"A Cidade do Sossego" - um blogue com voz própria
Desde o início deste ano, há mais um blogue que me habituei a ler: "A Cidade do Sossego". E aconselho os estimados visitantes a fazer o mesmo: pode não se gostar, mas ninguém deixará de reconhecer ali um estilo próprio, uma voz singular, culta e informada. É o blogue do grande Harms, "albicastrense, beirão, português, europeu". Um Harms a que se deseja mais sorte na vida do que teve o outro, o original. Leiam então o Harms, e conheçam "A Cidade do Sossego". Com um aceno de amizade e camaradagem para Castelo Branco, aí vão as minhas perguntas e as respostas dele.
- Parece identificar-se especialmente com referências literárias, cinéfilas e musicais que me levam a perguntar-lhe directamente: - "A Cidade do Sossego" é um blogue "negro"?
- Negro, não sei. Cinzento-escuro, pelo menos, será. A minha referência é, sobretudo, o século XIX e a abrangência dos mestres da época. Gostava de ter a capacidade que eles então demonstravam, o que nunca será possível. Não gosto de especializações. Talvez por isso me agrade ler George Steiner e andar entretido por aquela variedade temática.. Queria ser assim, quando fosse grande, mas esqueço-me de muitas coisas e perco tempo com outras que não interessam para nada.
- O blogue surgiu em Janeiro, e desde então tem mantido notável ritmo e produtividade. Que balanço faz neste momento? Tem leitores? Tem interlocutores? Valeu a pena?
- O blogue acaba por surgir na sequência de uma prática que já vem de trás e que é a dos fanzines. Em 2003 fiz o meu último fanzine e foi um fracasso em termos de recepção. Ninguém se dá ao trabalho de escrever cartas, hoje em dia, sobretudo se for para pedir um fanzine. E isso mudou num espaço de cinco anos, o que é assustador. Depois de uma ou outra experiência blogueira menos séria, decidi-me pela Cidade. Quanto à receptividade, desde que instalei o contador tenho notado um acréscimo de visitas de mês para mês. De qualquer maneira, nem que fosse só uma já valia a pena. Além disso o blogue é um meio útil, para mim, de me levar a ler e a reler coisas que, de outro modo, não abordaria tão cedo. E de dar a conhecer outras de que gosto - como quando andava na faculdade em que quando alguém descobria uma banda nova ou um autor novo ia logo partilhar com o pessoal. Nesse aspecto tive a sorte de encontrar um grupo engraçado, na altura. Claro que tínhamos a mania que éramos poetas e tal, quando não passávamos de uns iniciados de qualidade duvidosa.
- Fale-me sobre a importância dos estrados nas salas de aula... São mais relevantes que o Magalhães?
- O fim dos estrados nas salas de aula representou uma desgraça. Hoje, tirando as que ainda sobram do Estado Novo, nenhuma tem estrados. E o simbolismo é fundamental. Porque tem de haver hierarquia, tem de existir ali a noção da diferença. O aluno não está ao nível do professor. O professor não está ali para "trocar conhecimentos". A função do professor não é aproveitar os "saberes" que o aluno traz para a escola. Esse discurso só serve para manter a estrutura actual das coisas. A estrutura "classista". O professor tem o dever de demonstrar ao aluno que há algo chamado Platão, Mozart, Rembrandt e por aí. Se aquele depois continuar a ouvir hip hop o problema é dele, mas teve oportunidade de escolher. O fim do estrado é o reconhecimento de um nivelamento e de uma igualdade epistemológica que não existem. O problema é que, neste momento, estão a chegar ao sistema de ensino professores que já fazem parte da nova vaga. O que leva ao segundo ponto da questão: o computador é muito útil. O Magalhães pode ser uma maravilha. Desde que seja o ponto de partida para algo mais consistente. No fundo, é a velha história: é preferível ler a Margarida Rebelo Pinto ou não ler? Não se pode exigir a toda a gente que se delicie com a Odisseia, embora em Portugal haja uma elite intelectual absolutamente espantosa que o faz (sobretudo nas férias, quando levam entre duzentos a trezentos livros para reler). Em resumo, sem hierarquia, não há saber. E é aqui que deve ser dado o exemplo, no saber e não nas questões secundárias.
- Há vida em Castelo Branco? Ou só uma solidão povoada?
- Castelo Branco é uma cidade cada vez melhor para viver, agora que eu não vivo lá. No entanto, no blogue e não só continuo a referir-me como de Castelo Branco, Beira Baixa. É aí o meu centro. Foi aí que me formei, foi aí que vivi mais de trinta anos, é aí que volto regularmente para ver a família. E cada vez que me convenço que não há nada como a Beira Baixa. Mas a minha mulher também me diz que saio pouco...
