TEMPO PRESENTE, UMA REVISTA CONTRA-CORRENTE
O aparecimento, em 1959, da revista "tempo presente", que tinha como director Fernando Guedes, um conselho de redacção formado por António José de Brito, António Manuel Couto Viana, Caetano de Melo Beirão e Goulart Nogueira e secretário, João Manuel Pedra Soares – e, a partir do segundo ano, número 13, também Artur Anselmo, único secretário no último ano – e, como editor e proprietário José Maria Alves, veio contribuir para um debate que, não sendo novo entre nós, ganhava, então como hoje, uma premente actualidade. O debate era amplo e versava várias questões. Logo à partida, o que se entende por cultura e cultura portuguesa, pois de uma revista portuguesa de cultura se tratava. Uma segunda nota é que a cultura é sempre uma cultura viva, que alia o pensamento e acção ou transforma o pensamento em acção. Daqui resultou, como consequência lógica, a intervenção, no meio cultural português, de um grupo de intelectuais nacionalistas e monárquicos seduzidos também eles por propostas modernas e vanguardistas de artistas e de escritores, nacionais e estrangeiros, o que naturalmente punha em causa a visão largamente difundida pelos intelectuais de esquerda, que a si mesmos se consideravam os únicos capazes de compreender os sinais dos tempos e as correntes do futuro, de modo a entrar, definitivamente, nas páginas da História. É que, embora a revista se chamasse tempo presente, ela continha em si mesma as páginas do futuro, sem deitar fora as lições do passado. Significativamente, citava, logo no primeiro número (p. 3), três textos – um do Ecclesiastes, outro de Santo Agostinho e o último do poeta e dramaturgo anglo-americano T. S. Eliot – que reforçavam esta ideia que animou e deu corpo a este projecto cultural. A citação de T. S. Eliot é verdadeiramente paradigmática e, por isso, vale a pena recordá-la: O tempo presente e o tempo passado São ambos presentes talvez no tempo futuro E o tempo futuro contido no tempo passado. Mas foi ao longo de várias páginas da rubrica tempo presente que número após número se nos foi dando conta não só das claras e límpidas intenções da revista mas também da reacção, por vezes intempestiva e nem sempre inteligente – isto é, capaz de saber ler o que de facto estava escrito –, de críticos e opositores. Quase sempre assinados por Goulart Nogueira, constituíram estes textos uma forma de elucidar o leitor mais distraído daquilo que, na velha linguagem camoneana, se via claramente visto, mas que alguns teimosamente não queriam acreditar, talvez pelo carácter inovador e arrojado da própria revista. Daí que, no número 12 (Abril de 1960), ao encerrar-se o primeiro ano de vida, numa nota assinada pela redacção e intitulada também tempo presente (pp. 3-5), se fizesse o ponto da situação e se esclarecessem assinantes e leitores: " Qual foi o nosso intuito? Fazer uma revista que tivesse acção reactiva, revolucionária e formativa, que despertasse energias, que desencadeasse forças, que evidenciasse os valores, que gerasse uma consciência." E, por isso, esta revista combatente, como também se proclama, não entrou, "comodamente, na corrente: fizemos contra-corrente, lutámos." Para logo acrescentar: " Pretendeu-se, nesta revista, dar um testemunho de presença ao supremo valor, ao que é totalmente humano, um testemunho actual." E continua: " Nas artes, no pensamento, em todas as manifestações espirituais e humanas, qual foi a nossa posição e o nosso cuidado? Aceitar que todas as posições eram possíveis e legítimas, digamos até necessárias, desde que não tornassem parcelares o homem e a vida. O todo e o universal tinham de integrar o modo e as parcelas, o humano tinha de justificar as obras, o espírito tinha de explicá-las e inspirá-las, elas tinham de situar-se nele." Para logo acrescentar: "Por isso, nunca nos fechámos em uma escola. Se alguém nos considerou neo-futuristas, concretistas ou qualquer coisa semelhante, teve, a breve trecho, de desenganar-se." A ligação entre o passado e o presente, o clássico e o moderno foi constante e permanente. " A quem tenha estado atento, não haverá escapado que, desde o primeiro número, declaramos aceitar a obra clássica e a moderna, a realista e a romântica, a documental e a imaginativa, etc., etc." Daí que tenham apresentado " ao público português autores, obras e tendências modernas, de modo a torná-lo conhecedor do que se vai processando no mundo – esta é uma tarefa sobretudo informativa." Mas também " apresentámos ao público os autores, as obras e tendências que, nesta época negativista, perplexa, materialista, fragmentária, cerebralista ou sentimentalista, comunicam a fé e a afirmação, o espiritualismo e a unidade, a integridade humana e a dedicação, a claridade e a naturalidade sábia, a virilidade e a luta." E, mais adiante, esclarece: " A nossa revista pretendeu, pois, dar testemunho de interesse pelos vários sectores da cultura" e que mostra, desde o início, " insubmissão à lei das maiorias ou ao insulto desta conturbada época. Eis uma tarefa que nos compete e que temos procurado cumprir". E cumpriram.
