sexta-feira, março 13, 2009

Lições de vida

Ontem um cidadão explicava-me a sua vida. Tinha sido apanhado com droga num dos bolsos, e disse-me com naturalidade que era toxicodependente há uns trinta anos. É um rapaz da minha idade... Saiu há uns meses da cadeia, onde tem passado quase toda a sua vida adulta. Não tem emprego, nem rendimento algum. Intrigou-me então a compra: quanto lhe tinha custado aquilo? Disse-me que tinha sido 150 euros. Mais perplexo fiquei: como? E ele esclareceu-me com simplicidade: tinha recebido o rendimento mínimo garantido ("rendimento social de inserção??), que era de uns 180 ou 190 euros, e tinha ido abastecer-se. A minha curiosidade ficou ainda mais insatisfeita: mas então...? E ele, como quem explica evidências: então, a casa foi-me arranjada pela segurança social; e a alimentação está garantida pela Caritas; quando recebo o rendimento mínimo garantido, é assim...
Fiquei a pensar no caso. A casa, e as contas desta, são da segurança social; a alimentação é fornecida pela Caritas; alguma roupa que precise também se encontra na Caritas ou na segurança social; portanto, logicamente, o tal rendimento mínimo vai directamente para as necessidades essenciais. Isto mesmo me explicava ele, com pena de si mesmo: nunca consegui ver-me livre disto, está a ver; se não consumo não fico bem...
Pois. Pelos meus cálculos, para este cidadão estão a ser canalizados recursos que ascendem necessariamente a umas tantas centenas de euros. Se fosse trabalhar, com um ordenado pouco superior ao mínimo nacional, nunca poderia sustentar as despesas que refere. Nem para a renda da casa, quanto mais para o consumo da droga. Lembrou-me um rapaz que há dias me explicava, com a mesma simplicidade, que estava a ganhar subsídio de desemprego; e que ao mesmo tempo, como vive perto da fronteira, tinha arranjado emprego à noite, numa discoteca espanhola (cá não poderia trabalhar, perdia o subsídio!). Sempre conseguia uns 1200 euros lá, e mais uns centos cá... Há uns tempos também deparei com o engenho de uma série de famílias ciganas que vão andando entre Elvas e Badajoz: conseguem ter residência lá e residência cá, e auferir subsídios dos dois lados... Havia mesmo uns, mais desenvoltos, que têm mais do que uma identidade: conseguem receber a dobrar. Qualquer funcionário de Conservatória pode explicar como se faz, duas declarações, e dois BI's verdadeiros...
A partir das situações particulares somos forçados a pensar nas situações gerais. Tropeçamos a cada passo com gente que está a ser empurrada para o parasitismo, a inacção, a dependência iremediável, como doença crónica. (Quem pode receber, dados, uns 400 euros, facilmente consegue com um pequeno biscate fazer mais 100 ou duzentos; nunca aceitará um emprego pelo salário mínimo nacional, ou pouco além disso, que implicaria a escravatura do trabalho, com horário, para um rendimento efectivamente inferior).
Parece termos uma sociedade organizada intencionalmente para condenar à marginalidade efectiva, e definitiva, largas franjas da população (dez por cento? vinte por cento?). Não posso crer que o facto não seja notado por quem manda. O que acontece é que lhes parece preferível pagar este preço. Seiscentos ou setecentos euros por cabeça de despesa mensal, se for para um milhão de pessoas resulta num custo de seiscentos ou setecentos milhões de euros por mês. Em princípio, isso chega para garantir que essa massa de gente fica sossegada (quando se cai naqueles níveis o grau de exigência não passa daquilo mesmo). Mesmo em termos criminais, dessa multidão nunca sairão mais do que os crimes que lhes são próprios. Não afectam quem decide. O custo, afinal, é barato. Condenamos à degradação mais aviltante uma parte substancial da nossa população, de onde não mais sairá, mas pelo menos não há risco de revoltas.
É imoral, não é? Sem dúvida. Todavia, é capaz de não ser mais do que outros aspectos da mesma política. Uma decisão como a da intervenção estatal no BPN custou, só ela, cerca de mil e duzentos milhões de euros; é o dobro do que custará mensalmente anestesiar um milhão dos nossos compatriotas, e condená-los à indigência perpétua, pelo estímulo à dependência que acima descrevi. Com a diferença de que essa verba de mil e duzentos milhões funcionará como subsídio directo não a um milhão mas talvez a cem ou duzentos indivíduos...
De que nos queixamos, afinal? Penso muitas vezes que somos um país rico, ao contrário do que por vezes se afirma. E se estas coisas são como são é porque a generalidade de nós aceita que elas sejam assim, e nada quer fazer para que sejam de outra maneira.

5 Comments:

At 7:15 da tarde, Blogger Nuno Adão said...

Sim senhor, senhor Manuel, mais uma vez, escreve um artigo sobre o real, sobre o que se passa no país real, mas não é tudo...

Cumprimentos

 
At 11:35 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Os meus parabéns pelo artigo que escreveu, sem dúvida um dos melhores que já li por aqui. Gostaria, se lhe for aprazível, que pudesse escrever mais sobre matérias relacionadas com políticas de combate à pobreza e a reforma do Estado-Providência.

 
At 6:55 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Nestas novíssimas (no sentido cronológico do termo) "histórias urbanas" existe uma pequena lacuna, parece-me: é que não vejo referido em nenhum dos casos enumerados qualquer automóvel. Ora, como sabemos, nos tempos que vão correndo isso é um bem absolutamente "essencial"; basta percorrer as ruas de um qualquer "bairro social" para aferir quão essencial ele é, o popó. Aqui ao pé de mim há um desses bairros, de "rendas controladas" que ninguém paga (daí estarem "controladas"); por todo o lado, o que mais se vê é de Mercedes e de "jeeps" para cima. Até "moto 4" já lá vi, pelo que me não custa presumir que, se calhar, até iates ("botes", em linguagem politicamente correcta) devem ter aqueles "desprotegidos" profissionais.

 
At 11:27 da manhã, Blogger Manuel said...

Esqueci-me dos carrinhos, e dos telemóveis, e certamente de outras necessidades básicas.
A cabeça não dá para tudo.

 
At 2:16 da tarde, Anonymous Anónimo said...

O comentário do JPG está uma delícia. Então essa dos botes não pode estar melhor. E até poderá ter razão. E o polìticamente correcto, concerteza. Não esquecendo o moderno português técnico de que eles, os desgovernantes, orgulhosamente fazem uso e abuso.
Maria

 

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