- A blogosfera é uma miragem, ou um caminho?
- A blogosfera é um caminho de paciência. E eu, pessoalmente, sou muito impaciente por vezes. O que me leva a abandonar projectos ou a nem sequer os iniciar. Com a idade já começo a aprender que as coisas demoram a frutificar. Por isso estabeleci como primeira meta para a Cidade alcançar um ano de existência. Depois é seguir. Não sei qual era a média de leitores ao início, mas em Outubro consegui cem por dia e achei isso fantástico. Não podemos é trabalhar para o curto prazo, senão desiste-se rapidamente.
- A aparição e o desenvolvimento da internet modificou os dados na batalha das ideias. Concorda?
- Modificou os dados na batalha das ideias, mas o acesso às pessoas, ao mais profundo delas, continua a ser difícil (admitindo que têm profundidade). Quem quer saber de ideias hoje? Uma minoria. Mas sempre foi assim, ao fim e ao cabo. Talvez hoje o cenário pareça pior. Pensar é um tormento que quase ninguém arrisca. Veja-se o simplismo das análises. O caso do Iraque, por exemplo. Diz-se que os EUA invadiram o país por causa do petróleo. Isso é secundário. A invasão deu-se por causa das ideias, por causa de Platão, o milenarismo e essas coisas. Mas quem é que quer saber disso? Daí a tal necessidade de ser paciente, o que é complicado, na medida que cada dia que passa é mais um dia em que a ditadura do politicamente correcto, do pensamento único (disfarçado de diversidade) se impõe. Mas o pagode quer é tv cabo e afins. Sempre foi assim, por que razão iriam mudar as coisas?
- Parece identificar-se especialmente com referências literárias, cinéfilas e musicais que me levam a perguntar-lhe directamente: - "A Cidade do Sossego" é um blogue "negro"?
- Negro, não sei. Cinzento-escuro, pelo menos, será. A minha referência é, sobretudo, o século XIX e a abrangência dos mestres da época. Gostava de ter a capacidade que eles então demonstravam, o que nunca será possível. Não gosto de especializações. Talvez por isso me agrade ler George Steiner e andar entretido por aquela variedade temática.. Queria ser assim, quando fosse grande, mas esqueço-me de muitas coisas e perco tempo com outras que não interessam para nada.
- O blogue surgiu em Janeiro, e desde então tem mantido notável ritmo e produtividade. Que balanço faz neste momento? Tem leitores? Tem interlocutores? Valeu a pena?
- O blogue acaba por surgir na sequência de uma prática que já vem de trás e que é a dos fanzines. Em 2003 fiz o meu último fanzine e foi um fracasso em termos de recepção. Ninguém se dá ao trabalho de escrever cartas, hoje em dia, sobretudo se for para pedir um fanzine. E isso mudou num espaço de cinco anos, o que é assustador. Depois de uma ou outra experiência blogueira menos séria, decidi-me pela Cidade. Quanto à receptividade, desde que instalei o contador tenho notado um acréscimo de visitas de mês para mês. De qualquer maneira, nem que fosse só uma já valia a pena. Além disso o blogue é um meio útil, para mim, de me levar a ler e a reler coisas que, de outro modo, não abordaria tão cedo. E de dar a conhecer outras de que gosto - como quando andava na faculdade em que quando alguém descobria uma banda nova ou um autor novo ia logo partilhar com o pessoal. Nesse aspecto tive a sorte de encontrar um grupo engraçado, na altura. Claro que tínhamos a mania que éramos poetas e tal, quando não passávamos de uns iniciados de qualidade duvidosa.
- Fale-me sobre a importância dos estrados nas salas de aula... São mais relevantes que o Magalhães?
- O fim dos estrados nas salas de aula representou uma desgraça. Hoje, tirando as que ainda sobram do Estado Novo, nenhuma tem estrados. E o simbolismo é fundamental. Porque tem de haver hierarquia, tem de existir ali a noção da diferença. O aluno não está ao nível do professor. O professor não está ali para "trocar conhecimentos". A função do professor não é aproveitar os "saberes" que o aluno traz para a escola. Esse discurso só serve para manter a estrutura actual das coisas. A estrutura "classista". O professor tem o dever de demonstrar ao aluno que há algo chamado Platão, Mozart, Rembrandt e por aí. Se aquele depois continuar a ouvir hip hop o problema é dele, mas teve oportunidade de escolher. O fim do estrado é o reconhecimento de um nivelamento e de uma igualdade epistemológica que não existem. O problema é que, neste momento, estão a chegar ao sistema de ensino professores que já fazem parte da nova vaga. O que leva ao segundo ponto da questão: o computador é muito útil. O Magalhães pode ser uma maravilha. Desde que seja o ponto de partida para algo mais consistente. No fundo, é a velha história: é preferível ler a Margarida Rebelo Pinto ou não ler? Não se pode exigir a toda a gente que se delicie com a Odisseia, embora em Portugal haja uma elite intelectual absolutamente espantosa que o faz (sobretudo nas férias, quando levam entre duzentos a trezentos livros para reler). Em resumo, sem hierarquia, não há saber. E é aqui que deve ser dado o exemplo, no saber e não nas questões secundárias.