No início do terceiro ano de publicação ( nº21-1961), e de novo em tempo presente (pp. 3-5) – e da responsabilidade da redacção – se faz um balanço da influência da revista no meio cultural português, afirmando acertada e justamente: " Trouxemos ao panorama cultural português um revigoramento inesperado, uma inesperada voz – dizemo-lo com simplicidade, sem vaidade pavoneante, mas com justo orgulho." Pois, " com tempo presente começou o processo de desmistificação, como se diz em linguagem da moda." Mas se " houve emocionados sobressaltos de adesão, houve um frémito de juvenilidade; e, por outro lado, houve o surdo rancor, a raiva impotente, a campanha do silêncio, tentando abafar o som deste clarim rejubilante, vivo." Em suma, como quase sempre sucede a quem fica irremediavelmente preso ao comodismo, houve não só a incompreensão da novidade como o medo da ousadia, de ir mais além, de tentar compreender o futuro gerado continuamente no presente. A perfeita ligação entre tradição e modernidade, reflectiu-se, desde logo, na qualidade gráfica da revista, com capas de Fernando Lanhas, nos temas e artistas estudados, na riqueza literária das colaborações, no cuidado da organização de cada número, na selecção dos textos antologiados, na divulgação da correspondência inédita publicada, nos poetas traduzidos com sensibilidade e rigor. Mas também nos temas versados que iam desde o direito à política, passando pela música e o teatro, a filosofia e a história, o cinema e a rádio, a sociologia e a antropologia, a literatura e as artes plásticas, que naturalmente abundavam, sem esquecer a crítica literária e a polémica, plena de ironia da rubrica A besta esfolada, título tomado de empréstimo a José Agostinho de Macedo, e, embora não assinada, da autoria de Goulart Nogueira. O número duplo de tempo presente de Set./Out. de 1960 (17/18) é dedicado ao V Império. Nele colaboraram Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro, António Manuel Couto Viana, Artur Anselmo – responsável pela organização deste volume - , Duarte de Montalegre ( J. V. de Pina Martins), Fernando Guedes, Fernando Luso Soares, Goulart Nogueira, Rafael Monteiro, Raul Leal e Raymond Cantel. Contém igualmente uma antologia sobre o mesmo tema, feita pelo secretário da revista e organizador deste número. Este número duplo teve larga projecção, tendo sido adquirido por alguns leitores seduzidos apenas por esta matéria e que não compravam habitualmente a revista, existindo mesmo em duplicado em algumas bibliotecas, antevendo os respectivos bibliotecários o natural interesse das futuras gerações por este assunto e o modo como era aqui exposto, quer literária, quer graficamente. Nos 27 números publicados, de Maio de 1959 a 1961, deram-se a conhecer autores e correntes estéticas pouco divulgadas entre nós, como Ezra Pound, T. S. Eliot, Stefan George, Hilda Doolitle, W. B. Yeats ou o vorticismo, o dadaísmo, a pintura abstracta, o concretismo (na música e na poesia), os Angry Young Men, a Beat Generation. Ou ainda, na sétima arte, cineastas como Eisenstein, Fritz Lang e Truffaut, para além