Como eu via a aurora cavaquista
Tendo passado já algum tempo sobre a tomada de posse do actual Presidente da República, deu-me para recordar o que foi que eu escrevi sobre a personalidade em questão no período imediatamente anterior à eleição (os prognósticos de antes do jogo).
Seguem-se dois textos, um de 6 e outro de 7 de Dezembro de 2005.
Cavaco à vista
O acontecimento político do dia foi o anúncio do apoio de Veiga de Oliveira à candidatura de Cavaco Silva.
O episódio por si só diz mais sobre a mentalidade de Cavaco e de muitos que o rodeiam do que as inúmeras análises produzidas pelos bestuntos iluminados de todos os nossos especialistas de ciência política.
Um octogenário trôpego, sem qualquer relevância política, nem notoriedade pública alguma, subscreveu a lista de apoiantes de Cavaco.
O candidato, embevecido, lá estava a recebê-lo pessoalmente, anulando não sei quantos compromissos em agenda. Os assessores, vaidosos, apressaram-se a chamar as televisões, e a espalhar a feliz novidade por tudo quanto é sítio.
Para a posteridade e para as câmaras exibiram-se o candidato e os ajudantes, radiantes com a distinção, agradecidos e honrados perante o inesperado apoiante.
O site do candidato logo deu relevo à notícia.
Como explicar tão inusitada como despropositada agitação?
Nenhumas razões técnicas podem ser apontadas como justificativas. O apoiante não traz nada à candidatura. Ninguém o conhece, e a ninguém influencia. Não é dos que dão dinheiro, nem parece que seja dos que trazem votos.
Não existe então explicação para tão desproporcionada atenção, tanta deferência e tanta vénia face a tão anódino personagem?
Infelizmente, existe. Existe e é bem simples.
O motivo que levava Cavaco e seu séquito a babarem-se à uma e a mostrarem triunfalmente o velhote na televisão está, tão somente, na circunstância de este ter sido em tempos um comunista importante.
O homem foi uma data de anos membro do comité central, foi deputado e vice-presidente da bancada parlamentar do PCP, foi por duas vezes ministro cunhalista.
Para aquela gente, Cavaco e seus próximos, o apoio dele é uma espécie de caução moral, um certificado a atestar que também estão no lado certo da humanidade. Hoje vão dormir mais contentinhos e orgulhosos.
Tudo está na admiração e no fascínio que o PCP e o comunismo continuam a exercer entre a classe política instalada.
Ser comunista, ou ao menos ter sido, é uma recomendação que abre todas as portas: para os reflexos condicionados da casta, um personagem desses é alguém que até pode ter umas quantas ideias que não se podem partilhar e estão um tanto ultrapassadas mas é sempre indiscutivelmente um idealista ou um cavaleiro andante, um combatente das causas nobres, um herói de romance e um lutador generoso e aventureiro - em todo o caso, uma autoridade moral.
Perante qualquer figurão de curriculum bem vermelho dobra-se, venerador e obrigado, o aspirante à glória e aos cargos políticos da nossa terra. A vermelhidão basta para assinalar um grau superior na escala moral e intelectual, e face a isso transborda a veneração e a reverência da classe político-jornalística.
Este é o fenómeno crucial para entender o que se vai passar com Cavaco na presidência, e que já tem sido assinalado noutros lados e com relação a outros.
Trata-se do conhecido paradoxo aparente de com frequência alguns políticos ganharem eleições com os votos da direita para depois exercerem o cargo respectivo colando-se às políticas da esquerda.
Chamo-lhe paradoxo aparente porque na verdade não há paradoxo nenhum: simplesmente esta direita não tem autonomia mental para se guiar por quadros próprios. Continuará sempre a deixar-se conduzir pela visão do mundo que conhece, e que lhe é fornecida de bandeja pelos aparelhos de produção e controle ideológico existentes.
Uma atitude livre e descomplexada perante a cosmovisão esquerdista será sempre impossível enquanto a presença na vida política pressupuser essa aceitação tácita da superioridade moral e intelectual desta e dos seus representantes.
Como se viu ainda há pouco na cumplicidade palerma e bajuladora frente a Manuel Alegre, como se observa nesta cena com Veiga de Oliveira, Cavaco não é homem para dar o salto. Ele e a sua Maria são duas cabeças cuja forma mentis não permite ilusões sobre o que dali sairá. Ela irá para a presidência declamar Sophia, e ele para tentar desbloquear... a embrulhada em que Sócrates está metido.
Cavaco e as direitas
"A eleição de Cavaco, com a estúpida expectativa que suscitou, vai provavelmente dividir a direita e até, em princípio, o PSD. Não se imagina a direita que vai votar no mito de Cavaco a viver com a realidade de Cavaco."
