(Artigo do Prof. Mário Pinto)
1.Os seis juízes do Tribunal Constitucional que votaram vencidos no recente Acórdão nº 617/2006 (que, por maioria de 7 a 6, declarou a não inconstitucionalidade das duas possíveis respostas, sim ou não, à pergunta do próximo referendo sobre o aborto livre até às dez semanas), disseram não à total desprotecção da vida humana que a resposta sim permite. Como, que eu tenha sabido, nenhum deles veio defender posições pessoais em nenhuma sessão pública, venho eu, modestamente, dar publicidade a algumas passagens das declarações voto que subscreveram, aliás em termos de grande elevação teórica e sabedoria jurisprudencial. Faço-o, assim, em espírito de "concordância prática"... e com a devida vénia.
2. Extracto da declaração de voto do Conselheiro Mário Torres. "Apesar da notória divisão de posições revelada pelos quatro acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional sobre a problemática do aborto (Acórdãos nºs 25/84, 85/85, 288/98 e o presente), num aspecto crucial verificou-se unanimidade por parte dos 31 juízes das diversas formações que subscreveram esses acórdãos: todos eles, nemine discrepante, assumiram que a vida intra-uterina constitui um bem constitucionalmente tutelado, donde deriva a obrigação do Estado de a defender. O reconhecimento da dignidade constitucional da vida intra-uterina (comum, aliás, à generalidade das pronúncias de diversos Tribunais Constitucionais da nossa área civilizacional) - que é independente de concepções filosóficas ou religiosas sobre o início da vida humana - não impede, como é óbvio, a admissão de que a sua tutela seja menos forte do que a da vida das pessoas humanas (...). O que se me afigura constitucionalmente inadmissível, por incompatível com o reconhecido dever do Estado de tutelar a vida intra-uterina - com consequente postergação da concepção primária do feto como uma "víscera da mulher, sobre a qual esta deteria total liberdade de disposição - é admitir que, embora na fase inicial do desenvolvimento do feto, se adopte solução legal que represente a sua total desprotecção, com absoluta prevalência da "liberdade de opção" da mulher grávida, sem que o Estado faça o mínimo esforço no sentido da salvaguarda da vida do feto, antes adoptando uma posição de neutral indiferença ou, pior ainda, de activa promoção da destruição dessa vida.
Não acompanho, assim, o argumento expendido no nº 48º do Acórdão nº 288/98 e retomado no nº 31 do precedente acórdão, que vislumbra uma ponderação de interesses no "contexto global" da regulação da matéria, como que "compensando" a desprotecção total da vida intra-uterina nas primeiras 10 dez semanas com a protecção total (ou quase total) nos últimos períodos de gestação, argumento que se me afigura inaceitável face à inarredável individualidade e infungibilidade de cada vida humana, mesmo que intra-uterina".
3. Extracto da declaração de voto da Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza. "Se, no limite, se poderia talvez defender que a simples descriminalização [do aborto] é compatível com o princípio da inviolabilidade da vida humana [consagrado no art. 24º da Constituição], ficando esta protegida por formas de tutela jurídica sem carácter penal, já, porém, a liberalização, no sentido de tornar a interrupção voluntária da gravidez um acto lícito, não condicionado por qualquer causa justificativa, me parece inconciliável com o princípio da inviolabilidade da vida humana, razão pela qual deveria ser mantida a jurisprudência deste Tribunal [Constitucional] fixada nos acórdãos nºs 25/84 e 85/85, apenas compatível com o sistema das indicações" [isto é, da necessidade de invocação de razões legalmente justificativas].
4. Extracto da declaração de voto do Conselheiro Benjamim Rodrigues. "O direito à vida humana é protegido pela Constituição (art. 24º, n.º 1) como direito inviolável. O vocábulo "inviolável" só poderá significar que se trata de um direito que não poderá ser violado em caso algum, mesmo pelo Estado legislador. Nesta óptica, apenas, se conceberão causas de exclusão que consubstanciem, perante a Constituição, situações de não violação, como sejam as causas constitucionais de desculpabilização ou de justificação.
Trata-se, deste modo, de um direito ou garantia constitucional que se encontra dotado de uma especial força de tutela constitucional. E bem se compreende que o seja, porquanto se trata de um direito fundante de todos os outros, de um direito que é pressuposto necessário de todos os outros, pois sem titulares de vida humana não poderá falar-se em dignidade humana ou sequer constituir-se comunidade organizada em Estado de direito democrático.
