quarta-feira, dezembro 31, 2003

Língua Portuguesa

Não sei onde, li que num estudo efectuado sobre a obra de Camilo Castelo Branco se tinha constatado que o escritor utilizava umas trinta e duas mil palavras. Trinta e duas mil.
E nós aqui tantas vezes a espremer-nos para encontrar o termo que possa dizer o que queríamos transmitir.
Não sei de inventariação semelhante, por exemplo, em Tomaz de Figueiredo ou Aquilino Ribeiro, mas certamente que se fosse feita alcançaria também números impensáveis para nós, modestos utilizadores do mesmo instrumento em versão utilitária e simplificada.
Para entender o significado do número acima citado bastará lembrar que o português médio se basta para comunicar com umas mil e quinhentas ou duas mil palavras.
E nem vale a pena pensar numa espécie de grunhos, que se encontram a cada passo, e que comunicam o pouco que têm para comunicar por meio de uns reduzidos grunhidos estereotipados.
Por esta altura já os leitores estarão a pensar como se compreende a ênfase, o destaque, a preocupação, que volta e não volta aqui exprimo quanto à sorte da fala que é nossa.
É um património único, inestimável, insubstituível – e todos os dias desprezado, maltratado, desperdiçado.
O seu ensino atingiu níveis de calamidade publicamente reconhecida. E se internamente reina o desmazelo e o abandono, para o exterior nada existe.
Não há nem nunca houve uma política oficial de promoção para a internet, como já aqui expus. Abandona-se assim esse terreno onde hoje se travam todas as batalhas do futuro.
Não há lugar no mundo onde não se encontre um português – e não se aproveita enquanto é tempo esse potencial espantoso, nem sequer do ponto de vista da função económica, actualmente medida de todas as coisas.
Que rede poderia construir-se!
Surgem constantemente da Galiza pedidos de auxílio – e ninguém parece entender o valor de mais uns milhões de falantes, nem o Governo, nem um editor, nem um jornal, e diga-se a verdade que nem sequer a generalidade dos portugueses actuantes na rede.
Esquece-se completamente o Brasil, ou qualquer outro local onde se fala português – quando um mínimo de ambição levaria a que quem concebe um site ou define um objectivo na net deveria pensar não em dez milhões de destinatários prováveis, mas em duzentos e muitos milhões de destinatários possíveis.
Se a língua portuguesa é a “última fronteira da Pátria”, como disse Augusto de Castro, é preciso recordar a toda a hora que o que fizermos a este respeito engrandece ou empobrece Portugal, reduzindo-nos ou projectando-nos no mundo, conforme o destino que soubermos dar à nossa Língua Natal.

Os que não são consultados

Ouvi hoje contar o caso de um acrobata americano que teve uma ideia. "Brain wave". Uma ideia nova para seu programa de televisão. É assim: em pé no rebordo do telhado de um arranha-céu ele faz cabriolas, não com seu próprio corpo, mas com o corpo de uma criancinha de meses que ele atira para o ar, apanha, equilibra, muda de mão e passa entre as pernas. Como se vê, o espectáculo deve ter sido excitante e gostoso para as pupilas cansadas de outros espectáculos mais rotineiros.
Essa história lembrou-me outra. Estavam duas ou três senhoras de nossa melhor sociedade, dessas que tomam chá de chapéu, a discutir o caso de um desabusado cirurgião (também da melhor sociedade) que provocara um aborto sem consultar ninguém. Dizia, então, uma das senhoras, a do chapéu de lilazes: "Eu acho que a família deve ser consultada..." A dama de chapéu cor-de-amora foi mais precisa: "Eu acho que compete à mãe, exclusivamente, resolver o caso". E estava a conversa neste ponto quando um amigo meu, tímido e gago, que nunca consegue ser ouvido por ninguém, sugeriu que quem devia ser consultada era a criança. E é a ausência dessa consulta que me horrorizou na história do acrobata. Por muito menos zangou-se um dia Jack London, numa tourada, porque os touros e cavalos não eram ouvidos.
Mas ninguém ouviu a reflexão de meu amigo. Como ninguém ouve a misteriosa linguagem com que os embriões de dois a três meses declaram categoricamente que querem viver. Como também cada dia menos se ouve a linguagem, já menos mistificada, das crianças de dois ou três anos que são energicamente contrárias ao divórcio. O facto é esse: na ginástica, no aborto e no divórcio, há pessoas, personagens, pessoas humanas, vivas, que estão envolvidas e que não são ouvidas.
"Ora, direis, ouvir crianças... certo perdeste o siso!", dirá algum leitor que ainda se lembre dos esplendores do nosso parnaso. Como é possível ouvir um embrião? Como se pode ponderar o que diz uma criança de dois anos?
Digo-te eu, leitor, que foste tu que perdeste o siso. E acrescento: o mundo está como está, e o nosso Brasil chegou onde sabemos que chegou, porque as pessoas (a começar pelas da melhor sociedade) não têm mais ouvidos para ouvir e entender a linguagem dos fetos. Fuzilam-se inocentes, aos milhões, sem remorsos, dada a circunstância supersónica de seus protestos. Vou explicar-te, amigo, mais uma vez, como se pode ouvir o que não fala, e consultar o que não tem a idade da razão. É muito simples: ouvindo e consultando a lei que está gravada na natureza das coisas, a lei que qualquer consciência desobstruída de chás e chapéus pode ouvir e consultar. Uma boa lavadeira, uma honesta cozinheira, sem procurar psicólogos e sociólogos, têm ouvidos para a voz da Inocência perfeita, para a voz que condena o aborto, o divórcio, e outras acrobacias feitas com carne de gente.

Gustavo Corção

De novo para Castelo de Vide

Na minha deambulação constante pelo Alentejo por via dos seus poetas, regresso a Castelo de Vide, à Quinta da Palmeiras, a Francisco Bugalho. Agora um poema do tempo quente, no aconchego doméstico que o frio Inverno impõe.

Romance Policial

Acabei o romance policial,
E sinto a amargura indefinível
Daquela personagem principal.

(Lá fora há silêncio na modorra
Que o sol lança sobre as coisas).

Pobre mulher loira que matou por amor!

Afinal, isto é banal;
Mas hoje, não sei porquê,
Sinto bem fundo o drama
Daquela personagem principal.

(Zumbe sobre a minha mesa uma mosca cansada...
Lá fora anda o calor do sol; não há mais nada).

Só eu estou cheio de sonho
Da mulher loira que matou por amor...
E, não sei bem porquê, também componho
Um drama em que entro, e que é desolador.

Sinto-me simplesmente comovido
Como uma colegial,
Com esta história simples, sem sentido,
E superficial.

Há dias assim,
E eu bem estou vendo como é falso
O caso do romance policial.
Mas...
Queria poder salvar
Aquela mulher dócil e franzina
Que matou por amor,
E cuja morte
Fez surgir esta dor
Que me domina.

É enternecedor
O fim do tal romance policial!!
E é de mau gosto, frágil e banal!