Eis a sentença de Vasco Pulido Valente que despertou as reflexões de Cruz Rodrigues, a que já fiz referência.
A esse propósito deixei o desafio a que se imagine mesmo, visto que todas as previsões apontam para o cenário da eleição.
Não pretendo furtar-me eu próprio ao exercício de imaginação, mas confesso à partida que este me parece extremamente desinteressante. Eu não partilho nenhumas expectativas estúpidas.
A direita portuguesa vai viver com Cavaco o que já viveu com Eanes. Primeiro vai levá-lo em ombros, um ano depois vai andar por aí a rilhar os dentes e a gemer "não era isto!".
E no entanto o homem não engana ninguém, como Eanes não enganava. Têm muito em comum, como os dois já descobriram. Ambos julgam que ser sério consiste em rir-se pouco e padecer de falta de imaginação, os dois pensam que ser culto traduz-se em condecorar saramagos no Dia de Portugal, um e outro acreditam que a função presidencial é servir de sentinela ao que está.
Os caminhos posteriores provavelmente serão diferentes (onde Eanes acabou lançado num infeliz projecto partidário, convencido de que assim servia e repunha a pureza do regime, conspurcada por Soares, Cavaco pode bem acabar como cão de guarda da estabilidade governamental, assegurada pelo Sócrates em funções), mas nada que releve para este efeito.
Cavaco como Eanes são personalidades formatadas pela mesma crença de que o equilíbrio está nas formas.
A direita inquieta e irrequieta, insatisfeita e inconformista, cedo se verá às turras com Cavaco.
Haverá outra que não deixará de o cortejar, e se baterá por um lugar na corte. Mas esta é aquela que sempre o faria, e fizesse ele o que fizesse, e fosse ele quem fosse. É aquela direita que - acredito sinceramente - em situação dilemática preferiria deitar fora os dedos para guardar os anéis.
Seguem-se dois textos, um de 6 e outro de 7 de Dezembro de 2005.
Cavaco à vista
O acontecimento político do dia foi o anúncio do apoio de Veiga de Oliveira à candidatura de Cavaco Silva.
O episódio por si só diz mais sobre a mentalidade de Cavaco e de muitos que o rodeiam do que as inúmeras análises produzidas pelos bestuntos iluminados de todos os nossos especialistas de ciência política.
Um octogenário trôpego, sem qualquer relevância política, nem notoriedade pública alguma, subscreveu a lista de apoiantes de Cavaco.
O candidato, embevecido, lá estava a recebê-lo pessoalmente, anulando não sei quantos compromissos em agenda. Os assessores, vaidosos, apressaram-se a chamar as televisões, e a espalhar a feliz novidade por tudo quanto é sítio.
Para a posteridade e para as câmaras exibiram-se o candidato e os ajudantes, radiantes com a distinção, agradecidos e honrados perante o inesperado apoiante.
O site do candidato logo deu relevo à notícia.
Como explicar tão inusitada como despropositada agitação?
Nenhumas razões técnicas podem ser apontadas como justificativas. O apoiante não traz nada à candidatura. Ninguém o conhece, e a ninguém influencia. Não é dos que dão dinheiro, nem parece que seja dos que trazem votos.
Não existe então explicação para tão desproporcionada atenção, tanta deferência e tanta vénia face a tão anódino personagem?
Infelizmente, existe. Existe e é bem simples.
O motivo que levava Cavaco e seu séquito a babarem-se à uma e a mostrarem triunfalmente o velhote na televisão está, tão somente, na circunstância de este ter sido em tempos um comunista importante.
O homem foi uma data de anos membro do comité central, foi deputado e vice-presidente da bancada parlamentar do PCP, foi por duas vezes ministro cunhalista.
Para aquela gente, Cavaco e seus próximos, o apoio dele é uma espécie de caução moral, um certificado a atestar que também estão no lado certo da humanidade. Hoje vão dormir mais contentinhos e orgulhosos.
Tudo está na admiração e no fascínio que o PCP e o comunismo continuam a exercer entre a classe política instalada.
Ser comunista, ou ao menos ter sido, é uma recomendação que abre todas as portas: para os reflexos condicionados da casta, um personagem desses é alguém que até pode ter umas quantas ideias que não se podem partilhar e estão um tanto ultrapassadas mas é sempre indiscutivelmente um idealista ou um cavaleiro andante, um combatente das causas nobres, um herói de romance e um lutador generoso e aventureiro - em todo o caso, uma autoridade moral.
