DA POLÍTICA E DO PENSAMENTO
Não há acção coerente e estável que não seja iluminada por uma doutrina, como
não há teoria, por mais neutra que pretenda ser, que não tenha uma projecção
(ainda que meramente negativa) na prática. Por isso mesmo, é que qualquer
política tem, na sua base, uma concepção do mundo e sobretudo, do homem. Se a
esquerda, como muito bem sublinhou Vasco Pulido Valente, se caracteriza pela
paixão da liberdade e da igualdade, é porque assenta numa ideia de homem
optimista, directamente bebida em Pangloss. É claro que o homem deve ser livre,
se for naturalmente bom, se o mal não lhe puder ser imputado, se tudo o que
fizer se encontrar alheio às catástrofes e malfeitorias de que o universo está
repleto (os culpados sendo a sociedade, o fascismo, a reacção, etc). Pois como
se compreenderia que fossem colocados obstáculos, peias, limites a um ente que é
a bondade em pessoa? Como seria legítimo que o submetessem ao que quer que
fosse, que o governassem, que sobre ele impendesse uma autoridade? A anarquia é,
assim, a meta lógica da ideologia da liberdade. E se o homem é naturalmente bom
e o mal não lhe pode ser imputado, todos os actos humanos serão louváveis, sem
discriminação. Nessa altura, serão também equivalentes entre si, isto é, por
outras palavras, serão iguais. Mas, se todos os actos humanos são iguais, os
sujeitos que os praticam sê-lo-ão da mesma forma, uma vez que se não pode
distinguir entre os que agem com equilíbrio e seriedade e os que agem
dispatarada ou torpemente. Em suma, não há padrão valorativo que permita
destrinçar os vários homens e submetê-los a um juízo axiológico. Não existe,
portanto, coisa alguma que esteja acima deles e, da igualdade, exactamente como
da liberdade, se deduz, sem hesitação, o anarquismo. Este é o cerne, a conclusão
básica dos princípios da esquerda. Em contrapartida, uma concepção do homem que
veja nele um ser imperfeito, imagem de Deus, sim, muito afastada, porém, do seu
infinito modelo, dotado de um querer livre e falível, capaz de tanto realizar o
bem como o mal, já não implica a idolatria da liberdade e da igualdade, antes
conduz a ver nas tendências anarquistas um enorme absurdo. Se há ente que
precisa de ser governado é o homem, muito mais do que as forças da natureza e os
animais. À liberdade do homem há que pôr todas as barreiras para que só se
exerça no sentido que é valioso, para que não ofenda os seus semelhantes e, em
especial, não atente contra as normas superiores que do Absoluto derivam.
Autoridade é, portanto, um dogma fundamental, a condição necessária de toda a
civilização, ainda que não seja condição suficiente. E quem diz autoridade diz
submissão da liberdade ao que a controle e guie. Por outro lado, se os homens
não são o bem personificado, haverá sempre que distingui-los em função do seu
comportamento e, até, das suas capacidades para, com maior ou menor eficiência,
servirem os valores (o que não implica já uma apreciação moral e tão só uma
apreciação exclusivamente técnica). De qualquer modo, no lugar da igualdade
aparece-nos uma outra exigência — a da hierarquia: hierarquia de méritos e
hierarquia de competências. E quem diz hierarquia, diz sobreposição de poderes
de grau em grau até ao poder mais alto. Em vez da anarquia, de novo nos surge o
requisito da autoridade. Simplesmente, um problema se levanta aqui. Autoridade,
sim, dir-se-á, autoridade que tenha por finalidade o estabelecimento e a
garantia do que seja objectivamente válido, com plena independência do arbítrio
dos homens; autoridade, enfim, guardiã dos interesses da Pátria concebida como
um ser que engloba e ultrapassa os indivíduos e estes têm por obrigação
categórica de respeitar. Tudo isso estaria óptimo e seria esplêndido. Só
acontece que a autoridade unicamente pode ser exercida por homens e que se os
homens são imperfeitos e capazes de praticar o mal, como é que a autoridade lhes
será confiada? Se no entanto não lhes for confiada não há afinal quem a exerça.
Mais ainda: como é que a autoridade, exercida por homens, conseguirá obviar aos
defeitos deles, se são eles que a manejam? A dificuldade, se é de monta, não a
consideramos insuperável. Repare-se que, se os homens exercem a autoridade, não
são a autoridade. As instituições podem enquadrá-los de tal maneira que eles,
exclusivamente, ponham em acto um poder impessoal que não se identifique com os
seus quereres subjectivos. Por certo que as instituições são criadas pelos
homens, mas estes criam-nas superando-se a si próprios, vencendo a sua
particularidade e as suas limitações. Já Maurras afirmava que «par l`institution
l`homme s`éternise». Com efeito, as instituições ficam, os homens passam. As
instituições boas são, assim, a eternização do que o homem tem de bom. Nessa
medida, e dada a sua perenidade, é-lhes possível transformar e objectivar as
transitórias vontades dos homens que corporizem a soberania. A questão
institucional é, assim, das decisivas. Impõe-se fomentar as instituições em que
a autoridade se aproprie dos homens que a executem e não estes se apropriem da
autoridade para os seus projectos privados. É óbvio que esta solução assenta na
tese que aos homens é possível superar-se e erguer algo para além das suas
individualidades passageiras. Para quem negue semelhante possibilidade,
instituições não passam de palavras, de meros nomes a que não corresponde
nenhuma espécie de realidade. Há aqui uma divergência ontológica acerca das
potencialidades humanas com repercussões políticas patentes, tal como têm
repercussões políticas as divergências axiológicas acerca das relações entre o
homem e o bem. Resumindo: não há noção do Estado e da comunidade, que não
assente numa Weltanschauung, uma visão do mundo e da vida. E como uma
Weltanschauung, quando racionalmente justificada e estruturada, é uma filosofia,
supomos lícito sustentar que não há conceitos sólidos de governação e de
sociedade que não necessitem de uma filosofia.
António José de Brito
(In «A
Rua», n.º 200, pág. 7, 10.04.1980)
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