(Lá fora, que calor!...)


FRANCISCO BUGALHO

terça-feira, dezembro 30, 2003

O Senhor dos Anéis e o Velho da Montanha

Em 1978 o realizador Ralph Bakshi dirigiu uma versão animada de “O Senhor dos Anéis”. Resultou daí um filme de 128 minutos, baseado apenas em parte da obra de J. R. R. Tolkien (deveria ter uma continuação, que foi efectivamente feita em 1980, mas já por outros, e noutros moldes).
O filme foi logo considerado por alguns um clássico, uma obra-prima da animação.
Porém, fazendo um balanço mais alargado das opiniões, pode constatar-se que foi um fracasso, tendo em conta as posições do conjunto da crítica, e sobretudo do público, que determinou o fiasco comercial do empreendimento. Compreensivelmente: imagine-se, um filme animado que não é destinado ao público infantil, nem é produzido pela Disney (aliás o autor do livro tinha proibido expressamente em testamento que a sua obra pudesse ser adaptada pela Disney).
Em Portugal aconteceu o mesmo fracasso: o filme chegou tarde, já começada a década de oitenta, esteve pouco tempo em exibição no São Jorge, e passou despercebido.
Fui ver. Estive lá numa tarde, com a sala quase às moscas e uns poucos espectadores com um ar bastante aborrecido, insensíveis ao confronto épico entre a Luz e as Trevas.
Espantosamente, por milagre deste reino maravilhoso da blogosfera, descubro agora, passados mais de vinte anos, alguém que também lá esteve, e lembrava-se disso: o Velho da Montanha.
Como o mundo (até o blogosférico!) é pequeno!

PALAVRAS DE ONTEM

Por falar em aborto, ouvi dizer que na Suíça tornou-se legal. Não sei detalhes. Não sei em que circunstâncias, pelos quatro cantões da Suíça, tornou-se admissível matar a criança que teve a impertinência de brotar num ventre de moça. Imagino que os suíços, que são reconhecidamente um povo ordeiro e asseado, e sobretudo muito deferente com os turistas, tenham descoberto excelentes razões para assassinar pequeninos suíços. Uma das razões que imagino seria a seguinte: mata-se a criança excedente pelo bem da pátria e da família. Um pouco como se queima o café, para valorizá-lo. De uma senhora, que tem um Pontiac verde-claro, já ouvi dizer que se justifica "não guardar" para manter o "padrão de vida". Não se guarda a criança para guardar-se o Pontiac. Outra senhora, um pouco menos desvairada, alega que fuzila a criança não nascida em benefício das outras já nascidas.
Esses argumentos chegaram aos ouvidos de meu amigo Álvaro Tavares que sugere uma emenda para a teoria dessa senhora que mata um filho em benefício dos outros: admitido que se deva matar um para benefício da família e da sociedade, devemos deixar a criança nascer, e, mais tarde, num conselho de família, escolher a criança mais feia, ou mais bronca na tabuada, ou mais birrenta na mesa, e então executá-la para o maior bem da família e da pátria.
Concordo inteiramente com essa emenda apresentada pelo meu amigo Álvaro Tavares. Em nome da psicologia, da sociologia e da eugenia, acho precipitada a pena de morte que recai sobre a "criança desconhecida". O mundo, entre seus momentos de prolongado desvario, já teve a ideia de honrar o soldado desconhecido; mas nos seus piores momentos ainda não teve a ideia de fuzilar um criminoso desconhecido. E muito menos um desconhecido inocente. Aprovo pois a emenda e aqui acrescento o meu pesponto. Em lugar do conselho de família, eu sugiro que consultem um psicotécnico.
Voltando aos suíços, confesso que não me espantei demais com a notícia. Tenho desconfiança desses países muito ordeiros, muito arrumados. Tenho horror a hotéis. Só me espanto com uma incoerência que vejo nessa lei dos suíços: se a religião daquele pitoresco país é o turismo, se tratam tão bem os que chegam das Américas, porque diacho maltratam assim o pequenino turista que ingressa num dos quatro cantões pela mais antiga das portas?


Gustavo Corção

“Ana Paula”

Não sei como se fazem e se desfazem as glórias literárias. As tertúlias lisboetas passaram décadas a dizer que era o João Gaspar Simões. Mas que não era, viu-se: o homem morreu, ninguém o substituiu, e as reputações e esquecimentos continuam a nascer e a viver ao ritmo do tempo. Aliás, pode dizer-se com segurança que se o Gaspar Simões tivesse influência determinante nessas coisas tinha ele tratado de si; e o certo é que já ninguém se lembra dele.
Mas que dá que pensar, lá isso dá. Lembrei-me várias vezes nos últimos tempos, a este propósito, de Joaquim Paço d’Arcos. Morreu há pouco mais de vinte anos. Os livros nem são difíceis de encontrar. Porém, o escritor que durante décadas tinha tido os favores da popularidade sempre do seu lado, mesmo quando a crítica não estava, desapareceu de todo.
Ninguém conhece, ninguém lê, ninguém fala. Como hipótese, penso que talvez isso se deva ao desaparecimento da própria classe social que Paço d’Arcos representava, descrevia e para quem em grande medida escrevia - e o consumia.
Hoje não existe aquela burguesia e aristocracia letradas que o autor da “Crónica da Vida Lisboeta” foi pondo em cena nas suas obras. Desapareceu, na voragem do tempo, e o que dela resta faz gala em não saber ler. Ou caiu tanto que compra Margarida Rebelo Pinto, de mistura com a “Caras”.
Outra hipótese será realmente a pouca valia do autor; mas por aí não me meto, que são cavalarias para que não me encontro habilitado.
Mas quanta veneração chegou a ter Paço d’Arcos! Quando encontro uma senhora de nome Ana Paula lembro-me sempre do escritor, e nunca deixo de me perguntar se também ela deve o nome ao romance.
Nem essa herança de Paço d’Arcos é conhecida: o nome Ana Paula agora é banal e vulgarizado, como Maria de Fátima. Porém, enquanto uma Maria que é de Fátima tem a ideia que o seu nome assinala qualquer coisa ali para os lados da Cova da Iria não há já nenhuma Ana Paula que saiba que o seu nome entrou em força nas Conservatórias por causa de um romance agora desconhecido.
Passaram sessenta anos; tempo suficiente para a consagração ou o esquecimento. O extraordinário impacto de “Ana Paula” na sociedade lisboeta daquela época diluiu-se no esquecimento total.

Para os da Orada

Entre Estremoz e Borba, fica a Orada. Era em tempos idos, antes de haver automóveis e estradas nacionais, primeira estalagem obrigatória para quem vinha de Elvas, a caminho de outras vilas do reino, ou da capital. Carreiros e contrabandistas ...
Foi o berço de Azinhal Abelho, já mencionado antes neste blogue de pouca imaginação e nenhum talento.
Fica aqui esta oração profana às meninas de Nossa Senhora da Orada.

FLOREAL

Maria Maia, a da saia
de castorina amarela...
Quem é que será o faia,
que lhe há-de despir a saia,
que a há-de lograr a ela?