- Há vida em Castelo Branco? Ou só uma solidão povoada?
- Castelo Branco é uma cidade cada vez melhor para viver, agora que eu não vivo lá. No entanto, no blogue e não só continuo a referir-me como de Castelo Branco, Beira Baixa. É aí o meu centro. Foi aí que me formei, foi aí que vivi mais de trinta anos, é aí que volto regularmente para ver a família. E cada vez que me convenço que não há nada como a Beira Baixa. Mas a minha mulher também me diz que saio pouco...
- A blogosfera é uma miragem, ou um caminho?
- A blogosfera é um caminho de paciência. E eu, pessoalmente, sou muito impaciente por vezes. O que me leva a abandonar projectos ou a nem sequer os iniciar. Com a idade já começo a aprender que as coisas demoram a frutificar. Por isso estabeleci como primeira meta para a Cidade alcançar um ano de existência. Depois é seguir. Não sei qual era a média de leitores ao início, mas em Outubro consegui cem por dia e achei isso fantástico. Não podemos é trabalhar para o curto prazo, senão desiste-se rapidamente.
- A aparição e o desenvolvimento da internet modificou os dados na batalha das ideias. Concorda?
- Modificou os dados na batalha das ideias, mas o acesso às pessoas, ao mais profundo delas, continua a ser difícil (admitindo que têm profundidade). Quem quer saber de ideias hoje? Uma minoria. Mas sempre foi assim, ao fim e ao cabo. Talvez hoje o cenário pareça pior. Pensar é um tormento que quase ninguém arrisca. Veja-se o simplismo das análises. O caso do Iraque, por exemplo. Diz-se que os EUA invadiram o país por causa do petróleo. Isso é secundário. A invasão deu-se por causa das ideias, por causa de Platão, o milenarismo e essas coisas. Mas quem é que quer saber disso? Daí a tal necessidade de ser paciente, o que é complicado, na medida que cada dia que passa é mais um dia em que a ditadura do politicamente correcto, do pensamento único (disfarçado de diversidade) se impõe. Mas o pagode quer é tv cabo e afins. Sempre foi assim, por que razão iriam mudar as coisas?
4 Comments:
Essa tese de que a filosofia de Platão motivou a guerra no Iraque é interessantíssima. Fazia daqui um apelo para que o autor se desse ao trabalho de expôr a sua argumentação. Terá com certeza muitos leitores. Sou um leitor diário de A Cidade do Sossego.
Parabéns pelo bom trabalho.
Penso que ele não quer culpar o Platão! A ideia é outra. Mas o melhor é mesmo tentar obter a explicação junto do próprio, lá n'A Cidade do Sossego.
(Eu bem avisei logo no prelúdio que um dos méritos dele era a capacidade para desenvolver ideias originais...)
Óptima ideia, este tipo de entrevistas. De facto e não sendo ela original - creio ter havido pelo menos um outro Blog que o fazia - é um modo diferente e original e sem dúvida útil de fazer blogosfera. Conhecer um pouco melhor o pensamento de quem escreve enriquece-nos a ambos, leitores e autores. Porque ao abrirem um pouco a sua alma numa entrevista - e isso independentemente de sua vontade, acontece sempre em maior ou menor grau - origina que a razão implícita nos textos que produzem (e aquilo que por vezes neles se esconde) se torne mais clara e consequentemente menos dada a 'misconceptions'. Ainda que, como em tudo, haja excepções e não de pouca monta. Por exemplo e reportando-nos sómente aos escritores que não são bloguistas (e nestes certamente que também as haverá) basta ouvirmos alguns dos que são entrevistados nas televisões. Estou a lembrar-me de um muito célebre que é sistemàticamente endeusado em todas elas, mas cujo emaranhado de ideias nos deixa perplexos. Para dizer o mínimo.
Maria
Obrigado pela entrevista e pelo apoio que tem dado à Cidade. Bem haja!
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