Perante qualquer figurão de curriculum bem vermelho dobra-se, venerador e obrigado, o aspirante à glória e aos cargos políticos da nossa terra. A vermelhidão basta para assinalar um grau superior na escala moral e intelectual, e face a isso transborda a veneração e a reverência da classe político-jornalística.
Este é o fenómeno crucial para entender o que se vai passar com Cavaco na presidência, e que já tem sido assinalado noutros lados e com relação a outros.
Trata-se do conhecido paradoxo aparente de com frequência alguns políticos ganharem eleições com os votos da direita para depois exercerem o cargo respectivo colando-se às políticas da esquerda.
Chamo-lhe paradoxo aparente porque na verdade não há paradoxo nenhum: simplesmente esta direita não tem autonomia mental para se guiar por quadros próprios. Continuará sempre a deixar-se conduzir pela visão do mundo que conhece, e que lhe é fornecida de bandeja pelos aparelhos de produção e controle ideológico existentes.
Uma atitude livre e descomplexada perante a cosmovisão esquerdista será sempre impossível enquanto a presença na vida política pressupuser essa aceitação tácita da superioridade moral e intelectual desta e dos seus representantes.
Como se viu ainda há pouco na cumplicidade palerma e bajuladora frente a Manuel Alegre, como se observa nesta cena com Veiga de Oliveira, Cavaco não é homem para dar o salto. Ele e a sua Maria são duas cabeças cuja forma mentis não permite ilusões sobre o que dali sairá. Ela irá para a presidência declamar Sophia, e ele para tentar desbloquear... a embrulhada em que Sócrates está metido.
Cavaco e as direitas
"A eleição de Cavaco, com a estúpida expectativa que suscitou, vai provavelmente dividir a direita e até, em princípio, o PSD. Não se imagina a direita que vai votar no mito de Cavaco a viver com a realidade de Cavaco."
Eis a sentença de Vasco Pulido Valente que despertou as reflexões de Cruz Rodrigues, a que já fiz referência.
A esse propósito deixei o desafio a que se imagine mesmo, visto que todas as previsões apontam para o cenário da eleição.
Não pretendo furtar-me eu próprio ao exercício de imaginação, mas confesso à partida que este me parece extremamente desinteressante. Eu não partilho nenhumas expectativas estúpidas.
A direita portuguesa vai viver com Cavaco o que já viveu com Eanes. Primeiro vai levá-lo em ombros, um ano depois vai andar por aí a rilhar os dentes e a gemer "não era isto!".
E no entanto o homem não engana ninguém, como Eanes não enganava. Têm muito em comum, como os dois já descobriram. Ambos julgam que ser sério consiste em rir-se pouco e padecer de falta de imaginação, os dois pensam que ser culto traduz-se em condecorar saramagos no Dia de Portugal, um e outro acreditam que a função presidencial é servir de sentinela ao que está.
Os caminhos posteriores provavelmente serão diferentes (onde Eanes acabou lançado num infeliz projecto partidário, convencido de que assim servia e repunha a pureza do regime, conspurcada por Soares, Cavaco pode bem acabar como cão de guarda da estabilidade governamental, assegurada pelo Sócrates em funções), mas nada que releve para este efeito.
Cavaco como Eanes são personalidades formatadas pela mesma crença de que o equilíbrio está nas formas.
A direita inquieta e irrequieta, insatisfeita e inconformista, cedo se verá às turras com Cavaco.
Haverá outra que não deixará de o cortejar, e se baterá por um lugar na corte. Mas esta é aquela que sempre o faria, e fizesse ele o que fizesse, e fosse ele quem fosse. É aquela direita que - acredito sinceramente - em situação dilemática preferiria deitar fora os dedos para guardar os anéis.
2 Comments:
Via... e via muito bem!
Um abraço,
Francisco Nunes
Gostei especialmente deste trecho:
"[...] os dois [Eanes e Cavaco]pensam que ser culto traduz-se em condecorar saramagos no Dia de Portugal, um e outro acreditam que a função presidencial é servir de sentinela ao que está.
Os caminhos posteriores provavelmente serão diferentes (onde Eanes acabou lançado num infeliz projecto partidário, convencido de que assim servia e repunha a pureza do regime, conspurcada por Soares, Cavaco pode bem acabar como cão de guarda da estabilidade governamental, assegurada pelo Sócrates em funções), mas nada que releve para este efeito.
Cavaco como Eanes são personalidades formatadas pela mesma crença de que o equilíbrio está nas formas.
A direita inquieta e irrequieta, insatisfeita e inconformista, cedo se verá às turras com Cavaco."
Não há nada mais enganador do que votar nas 'chocas'. Perde-se o touro de vista.
Foi o que aconteceu e acontece.
A imagem do biombo chinês também não ía mal.
Um abraço.
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