Seu corpo é uma obra prima,
seu corpo é uma coisa rara...
uns vinte anos trigueiros
envoltos em chita clara.

- Maria, se fores à monda;
Maria se fores ceifar,
não andes nunca sozinha...
- cansa-se a mãe de ralhar.

Maria Maia não ouve,
Maria Maia não quer
Olha para a sombra e repara
Que é uma bonita mulher.

Na vida das empreitadas,
traz o chapéu largueirão
enfeitado com giestas,
flor da sua estimação.

Os aventais barreados
com rendas e entremeios;
blusas com folhos pregados
disfarçam-lhe o arfar dos seios.

O chaile de caxemira
tapa-lhe o corpo em fermento.
E eu pergunto: oh! Mari-Maia
Onde tens o pensamento?

Carreiros e contrabandistas,
mesmo dos mais afamados
já te deitaram as vistas,
mas acharam-se enganados.

Tu a todos dizes - não.
Ela a todos desengana.
Oh! Mari-Maia, a da saia
Oh! Mari-Maia magana.

AZINHAL ABELHO

Para Castelo de Vide

Neste caso a poesia de Francisco Bugalho pinta um quadro como um mestre flamengo. Repare-se no jogo de luz e sombra, na atmosfera que desenha, no retábulo de um íntimo natal.

NASCIMENTO

A minha égua lazã
Teve uma linda cria,
Nascida antemanhã,
Mal, ao de leve, despontava o dia.

Cá fora,
Na placidez da hora enregelada e fria,
Silenciosa e deserta
A terra dormitava.
E pela porta aberta
Da velha estrebaria,
Um hálito de vida se escapava
E, como fumo, manso se perdia.

Sombras de uma lanterna fraca
Dançavam, ágeis, na parede escura.
E brandamente,
Naquela luz opaca,
Tudo envolvia uma doçura quente.

Sobre a palha doirada,
Enquanto o sol aos poucos
Ia surgindo à porta
A mãe jazia, agora descansada.
E a dois passos imóvel e estirada,
A cria parecia ter nascido
Para logo ficar morta,
O corpo já doído
Do trabalho da vida começada.

Venho assomar-me à porta,
A contemplar o meu amigo dia.
E o campo, todo branco de geada,
Brilha até onde a minha vista alcança...
E, infantilidade,
Ou despropositada poesia,
O nascimento, a hora, a luz do dia,
Dão-me um fecundo amanhecer de esperança.


Francisco Bugalho

segunda-feira, dezembro 29, 2003

"Portugal Contemporâneo"

Primeiro foi o Jaime, na improvisada redacção do “Futuro Presente”, então num segundo andar da Rua de São Nicolau, no coração pombalino da Baixa, que sempre foi o escritório de advogados Moura Coutinho - “Oh pá! Isso é fundamental!”
Fiquei preocupado. O Jaime, geralmente parco de encómios e moderado de entusiasmos, exprimia sincera admiração, a brilhar por trás do fumo do cigarro e dos óculos de muitas dioptrias. E inquietava-se com o estado da minha formação cultural.
Envergonhei-me, pois era verdade que já tinha passado bem os vinte anos e nunca tinha lido o “Portugal Contemporâneo”.
Estava ali assente que era preciso assinalar o livro e o autor, aproveitando o tempo em que se completavam cem anos sobre a edição. E foi na sequência disso que o “Futuro Presente” veio a dedicar um número ao “Portugal Contemporâneo” e a Oliveira Martins, com colaborações várias (saliento Borges de Macedo), comemorando o centenário da obra.
Pelo meu lado, discretamente, lá encontrei os dois volumes do “Portugal Contemporâneo” e tratei de preencher a lacuna. Escusado será dizer que o Jaime tinha razão. Ler o “Portugal contemporâneo” é essencial para compreender ... o Portugal contemporâneo.
Nunca mais deixei de o proclamar. Em qualquer discussão sobre a nossa vida política, sou geralmente eu que disparo - “Oh pá! Mas isso já está no “Portugal Contemporâneo”!
Entretanto, aconteceu uma daquelas coincidências raras. Na altura frequentava eu a Faculdade de Direito de Lisboa. Digo frequentava, e não é mentira, porque ia lá todos os dias. Mas as aulas, enfadonhas de morrer, provocavam-me inultrapassável alergia. E consequentemente o tempo das ditas era ocupado muito mais frutuosamente na Faculdade de Letras, logo ali em frente.
Na Faculdade de Letras, sobretudo no lado das Línguas e Literaturas, as turmas eram então constituídas em regra por cerca de cem estudantes, dos quais noventa eram meninas, dois ou três eram claramente equiparados e só outros dois ou três eram definidamente do sexo masculino. Tornava-se por isto, se mais não houvesse, um ambiente refrescante e agradável. Mas havia outros motivos, como se depreende da tal coincidência a que aludi.
Dava-se o caso de estar então na fase final da sua carreira docente, com a liberdade que isso faz supor, o velho António José Saraiva. E tinha ele a responsabilidade de uma cadeira denominada “Cultura Portuguesa”. Aliás era este também o tema da sua reflexão e estudo nos últimos anos de actividade intelectual, com se constata na respectiva produção. Ora por convergir no apreço manifestado pelo Jaime quanto à obra de Oliveira Martins decidiu António José Saraiva dedicar toda a disciplina nesse ano ao estudo e comentário do livro em questão.
E assim foi; o mestre lia e discorria, estabelecia conexões, reflectia e filosofava, interrogava-se, pensava. Era uma experiência única, um exercício vivo de inteligência e cultura. Pedi naturalmente ao velho professor que me permitisse assistir sempre, aproveitando a facilidade de acesso deixada pela informalidade reinante. Ele primeiro olhou-me, com um leve ar admirado e desconfiado, estranhando o pedido ou pensando na razão mais à vista. Mas aceitou. E foi assim que eu, estudante de Direito, frequentei a cadeira anual de Cultura Portuguesa regida por António José Saraiva na Faculdade de Letras e que este dedicou ao “Portugal Contemporâneo” e a Oliveira Martins.

De novo o Bispo do Porto

O Senhor Bispo do Porto resolveu, ou alguém resolveu por ele, tentar minorar o mal feito com a asneirenta entrevista que concedeu ao "Expresso".
Publicou para tanto uma Nota Episcopal, que pode ser lida na íntegra no "Portugal e Espanha" (se forem até lá aproveitem para ler tudo, pois trata-se de um dos mais instrutivos e úteis blogues que conheço).
Pela minha parte já li a Nota, com atenção e respeito, e só quero deixar três pequeninos comentários.
Primeiro: fiquei contente em saber que ainda há quem possa puxar as orelhas ao Senhor Bispo do Porto.
Segundo: fiquei admirado por Sua Eminência colocar a sua assinatura em tal documento - a humildade é virtude que ninguém lhe conhecia.
Terceiro: fico esperançado, embora não muito, em que de ora em diante todas as Notas Episcopais a assinar pelo Senhor Bispo do Porto sejam escritas por quem escreveu esta - e que Sua Eminência continue caladinho.

