seus amigos que seu marxismo e todo o seu horror à ordem capitalista são de fundo asmático.
Anteontem procurou-me, irritadíssimo. Chama-me para um canto: – “Preciso falar contigo.” Arquejava, e teve que usar a bomba. Fez tanto “suspense” que pergunto, interessado: – “Mas o que é que há?” Olhou para os lados e então, ainda ofegante, disse: – “Aquele teu artigo está de um reacionarismo!” – pausa, e repetiu, de olho rútilo e lábio trêmulo: – “De um reacionarismo, rapaz!”
Até hoje não sei se a sua irritação era mesmo irritação ou deslumbramento. Ainda perguntei: – “Meu artigo?” Ah, sou um autor sujeito a lapsos fatais. Quantas vezes me esqueço do que escrevi há meia hora? Foi ele quem me alumiou a memória: – “O artigo da fome!” Era verdade. Eu escrevera recentemente artigo sobre a fome de 1917, 18 e 19.
É de caso pensado que ponho as datas. E, com efeito, a fome muda o seu comportamento de época para época. Nos anos citados ela não tinha o apelo, o patético, a promoção dos nossos dias. Bem me lembro dos meus seis, sete anos. De vez em quando vinha gente bater na nossa porta: – “Um pedaço de pão! Um pedaço de pão!” Eis a palavra e a imagem: – pão. Há uns quarenta anos não vejo ninguém pedir pão a ninguém.
Outro dia ocorreu um episódio que me parece singularmente ilustrativo. Uma santa senhora deu pão a um mendigo. O sujeito apanhou o pão e o olhou, esbugalhado, como se não entendesse a esmola. E súbito deu-lhe uma ira, um ódio. Agrediu a senhora, deu-lhe uma surra de pão. A vítima pôs a boca no mundo. Com um rapa fulminante o mendigo a derrubou: e, por cima da senhora, queria enfiar-lhe o pão pela goela abaixo.
Assim se comporta a fome da nossa época. Vive do ódio. Outrora, não. Na Confissão que provocou o divertido horror do marxista asmático eu escrevia, justamente, sobre os famintos da minha infância. Ah, naquele tempo tínhamos por aqui uma fome sem raiva, sem agressividade, dócil, mansa e como que consentida.
Um dia houve um enterro em Aldeia Campista. Salvo engano, o morto era “Seu” Ferreira, português rico, dono de um armazém. Quatro cavalos de crepe e penacho puxavam o carro fúnebre. Na hora certa o enterro vai partir. E então acontece o seguinte: o cocheiro desmaia, simplesmente desmaia (caiu-lhe a cartola).
Corre-corre no portão. Dois ou três agarram o homem; dão-lhe tapinhas na cara. Finalmente, abre os olhos; arquejante, geme: – “Quero comer, quero comer.” E fazia o apelo por entre lágrimas. Foi carregado para o interior da casa enlutada. Lá dentro alguém improvisa um prato fundo de feijão com arroz. O cocheiro começa a comer. Súbito pára e, de boca cheia, pergunta: – “Tem uma pimentinha?”
Aquele homem não comia há dois dias. E não faltou à funerária. Lá estava, de cartola, fazendo o enterro de luxo. E, não fosse derrubado pela inanição, chegaria ao cemitério. Eis o que eu queria dizer: era uma fome sem Ministério do Trabalho, sem greve, sem reivindicações salariais. Ainda garoto, tivemos uma cozinheira que tinha um filho por ano, matematicamente. Chamava-se Hortência. Era uma fecundidade radiante. Dizia, na cozinha, esplêndida de vaidade: – “Tenho os meus filhos em pé.”
E assim chegou aos nove, dez, onze filhos. A fome levou nove. Exatamente nove filhos. Os mais resistentes morriam aos cinco, seis anos. Pois a mãe os enterrava sem pena, nem ressentimentos. Ter os filhos e perdê-los era a sua rotina. Ela própria não odiava a fome, e repito: não havia desespero, nem tristeza, na sua fome.
Muitos anos depois, vou a Caxias e a encontro lá. Já se tinham incorporado à vida brasileira os direitos trabalhistas. Falava-se, na época, que o novo salário-mínimo seria de seis mil cruzeiros antigos. A minha ex-cozinheira, já alquebrada, já avó, ralhava com o genro: – “Sei contos é demais. Onde já se viu? Seis contos é abuso.”
Claro que o marxista queria que eu apresentasse uma cozinheira retórica como “La Passionaria”. E, como não a descrevi derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas, o leninista me chamava de reacionário. Curioso é que ele escreve bem. Se deixasse de fazer concessões às esquerdas, seria capaz de obra-prima. Também a asma o prejudica literariamente.
O Brasil de minha infância não tinha assalto por isso mesmo: porque a fome não assaltava e digo mais, a fome ainda não assaltava. O assaltante não quer comer. Mata e fere para ter o supérfluo. Dirá alguém que estou falsificando a verdade. Mas insisto em que só a fome literária do Zola arromba padarias, e só ela pendura o padeiro num pedaço de pau.
Hoje há uma fúria. Quantos vivem da fome? Por exemplo: D. Hélder. Sempre teve gênio promocional e nunca foi um obscuro. Mas faltava ao D. Hélder anterior o dramatismo, a potência, a fama do D. Hélder da fome. A fome tem-no feito. Podíamos apresentar a fome como a autora de D. Hélder. Ele precisava ter, por fundo, a mortalidade infantil. Mas coisa curiosa! Os grandes indignados da fome não são as suas vítimas, mas os que não a têm. Sim, são os bem alimentados que vociferam e dão patadas.
Ainda ontem, uma grã-fina batia o telefone para mim. Reclamava de uma Confissão que tratava, justamente, da fome da Índia. E a excelente senhora agrediu-me como se eu fosse o culpado, da fome do Nordeste, da Índia, Paquistão, Biafra, e de todos as misérias passadas, presentes, e futuras.
Perguntou-me: – “Você acha que a Índia gosta de passar fome? Acha que a Índia gosta de ver as cinzas do próprio cadáver no rio? Sua literatura sobre a fome é desumana.” Eu poderia responder-lhe: – “Meu anjo, por que é que você não asfalta uma favela com seu colar de quinhentos milhões antigos?” Mas sou um tímido e um delicado. E conversei longamente no telefone.
Disse-lhe eu o óbvio total: – a fome é o mais antigo hábito dos hábitos humanos. Ora, um hábito não dói, não faz sofrer. Por exemplo: a Índia. Há seis mil anos que o cadáver é atirado no rio. E o cadáver já não se espanta mais. Lá, milhões de sujeitos não moram. E bebem, a mãos ambas, a água da sarjeta. Do outro lado da linha, a grã-fina esperneava: – “Isso é blague. Não brinque com coisas sérias.” Por fim, como ela tomava a verdade por piada, disse-lhe: – “As vítimas da fome sofrem menos. Quem se descabela, e soluça, e quer chupar a carótida das classes dominantes, são a senhora, D. Hélder e o Dr. Alceu.” Ao ouvir falar no Tristão, pulou: – “Você quer negar a bondade do Alceu?” Com a humildade de um torpe que fala de um santo, desejei que o Mestre tivesse milhares de boas ações, inclusive do Banco do Brasil, da Vale do Rio Doce, Petrobrás e outras. A grã-fina perdeu a paciência. Bateu o telefone.

1 Comments:

At 11:14 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Grande Nelson Rodrigues!

 

Enviar um comentário

<< Home