Ao contrário, o direito ou garantia fundamental que se apresenta em colisão com ele - a liberdade da mulher a manter um projecto de "vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade - não se apresenta constitucionalmente dotado de uma tal força excludente de lesão. [...] "O aborto importa a morte do concreto titular da vida humana, do concreto embrião/feto. Com ele extingue-se o direito de se desenvolver no seio materno (e de mais tarde nascer), de acordo com a informação codificada no DNA, a vida humana do concreto feto advindo do específico ovo zigoto, este por sua vez, resultante da fecundação do concreto ovócito pelo concreto espermatozóide. O ser irrepetível advindo da partogénese celular deixa de existir, saindo violado, por completo, o seu direito à vida humana. Pelo contrário, o prosseguimento da vida uterina não extingue a liberdade da mulher a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade, mas tão só, quando muito, a obriga a que adapte, para o futuro, o seu projecto de vida às novas circunstâncias, tal como pode acontecer por força de muitas outras circunstâncias possíveis naturalisticamente, como, por exemplo, a doença, o desemprego, acidentes, etc. Ela continua a ser titular de um direito pessoal ao livre desenvolvimento, de o poder exercer e manifestar, repetidamente, em todas as outras condições da sua vida".
5. Extracto da declaração de voto do Conselheiro Moura Ramos. "É o momento de origem da vida que torna operativo o postulado constitucional da sua inviolabilidade" (Paulo Otero, Direito da Vida, Coimbra, 2004, p. 82). Do reconhecimento da protecção constitucioanl da vida intra-uterina não decorre que lhe deva ser necessariamente dispensada uma tutela jurídico-penal idêntica em todas as fases da vida... [...] O que já contrariará a Constituição, pelo contrário, será uma solução legislativa que, num dado período (dez semanas, no texto da pergunta), permita o sacrifício de um bem jurídico constitucionalmente protegido, por simples vontade da mãe, independentemente de toda e qualquer outra consideração ou procedimento. Em tais casos, não poderá falar-se em nosso entender de concordância prática ou de ponderação de valores, uma vez que nenhuma protecção é dispensada ao bem jurídico vida. É certo que o acórdão sustenta, diferentemente, existir ainda aqui uma ponderação, ou uma tentativa de concordância prática, entre o bem jurídico vida (do feto) e o direito à autodeterminação da mulher grávida. Simplesmente, entendemos que, com a solução legal proposta, ao fazer prevalecer sempre, em todos os casos e independentemente das circunstâncias, o que se designa por "direito ao livre desenvolvimento da personalidade da mulher", se está afinal a postergar completamente a protecção da vida intra-uterina que cremos ser objecto de tutela constitucional. Também não ignoramos que o acórdão pretende responder a esta objecção considerando existir uma protecção do bem jurídico vida como que vista diacronicamente, uma vez que se a ponderação se faz nas primeiras dez semanas a favor do direito ao livre desenvolvimento da mãe grávida ela passa depois por admitir uma tentativa de concordância prática nos termos do método das indicações para, no período final da gravidez, reverter à protecção total do bem jurídico vida. Não podemos porém aceitar esta versão, na medida em que a protecção dos bens jurídicos não pode ser vista em abstracto, desenraizada da consideração dos seus titulares [...].
6. Extracto da declaração de voto do Conselheiro Mota Pinto. "O que não acompanho é a conclusão de que a afirmada "concordância prática" entre a liberdade, ou o "direito ao desenvolvimento da personalidade", da mulher e a protecção da vida intra-uterina "possa conduzir a desproteger inteiramente esta última nas primeiras dez semanas (durante as quais esse bem é igualmente objecto de protecção constitucional), por a deixar à mercê de uma livre decisão da mulher, que se aceita será lícita, em abstracto, ou seja, independentemente da verificação de qualquer motivo ou indicação no caso concreto". Por outras palavras, não concordo com que, pela via da alegada harmonização prática dos interesses em conflito, a Constituição permita chegar a uma "solução dos prazos", com aceitação da total "indiferença dos motivos" ou de uma "equivalência de razões" para proceder à interrupção voluntária da gravidez, para a qual todas as razões podem servir -"quer seja realizada por absoluta carência de meios económicos e de inserção social, quer seja motivada por puro comodismo, quer resulte de um verdadeiro estado depressivo da mãe, quer vise, apenas, por exemplo, selar a destruição das relações com o outro progenitor"".
7. Extracto da declaração de voto do Conselheiro Pamplona de Oliveira. "Se a Constituição, no aludido preceito [nº 1 do art. 24º] protege sem excepção a vida humana, é necessário que se conclua que esse dever se protecção legal se estende a todas as formas de vida humana e, portanto, à vida inter-uterina. [...] Significa, isso sim, que se me afigura constitucionalmente desconforme que se retirem completamente todos os obstáculos legais à morte da vida intra-uterina, nesse período de 10 semanas".