O Senhor dos Anéis

Deixando para trás Fernando Namora (e esquecendo mesmo que ele enquanto andou cá pelo Alentejo apanhou demasiado Sol naquela tola, e ficou depois algumas décadas a sonhar com outros sóis pouco recomendáveis), não resisto a lançar alguns comentários sobre "O Senhor dos Anéis".
A tremenda popularidade dos livros, e sobretudo dos filmes, causa-me sincero regozijo. O autor e a obra foram uma paixão de juventude. Nesse tempo pouca gente tinha ouvido falar em Portugal de Tolkien e do "Senhor dos Anéis" - embora o autor já tivesse morrido de velho e a obra já contasse umas boas décadas.
Creio mesmo que terei sido o primeiro a escrever num jornal português de grande circulação sobre o impacto que a obra estava a conseguir nos meios restritos que então a veneravam (muito antes de existir qualquer edição portuguesa).
O meu entusiasmo era conhecido, e lembro-me a propósito que o Eurico de Barros, então estudante de Letras, fez uma visita turística a Londres e no regresso me presenteou com um livrinho de Tolkien que tinha comprado lá para esse fim - acrescentando-lhe uma dedicatória bem humorada. O livrinho era "On fairy tales" - o velho Tolkien também se tinha perdido a estudar os contos de fadas, e o Eurico entendeu que a obra era ajustada às fantasias que me ocupavam a mente.
Ainda bem que, passado tempo, o autor e a sua obra máxima lograram aceitação geral e sucesso universal. A glória veio tardia, mas veio, e é justa.
Mas o fenómeno intriga-me. Então as interpretações e as explicações que costumam acompanhar as grande obras? Onde estão os intelectuais orgânicos, os "maitres-a-penser" sempre disponíveis para nos dizer o que devemos e o que não podemos pensar? Circulam por aí já teorias elaboradas sobre signos e significados do vasto mundo de Tolkien?
Com efeito, a questão é premente.
Como compatibilizar uma visão racionalista, mecanicista ou materialista do mundo com o universo mítico e espiritualista de Tolkien?
Como harmonizar as convicções relativistas e indiferentistas com aquele tremendo e agónico combate entre o Bem e o Mal?
E aquela epopeia guerreira encaixa-se nas concepções folclóricas tipo "make love not war"?
A presença obsidiante da Tentação e da Queda - suportam optimismos antropológicos?
Aquele mundo providencialista onde há Heróis, Eleitos, Ungidos, destino e missão, pode harmonizar-se com uma cosmovisão igualitarista e consensualista da sociedade?
Aquelas narrativas onde a acção é sempre serviço e sacrifício têm alguma coisa em comum com uma visão hedonista da vida?
Ardo em expectativa à espera das iluminações que decerto não faltarão.

Namora

Hoje é a vez de um poema alentejano do novelista e romancista Fernando Namora, que por cá passou parte marcante da sua vida e aqui viveu grande parte da sua experiência de clínico rural (como bem se constata nos “Retalhos da Vida de um Médico”).
Cá vai, com as minhas lembranças para Pavia, Cabeção, Mora, Brotas .... a volta do Namora. Já há algum tempo que não passo por esses lados, mas haja paciência – Mora e Pavia não se fizeram num dia.
O poema evoca o Verão, lembrança agradável nestes dias invernosos.

Veio o estio Cacilda!

Veio o estio Cacilda!
Chiar de bois,
milho amarelo,
suor na gente,
sestas na terra,
poços sem água,
os dias grandões!
Veio o estio, Cacilda!
Leva ao monte o almoço do teu home
e beija-lhe a testa suada
se ainda souberes!
Olha o campo doirado,
as espigas inchadas,
os pássaros no figo,
os moscardos no gado,
os meninos despidos!
Veio o estio, Cacilda!
Guarda o sono para o inverno
que é preciso encher o lar!


Fernando Namora

domingo, dezembro 28, 2003

Vacas sagradas

A religião do politicamente correcto tem os seus santarrões, de veneração geral e obrigatória.
Trata-se em geral de personagens falsas, de virtudes escolhidas por catálogo e montadas ardilosamente para servir os objectivos pré-definidos, cujas imagens e biografias supostas são posteriormente universalizadas pelas agências especializadas, em campanhas repetidas ad nauseam.
São vultos que têm o condão de me despertar especial irritação.
Surge-me à cabeça o Ghandi. Este distinguia-se por ser um indiano mestiço, com superior cultura britânica, de tendências snobs e ambições grandiosas. Com os ingleses tinha aprendido tudo, sobretudo a hipocrisia.
A certa altura descobriu a fórmula: largou as fatiotas elegantes e o look oxfordiano e assumiu aquela imagem de faquir embrulhado num lençol. Ao mesmo tempo teve uma genial intuição propagandística: a ideia da não violência, que de modo simplificado consiste em agir de forma a obrigar quem tem o bastão a usá-lo para logo depois ir exibir as nódoas negras à compaixão universal.
Os caudais de violência e de ódio desencadeados por todo o subcontinente indiano pela aplicação sistemática dessa táctica, com recurso a constante mobilização das massas e hábil domínio da psicologia das multidões, tudo sempre acompanhado de propaganda infindável para uso interno e externo, geraram situações de conflitualidade e violência que não conheceram qualquer acalmia nos últimos sessenta anos.
Outra vedeta desta galeria é o Luther King. Trata-se de um vulgar pregador negro daquelas inumeráveis igrejas mais ou menos evangélicas que abundam nos Estados Unidos, que à partida nada diferenciava da gritaria e das obsessões dos outros.
Na sua biografia nada há de especial a não ser o forte apetite sexual, com fixação em teen-agers (ao que parece tinha isso em comum com o “asceta” Ghandi). Mas também este sofria de ambições megalómanas e descobriu um caminho: a exploração política dos ressentimentos seculares das comunidades negras americanas.
O activismo dele e dos seus criou uma realidade política incontornável desde então na política americana, traduzida na presença da sensibilidade específica dos negros, definida pela negritude e não por qualquer ideia ou projecto. Racismo puro.
E a criação dessa realidade, através do reforço dos mecanismos de identificação pelo apelo a sentimentos e emoções tribalizantes, gerou uma cadeia inesgotável de conflitos sociais e raciais, atrasando a integração e cindindo dolorosamente a comunidade negra em relação à sociedade americana, e afectando grandemente a coesão desta. O guetto gera o guetto.
Finalmente, outro santarrão por aí infindavelmente reproduzido em bandeiras, medalhões e tee-shirts: o Che Guevara.
A propósito deste ocorre-me sempre a reacção espontânea da filha de Fidel Castro, Alina, numa entrevista a propósito da sua fuga da ilha-prisão. O jornalista perguntava-lhe pela sua visão de acontecimentos e personagens, numa perspectiva adequada ao que ele aprendera aí pela subcultura generalizada. E a dado pessoa pergunta respeitoso: - “E Che Guevara? Conheceu-o?”
A jovem olhou-o e respondeu com naturalidade, mais ou menos isto que cito de cor: - “Sim, eu era muito pequena, mas lembro-me bem de Ernesto ... aparecia muito lá em casa ... era ele e Raul que tratavam dos fuzilamentos ...”
O jornalista fugiu para a frente apressado. Na mente daquela rapariga que descobria a sociedade fora da ilha a imagem gravada do “libertador” era a do fanático ministro dos primeiros tempos do castrismo: o homem que tratava dos fuzilamentos, o assassino dos anos negros do “paredón” para os inimigos da revolução, levados às centenas e aos milhares, quando ela era menina e os pais habitavam os palácios do poder.
A filha de Fidel desconhecia visivelmente o que as agências tinham feito de Ernesto: uma imagem viva do Cristo, redentor dos povos, mártir da tirania e da opressão – quanto andava a tentar reproduzir noutros locais o que já experimentara em Cuba.
Curiosamente, e aqui termino, estes três homens tiveram todos o fim trágico que se conhece. Como se os ódios acumulados na caixa de Pandora que abriram acabassem sempre por apanhar no seu vórtice de destruição os próprios que os soltaram pelo mundo.

