segunda-feira, setembro 15, 2008

O combate político e ideológico ganha-se nos media

Completa-se hoje, 15 de Setembro, um ano sobre a entrada em vigor da chamada "reforma das Leis Penais".
Acerca desse tema, o Correio da Manhã faz um resumo:
"Mais crime e menos presos. Este é o principal balanço das alterações penais que entraram em vigor há um ano. No primeiro dia foram soltos 115 reclusos, mas ao longo dos últimos 12 meses a diminuição da população prisional foi muito superior: menos 2038 presos, a maior queda de sempre acompanhada por uma onda de criminalidade sem precedentes."
Pode ler-se ainda mais sobre o balanço.
Obviamente, não haverá comemorações. A reforma, de súbito, já não tem pais.
E eis senão quando, por espantosa coincidência, a RTP2 estreia o que designou por "documentários sobre bairros problemáticos", cujo "objectivo é desconstruir estereótipos criados sobre estas zonas das cidades"...
São dez documentários, centrados nas histórias de vida de habitantes de bairros problemáticos de todo o país e que pretende desconstruir estereótipos.
Mas não se pense que são histórias de vida escolhidas ao acaso, ou então por serem especialmente representativas desses meios, um retrato tão fiel quanto possível da normalidade que aí se vive, entendendo-se essa normalidade como a que corresponde à regra, ou à experiência típica da zona.
Não senhor, a escolha não é aleatória, nem pretende obedecer a critérios de representatividade sociológica ou estatística.
Tem outras ambições programáticas, claramente definidas: "Escolhemos pessoas que conseguiram suplantar uma série de adversidades e fazer um percurso, independentemente do sítio onde vivem. Gente que não se deixa derrotar pela existência de estereótipos», explicou a jornalista Fernanda Câncio, co-autora dos documentários.
«Queremos desconstruir a ideia que as pessoas têm dos bairros problemáticos. Procurámos em cada bairro uma personagem com um percurso que fugisse ao estereótipo do habitante de um bairro problemático. Exemplos positivos», sublinha o realizador Abílio Leitão.
Optou-se portanto, deliberadamente, pela excepção em detrimento da regra. Resta ver como será o discurso a transmitir pela série de documentários (nomeadamente, se não tentará fazer passar as excepções, como em passe de mágica, pela normalidade do meio ambiente em que se localizam). Por outras palavras, se a escolha se não traduzirá em utilizar excepções, cujo mérito em si mesmo é justo realçar (na sua exemplaridade e singularidade), como técnica de ocultação de realidades, que se não querem ver. Não se nota que tenha sido encarada a possibilidade de os designados "estereótipos", que nem se diz quais são, serem no fim de contas representações das realidades a que se reportam muito mais fiéis do que as construções mentais fantasistas que os autores pretendem erguer a partir dos casos excepcionais previamente escolhidos para as demonstrar.
O discurso ideológico dos responsáveis justifica as maiores apreensões. E tem que perguntar-se ainda (que me desculpem as sensibilidades que se escandalizaram com os protestos com a indigitação de Fernanda Câncio para esta tarefa) se aqueles objectivos programáticos, o didactismo e intervencionismo assumidos, as finalidades proclamadas de reeducação das massas mergulhadas no obscurantismo dos estereótipos, são ainda, propriamente, jornalismo.

4 Comments:

At 8:28 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Preferia então o Manuel que se transmitisse a ideia de que quem vem de bairros problemáticos se torna necessariamente em criminoso? Nesse caso tanto faz qual é a lei penal, não é? Se é fatal que as pessoas que ali vivem sejam assaltantes violentos...

(acho tocante a sua fé na impecável organização do Estado português, que até agenda o lançamento de séries jornalísticas de modo a coincidirem com os aniversários da aprovação de leis)

 
At 10:29 da tarde, Blogger Manuel said...

Basta ler o que eu escrevi para constatar os disparates que concluiu.
Quanto ao primeiro ponto, e como é óbvio, não serei eu a defender determinismos sociológicos.
Limitei-me a exprimir a séria desconfiança de que se pretenda usar cortinas de fumo para esconder realidades complexas e incómodas.
Quanto ao segundo ponto, como também é evidente, nem sequer pensei ou sugeri planeamento tão sofisticado. Falei em espantosa coincidência.
De facto, a série até estava anunciada e programada há muito.
O que eu quis salientar foi a existência de uma batalha que se trava contínuamente nos media (sem necessidade de tais conspirações casuísticas) que visa o controlo da opinião pública, a conquista dos espíritos, e que só poderá ganhar quem não se distrair dessa realidade.
Julgo que se tentar ler devagarinho conseguirá entender.

 
At 4:30 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Vou deixar a quem queira a tarefa de entender tudo isto. Estamos de acordo num ponto, as batalhas ideológicas estão por aí, constantemente, em todos os media. Internet incluída.

 
At 5:27 da tarde, Blogger Manuel said...

Ora nem mais.
Foi o que eu fundamentalmente quis transmitir.
Nomeadamente, que os tais programas não são nenhum "trabalho jornalístico", neutro e asséptico, como provavelmente serão apresentados (até para lhes conferir mais eficácia no tal combate ideológico...)

 

Enviar um comentário

<< Home