de artistas plásticos como Graham Sutherland, Paul Nash, Henry Moore, Rouault. Nas suas páginas "reencontrou-se" o grupo do Orpheu com textos de Fernando Pessoa, Almada negreiros, Mário de Sá-Carneiro e Raul Leal, colaboraram Manuel Bandeira, Murillo Araújo, Lygia Fagundes Teles, os concretistas brasileiros Décio Pignatari e Haroldo e Augusto de Campos, foram reveladas peças até aí inéditas de Almada Negreiros, Alfredo Cortez, Tomaz de Figueiredo, Raul Leal, saíram antologias de Robert Brasillach, Drieu la Rochelle e Giovanni Papini. A lista de colaboradores e de autores de textos inéditos ou reproduzidos atinge praticamente a centena e meia. Muitos deles já consagrados, outros que se tornaram conhecidos no jornal Mensagem, editado em Coimbra (1948), ou nas folhas de poesia Tavola Redonda (1950) ou na revista Graal (1956), ambas de Lisboa. Outros ainda que colaboraram no 57(Lisboa, 1957) ou fundaram a revista Cidadela (Coimbra,1959) ou escreviam regularmente nos Estudos do velho C.A.D.C. de Coimbra e que buscaram neste tempo presente um local de convívio e encontro cultural. Finalmente, aqueles que aqui encontraram o seu espaço de debate e de afirmação: Agostinho da Silva, Agustina Bessa-Luís, Amândio César, António Botelho, António Quadros, António Correia de Oliveira, António Salvado, Ana Hatherly, Álvaro Ribeiro, Armando Cortês Rodrigues, Artur Anselmo, Carlos Eduardo de Soveral, Domingos Mascarenhas, Duarte de Montalegre, Eduíno de Jesus, Esther de Lemos, Fausto José, Fernando Paços, Francisco da Cunha Leão, Francisco Rendeiro, O. P., J. Beckert d’Assumpção, J. Monteiro-Grilo, João Bigotte Chorão, José Blanc de Portugal, José Enes, José Valle de Figueiredo, Luís Cajão, Luís Forjaz Trigueiros, Manuel de Seabra, Manuel Gama, Manuel Moutinho, Manuel Múrias, Manuel Vieira, Maria Manuela Couto Viana, Matilde Rosa Araújo, Mário Saa, Miranda Barbosa, Natércia Freire, Nuno de Sampayo, Ruy Alvim, Ruy Belo, Sellés Paes, Soares Martins, Tomás Kim, Tomás Ribas e tantos outros. Mas toda a concepção, organização e realização da revista é obra sobretudo do seu director – Fernando Guedes -, do conselho de redacção – António José de Brito, António Manuel Couto Viana, Caetano de Melo Beirão e Goulart Nogueira – e dos secretários, inicialmente João Manuel Pedra Soares e, a partir do segundo ano, Artur Anselmo. Todos eles se desdobraram na redacção de ensaios, crítica literária, pequenas notas ou crónicas, em traduções de autores estrangeiros, ou em antologias de escritores de referência que marcaram cada número da revista e o seu conjunto de forma indelével e duradoura, merecendo muitos desses textos figurar, também eles, numa antologia do que de melhor se escreveu em revistas portuguesas, pois estão, ainda hoje, prenhes de actualidade e de rigor. Como G. K. Chesterton, também esta revista quis ser contra-corrente. E é, por isso, que como este genial e admirável escritor inglês ela é também, ainda agora, cinquenta anos passados, tempo presente.
*Texto inicialmente publicado no volume Annualia 2008-2009.
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