Liberdade

Alguns leitores afligem-se: o meu blogue está pesado como chumbo, monótono, um tom cinzento e invariável, um longo dia de Inverno.
Eu bem os entendo. Que é chato, bem vejo eu – e admiro essa delicadeza de o não dizerem com todas as letras.
Mas o que é que querem? O bloguista é mesmo assim. E ou seja do observador ou das coisas observadas a visão que tem é realmente esta – escura.
Podia pintar, aguarelas coloridas? Nem jeito nem vontade. E depois há este indisfarçado prazer da verdade: o bloguista é livre, livre, pode mesmo ser como quer, dizer o que quer.
Nenhum cálculo manhoso inquina a escrita. Só as limitações do escriba. De resto, não há finalidade a alcançar. Nem janela na praça, nem coluna no jornal, nem comentário na televisão, nem votos, nem tachos. Não precisa de agradar a ninguém.
Mas compreendo a crítica, e agradeço o cuidado. E confesso que são os críticos que têm razão. De ora em diante vou tentar arranjar um sorriso, de vez em quando – nem que seja de plástico.

Natal

Estamos em véspera de Natal. O movimento das ruas dobrou; triplicou. Os automóveis buzinam, imobilizados nas esquinas entupidas; as lojas regurgitam; os vendedores não têm mãos a medir; e as pessoas, os clientes, entram, saem, escolhem, regateiam, comprimem-se, acotovelam-se, mas sorriem, sim, sorriem - porque parece que todo o mundo está muito contente.
Todo o mundo, menos o velho Scrooge. O amargo e triste usurário só pensa em si mesmo, e não lhe sobram ouvidos para as vozes cordiais que cruzam os ares com votos de Natal venturoso. Christmas! Merry, merry Christmas!
Passa o funcionário letra O, o funcionário letra N, o funcionário letra M; e passam as esposas, as virtuosíssimas esposas dos funcionários, cada uma com sua alegria embrulhada num papel sarapintado de sinos e velas. Boas festas! Boas festas! Todo o mundo está alegre. Todo o mundo parece ter na alma hinos e luzes.
Todo o mundo, menos o velho Scrooge, que vê com olho mau e oblíquo essa inconveniente profusão de gastos inúteis.
As mães se cruzam com as mães; tias esbarram em tias. Anda no ar um milhão de cálculos secretos envolvendo bonecas, espingardas e triciclos. E o cálculo mitiga o júbilo. As mães do padrão M param pensativas nas portas das casas de brinquedos; e ali na porta fazem-se mais densos cálculos, as cifras, as suputações, as somas, as subtrações. A espingarda então encolhe e vira revólver de rolha; ou diminui ainda mais e se reduz a um engenhoso brinquedo de matéria plástica, que só funciona bem, como ficará provado mais tarde, nas mãos habilidosas dos vendedores. Os sonhos, tratados com o reagente das cifras, dão um precipitado cor de cinza. Os vendedores embrulham em papéis sarapintados a espingarda que virou matéria plástica. Embrulham decepções. Caixa! Caixa! Caixa! O triciclo fica para o ano que vem, quando vier o aumento. Aliás, Toninho ainda é pequeno para o triciclo. E o vendedor embrulha aquilo em que se transformou o triciclo. Caixa! Caixa! Mamãe, olha ali, que amor de boneca! E a mãe puxa a menina padrão M que deseja a boneca padrão O. Caixa!
O brinquedo resultante da judiciosa combinação entre um sonho e um orçamento vai agora escondido no embrulho; e a mãe M, longe dos outros brinquedos da loja, que doem pela comparação, reata o fio do sonho. Raciocina para reconquistar a pureza do sonho. Toninho vai gostar, Toninho vai ficar radiante.
Passam embrulhos; embrulhos levando pessoas pelo dedo. Vejam! Apareceu no sangue da cidade esse acúmulo de células imaturas. Onde está a espingarda? onde está o triciclo? Viraram mieloblastos, detritos de sonhos, jovens, bastões, segmentados. Façam o exame de sangue da cidade!! E eu quero ver o jogo fisionómico do dr. Aquiles quando abrir o papel.
Boas festas, dr. Aquiles! Merry, merry Christmas! Todo o mundo está contente. A mãe de Toninho, a múltipla mãe do colectivo Toninho, que mora em Copacabana, em Itapiru, em Jacarepaguá, divide-se, ramifica-se, decompõe-se numa densa multidão de dorsos femininos. Os bondes passam cheios de pernas, pernas letra M, pernas letra N, e os festivos mieloblastos embrulhados com sinos e velas entram a circular pela cidade. Todo o mundo está contente, menos o velho Scrooge.
Mas será mesmo verdade, ó amável Dickens, que todo o mundo esteja contente? E a espingarda que virou celulóide? E o triciclo que ficou para o ano que vem? Embora antipático, quem tem razão é o velho Scrooge. Embora mesquinho, ele ao menos compreende uma coisa de capital importância: que é muito difícil dar. É a última coisa que se aprende; e é a primeira que se exige para um mundo habitável. E é por isso que eu vejo com melancolia essa procissão de equívocos embrulhados. Quem terá o coração tão duro que dê uma pedra ao filho que pediu um peixe? Mas a dificuldade se resolve desde que se embrulhe a pedra em papéis festivos; e as mães letras L, M, N, conseguem convencer-se de que a pedra é uma nova espécie de peixe. E é isso que dói, e como dói! A alegria falsificada, a alegria que virou matéria plástica.
Não digo que seja impossível uma alegria verdadeira, uma alegria de criança, com um brinquedo truncado e pobre. Não. É claro que uma alegria de criança pode nascer à toa; é claro que um pedaço desconjuntado de celulóide pode fazer feliz uma criança; é claríssimo que ainda não conseguiram secar, por mais que o tentem, as fontes vivas da infância, as riquezas de um coração menino que com pouco se contenta. Não. Continuem assim, por séculos e séculos, a enganar as crianças e os pobres. Sempre haverá pobres; sempre haverá crianças. Mas não é isso que mais me aflige. É também evidente que escolheram o dia do nascimento de Jesus para infligir uma festiva humilhação à pobreza. Basta pensar no Natal dos Pobres. As ruas se enchem de miseráveis em filas nos portões dos palácios. Se chove, fica ainda mais perfeito o espectáculo. Mas não é isso, ó Dickens, que mais me dói.
O que me dói é a falsificação, é o espírito de praxe que preside as tristes festividades dos homens. É dia de dar. A folhinha marcou o dia de comprar presentes. A vizinha da direita comprou, a vizinha da esquerda comprou. Eu preciso comprar. É praxe. É uso. É costume. E todo o mundo fica contente de entrar na equação de um uso, de um costume. Da praxe. Todo o mundo, menos o antipático Scrooge.
Que Natal é esse que acentua as injustiças, que exaspera as paixões, que alarga os equívocos? Admitamos a festa da cidade, do país, do género humano. Admitamos a celebração de algum feito que a todos interesse. Admitamos que depois de amanhã o mundo se lembre da natividade do Salvador, que nasce de uma Virgem, na gruta de Belém, porque não havia lugar para eles nas hospedarias. Mas nesta hipótese, meu caro Dickens, eu exijo, em nome da mesma lógica que me mata, que a alegria seja de uma outra ordem, e que não dependa assim, em primeira linha, dos cálculos e dos orçamentos. Há alegria e alegria; há graus de alegria; espécies de alegria: desde a cócega no pé da criança até a paz que nasce de uma concórdia perfeita; desde a estrepitosa bomba cabeça-de-negro até a gratidão silenciosa que desabrocha na quietude das almas.
Exijo uma outra alegria, apoiada sem dúvida nas coisas visíveis, no celulóide se quiserem, porque os homens vivem de sinais visíveis. Mas apoiada de leve, como convém às coisas do puro amor. Não é assim que fazem os namorados quando guardam pequeninas lembranças? Não seria melhor dar de presente pétalas de rosas, leves pétalas, levíssimas hóstias de amizade perfeita?
Chamou-me a atenção o diálogo travado à porta de uma casa de brinquedos. A dama de azul, majestosa e autoritária, discutia com o vendedor obsequioso, que já dava mostras de impaciência. Passando de um para outro, ora nas mãos profissionais do vendedor, ora nas mãos finas e cheias de anéis da abastada freguesa, uma bonequinha preta de olho arregalado, e com uma cestinha de bananas na cabeça, parecia alheia à discussão:
- É muito cara.
- Foi remarcada, madame. A senhora não encontrará uma boneca destas por menos de cem cruzeiros... Mas se a senhora quiser temos outras bonecas mais baratas. Qual é o seu orçamento, madame?
A dama de azul franziu ligeiramente os sobrolhos.
- É para uma menina pobre. A filha da empregada.
Ela não podia, evidentemente, marcar em cem cruzeiros o limite de "seu orçamento" como queria o desajeitado vendedor; assim, dizendo que era para uma menina pobre, explicava-se melhor. Não era para ela; para filha dela, para sobrinha dela, para alguma criança de sua espécie, dela; de sua qualidade, de sua classe, de sua condição: era para a filha da criada.
O vendedor compreendeu logo que o problema se deslocava para um novo sistema de micro-unidades. Ninguém, evidentemente, mede em quilómetros o diâmetro de um glóbulo de sangue, nem mede em milímetros a distância de Sírius. Há o mícron para o glóbulo e o ano-luz para os astros. Tudo tem suas dimensões, suas escalas adequadas, neste harmonioso universo.
Enquanto o novo sistema de unidades se estabelecia entre o vendedor e a majestosa senhora, eu olhava na vitrina um urso de astracã que comigo jogava o sério com seus olhos parados de contas azuis.
- Urso, amigo urso, diga-me, por favor, onde é que esconderam o menino Jesus?
O menino Jesus estava na esquina de Assembleia com Quitanda, no colo de uma mendiga. Ninguém desconfiava. As pessoas que passavam (Merry, merry Christmas) não viam o menino Jesus instalado no seu nicho de miséria. E tinham razão. O menino Jesus escondia-se no pobre. Amarelado, encardido, manchado, dir-se-ia que a mendiga o tirara de uma lata de despejo.
Quando eu passei, ele tentava pegar a chupeta caída nos trapos sujos da mãe. Levava-a à boca, sem jeito, metendo os dedinhos nos lábios, de onde corria uma saliva clara e inocente. A mãe, de braço estendido, pedia uma esmola pelo amor de Deus. Seria mãe de verdade? Dizem que se alugam crianças para mendigar. A mendiga é falsa. A criança é falsa. A mãe é falsa. E dessa falsidade todo o mundo desconfia.
A chupeta caía de novo e perdia-se no seio miserável. Nesse momento, quando eu já me afastava, o menino olhou para mim. Seus olhos pousaram em meus olhos. Sim, lá dos abismos de sua inocência seus olhos subiram. E o menino sorriu. Para mim!

Gustavo Corção

sábado, dezembro 27, 2003

Horário das missas de rito tradicional latino-gregoriano

Domingos: às 11 horas, no Priorado São Pio X
Estrada de Chelas, 29-31 (junto à Avenida D. Afonso III), em Lisboa
Segunda-Feira a Sábado: às 19 horas, no mesmo local

Neste Domingo 28 de Dezembro: também em Monforte, às 18.30 horas, na Capela Nossa Senhora Rainha de Portugal Avenida General Humberto Delgado, n.º 3, Monforte

Palavras e sangue

Se bem me lembro, ao iniciar este blogue foi logo com um aceno a Giovanni Papini. Un uomo finito ...
Não sabia eu quanto a sombra do genial italiano me acompanharia no percurso.
Palavras e sangue, palavras e sangue ...
Constantemente me acode o título da obrinha em que ficaram reunidos alguns contos de antologia. Li-a e reli-a já faz muito tempo, e voltei a fazê-lo outras vezes, numa edição apresentada pelo saudoso Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), antes de também este enveredar por caminhos menos agrestes.
Palavras e sangue ... queria dizer o angustiado escritor que sem esse ingrediente não escrevia. A caneta seguia sempre embebida no líquido vital do autor.
Dor e sofrimento. Tudo o que saía dali podia consumir-se à confiança – tinha selo de garantia. Autenticidade.
Que diferença, para a água chilra que rega as artificiosas glórias literárias desta hora que passa, todos os dias apressada - mas ameaçando não passar mais!
Pela minha parte, sigo com Papini. E não se surpreenda o leitor se algum dia vir aflorar no texto algumas gotículas mais avermelhadas.

A presidência e o abortamento

Como já sucedeu em outras ocasiões, o senhor Presidente da República, num pessoalíssimo entendimento sobre os deveres de neutralidade do cargo, quis intervir num debate em curso e que divide a sociedade portuguesa.
Repare-se: não digo que quis dar a saber a sua opinião. Essa ninguém a ignorava. O que quis foi efectivamente intervir, tomar parte activa, numa discussão política em marcha. Quis fazer política, aproveitando as vantagens do lugar.
E fê-lo, como também já aconteceu de outras vezes, de forma enviesada, transmitindo a mensagem sem o incómodo de se explicar e justificar.
Este é o significado iniludível do indulto concedido à enfermeira da Maia que tinha sido condenada pelo poder judicial, por prática sistemática e lucrativa de crimes de aborto, na pena de sete anos e meio de prisão. Pela graça do presidente a pena foi reduzida para metade. Poderá sair da cadeia já em Fevereiro. Provavelmente terá sido por vergonha que não foi decretado que saísse antes do Natal.
Recordo que a condenada, no dizer insuspeito da D. Inês Pedrosa, dedicava-se ao aborto com grande competência e profissionalismo, pelo que até mereceria a gratidão dos interessados. Com um bocadinho de sorte ainda irá parar à lista dos agraciados do Dez de Junho, ou quiçá dos recomendados para a Ordem da Liberdade.
O povo, com o saber de quem já viu muito, comentará apenas que quem tem amigos não morre na prisão.
Por mim, não resisto a recordar a minha suspeita de que as preocupações dos abortistas ao defenderem a legalização dessas práticas não vão só para as desgraçadas apanhadas na engrenagem – estendem-se também e com especial atenção aos empresários do ramo. Ora aí está: o senhor Presidente marcha em socorro da iniciativa privada maiata.
Fico sem saber se será ainda o impulso originário da velha esquerda de onde vem ou se será já alguma aproximação à direita nova agora em voga na praça.

sexta-feira, dezembro 26, 2003

Ainda a sinistralidade rodoviária

Por estes dias festivos, como sempre acontece, aumentam em número e dimensão os acidentes nas estradas.
Ocorreu-me por isso deixar aqui mais algumas reflexões sobre o problema (na sequência dos estímulos e apelos da campanha Paz na Estrada).
Sobretudo sobre um ponto que me parece crucial, e que se me afigura merecer análise atenta. Esse ponto traduz-se, em síntese, na incapacidade total para a autocrítica que se constata em qualquer estudo ou em qualquer observação empírica sobre os nossos condutores.
Ao longo de muitos anos de trabalho que me puseram em contacto directo com inúmeras tragédias rodoviárias ainda nunca encontrei nenhum culpado. Por mais grosseira que seja a negligência ou a temeridade, o máximo que um condutor concede é que teve um azar tremendo. Culpa não; isso ou são os outros que a têm toda, ou foi o estado da estrada, ou a chuva desse dia, ou o Sol que estava de frente, ou os buracos, ou as lombas, ou as curvas, ou as rectas.... Tudo é admissível no sentir de um condutor português; menos a sua própria responsabilização.
No processo criminal em que está em causa a morte de alguém surge quase invariável a tendência para explicar que a culpa foi do morto. Evidentemente que este não pode responder com idêntica tese sobre o vivo - mas se pudesse quase certamente o faria de igual modo.
Com esta mentalidade absolutamente generalizada como é possível qualquer optimismo? Bem podem uns bater-se por um sistema "informativo-formativo", em cujas virtudes acreditam; bem podem outros batalhar pela eliminação dos factores de sinistralidade que ao Estado e aos organismos públicos compete eliminar; bem podem outros reclamar maior vigilância policial e severidade repressiva; por mim não creio que seja possível qualquer melhoria que se veja, mesmo que sejam utilizadas todas e cada uma dessa vias, enquanto não mudar esta mentalidade que torna os condutores portugueses insensíveis à culpa.
Para mais, evidência que surge destacada em qualquer estudo é que não há acidente grave em que não se encontre na sua génese uma conduta humana - operando sejam quais forem as condições da via, o estado do tempo, ou os erros alheios.
Como se muda o factor que aponto? Francamente não sei. Mas suspeito que não seja simplesmente com educação ou informação ou medidas no âmbito estritamente rodoviário. Educação sim, acredito. Mas educação num sentido muito mais geral, e radical.

TUDO É PÓ

Abordando o problema da matéria sob o ponto de vista do Uno e do Múltiplo, que para William James, acompanhado de Paul Grenet, é um dos testes cruciais do pensamento filosófico, chegaremos à conclusão de que o materialismo fica embaraçado, não diante da hipótese de Deus e de anjos, mas justamente diante da mobilidade do ser que, nos dizeres dessa filosofia, tem a hegemonia do Universo. É o próprio ens mobile que deixa o materialista tonto e que o obriga logicamente a seguir o caminho do mecanicismo, que nega a mudança intrínseca e profunda, concedendo apenas a mobilidade extrínseca, enquanto, no lado extremo do problema o espiritualista Bergson, que libertou Maritain e Raissa da opressão do empirismo, afirma que a mudança completa e profunda é a principal e até a única realidade.
O materialista coerente, como já vimos em conversas anteriores, é obrigado a pensar num elemento fundamental que produziria todas as formas do Universo pela multiplicidade e pela variedade das posições dos grãos de matéria, e assim explicará as mudanças extrínsecas pela variação de arranjo das mesmas partículas, resolvendo destarte o antigo paradoxo do devenir, pelo qual tudo muda ou pelo qual da mesma coisa se diz que não mudou e no mesmo momento se diz que mudou. Quando um dia apareceu no limiar da minha porta um cidadão barbado, meio calvo, que no decorrer da conversa revelou-se adepto do marxismo e que, após a primeira hesitação, identifiquei como o menino deixado trinta anos atrás num pátio de colégio, o meu primeiro pensamento foi este: Como o Inácio mudou! Mas o primeiro elemento da proposição diz que Inácio é Inácio e continua a ser Inácio; mesmo porque se não houvesse identidade do sujeito que mudou eu não poderia dizer que mudara. O caso seria de substituição e não de modificação.
Qualquer estudante de Filosofia sabe que foi esse o grande problema que Aristóteles resolveu com a famosa fórmula da composição de todos os seres criados em potência e acto; e não ignora também que essa composição de todos os seres, para ter sentido, deve estar pendurada no Ser sem composição e sem vicissitudes, que os filósofos chamam de Acto Puro e os crentes chamam de Deus. Assim, na linha filosófica aristotélico-tomista a potência exprime a pobreza, a indeterminação, um ser que ainda não é o que será ou pode ser, uma espécie de nada relativo, enquanto o acto exprime a riqueza e a plenitude do ser. Será, portanto, na direção oposta às puras potencialidades da matéria que encontraremos, segundo aquela escola de pensamento, o Ser pleno explicador e garantidor de todos os seres.
O Materialista segue o trajecto oposto e vai buscar na própria matéria a imutabilidade e a simplicidade fundamentais que devem dar a razão de ser de cada coisa e de suas transmutações. E o materialista mecanicista, que é o mais coerente e sincero dos materialistas, em face do problema das mudanças, explicará todas as transformações do universo pelo movimento das partículas que o compõe e pelas posições que tomam em determinado instante. Mas para tal pensamento ter consistência terá de se deter diante de tais elementos fundamentais ou de tais átomos, que serão átomos, indivisíveis e inquebrantáveis, e sem nenhuma composição. Digo que terá de se deter por achar indispensáveis esses grãos de matéria pura, explicadora por suas potencialidades de todas as formas observadas e garantidora de todos os seres pela imutabilidade, pela eternidade, pela infinita dureza e indestrutibilidade dos grãos. Será preciso dizer ao leitor que esse atomismo, o dos antigos e dos modernos materialistas, nada tem com a Física corpuscular, onde os corpúsculos, na medida em que são alguma realidade corpórea, continuam a ter matéria e forma como qualquer ser da escala humana? A rigor, e filosoficamente, opõe-se o átomo etimológico e filosófico ao átomo composto e explosivo que assusta o mundo de hoje. Mas não deixa de ser estranho o destino do pensamento que chega a ver no mesmo elemento fundamental a pura potencialidade e ao mesmo tempo o ato puro. Sim, esses grãos indecomponíveis e imutáveis que são o ser potencial de todo o universo seriam, para si mesmos, na sua própria existência inevitável, indiscutível, o ser em acto puro.
Essas considerações um tanto áridas nos levam à conclusão já anunciada em outra conversa. O materialismo, sobretudo o materialismo mecanicista, parecendo ser uma visão mais fácil, uma aproximação mais tranquila de todas as coisas, é na verdade uma desordenada extravagância que vai encontrar um deus uno e infinitamente múltiplo nos átomos. Ao contrário do que geralmente se pensa — desde que se ultrapasse a linha do grosso bom-senso destorcido, que mais deveríamos chamar mau-senso — cabe o ónus da prova aos que negam a espiritualidade de Deus. As provas positivas, arduamente elaboradas pelo pensamento filosófico, são títulos de nossa nobreza e mais servem para provar a largueza da alma que conhece do que a grandeza do objecto conhecido, porque esse objecto — alma espiritual, anjo, Deus — já era conhecido, em termos de profundas intuições ou de fé, antes de terem a existência demonstrada. Têm também para nós as demonstrações filosóficas, ou valor próprio de claridade intelectual que confirma as intuições crepusculares. Seja porém como for, se o problema se coloca em termos polémicos é indiscutível que o ónus da prova cabe aos materialistas. E se não possuíssemos o compêndio de disparates já publicados pela intemperança intelectual de tais pensadores, poderíamos imaginar a estranha aventura do espírito que parte para a cruzada que consiste na sua própria negação. Convém lembrar aqui o grande paradoxo histórico: foi na corrente cientificista e racionalista derivada de Descartes que tomou corpo a doutrina que nega a espiritualidade da alma humana e a filosofia que reduz a pó o filósofo em plena actividade de filosofante: tudo são partículas que se movem ou mudam de posição ou de velocidade. Tudo é pó.
* * *
Esta conclusão aparentemente coincide com aquela que a Igreja faz na Quaresma, para lembrar ao homem que é pó e ao pó volverá. Na verdade, porém, o Verbo de Deus só nos lembra nossa miséria para avivar em nós a humildade diante do Senhorio de Deus, e a gloriosa convicção que somos muitíssimo mais do que o pó de nossa carne.

Gustavo Corção

A Estrela

Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Porque da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Porque tão alta e luzidia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do dia.


Manuel Bandeira

quinta-feira, dezembro 25, 2003

Canto de Natal

O nosso menino
Nasceu em Belém.
Nasceu tão-somente
Para querer bem.

Nasceu sobre as palhas
O nosso menino.
Mas a mãe sabia
Que ele era divino.

Vem para sofrer
A morte na cruz,
O nosso menino,
Seu nome é Jesus.

Por nós ele aceita
O humano destino:
Louvemos a glória
De Jesus menino.


Manuel Bandeira

NATAL À BEIRA-RIO

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?


David Mourão-Ferreira

HISTÓRIA ANTIGA

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.


Miguel Torga

Silêncio

Foi só o hábito, suponho, que me trouxe hoje aqui.
Por sobre a cidade paira um manto envolvente de silêncio e mansidão.
Há uns raríssimos passantes, que passam como quem se desculpa, e falam-se sem se deter, quase só por vénias delicadas, cumprimentando-se com uns sussurros maquinais.
Apenas uns automóveis isolados circulam na avenida, de vez em quando, com ar de quem vai para casa à pressa, também eles em silêncio respeitoso.
Nada tenho para dizer. E também não queria rasgar o silêncio.

quarta-feira, dezembro 24, 2003

Amália

Como curiosidade certamente desconhecida de quase todos, publico hoje e aqui uma segunda carta (a outra já ficou lá para trás) de Amália Rodrigues para o amigo Vitorino Nemésio, escrita no seu versejar ingénuo. Especialmente para os admiradores de Amália.

Carta a Vitorino Nemésio

Talvez que o anjo esquecido,
O anjo da poesia,
Se tenha de mim perdido
Sem reparar que o fazia...
Por isso me faltam asas
E me sobejam as penas
De um desejo inalcançado:
Que eu gostava de voar
Até ao anjo perdido
O anjo de mim esquecido,
Que por mim é tão lembrado.
Ai se eu tivesse voado
Aonde queria voar
Não estava agora a rimar
Versos de asas cortadas.
Voava junto de si
Assim fico aonde me vê
Mesmo pregadinha ao chão
Com asas de papelão
E sem entender porquê.
Pois a uns faltam-lhe asas
Mas por ter asas cortadas
Sofrem uns e outros não?
Eu tenho sofrido muito
Nos meus voos ensaiados
Que ao querer sair do chão
Ficam-me os pés agarrados,
...E por falar dos pés
Com versos de pés quebrados
Perdoe lá quem os fez
Pelo mal dos meus pecados
Só os fiz por timidez
Que tenho em me dirigir
A quem tem por lucidez
Razão para distinguir
O bom e o mau Português.
Assim à minha maneira
Aqui venho responder
Desta forma tão ligeira
Que a sério não pode ser!


Amália Rodrigues

SOBRE O “FASCISMO”: COMPREENDER A HISTÓRIA

O historiador que recusa ao fenómeno fascista um carácter revolucionário não poderia compreender, assim, nem a novidade do fascismo relativamente aos regimes autoritários e conservadores clássicos e às revoltas do passado, ocasionais e sem verdadeira saída institucional, nem a sua substancial diferença em relação às outras revoluções contemporâneas, a revolução comunista, ilusoriamente política e social, e a revolução técnica do neocapitalismo, falsamente democrático".
AUGUSTO DEL NOCE, “L'época della secolarizzione”

Uma certa parte, não tão escassa como isso, da “soi disante” esquerda portuguesa, sempre se contentou em referir sublimes banalidades de cartilha, quando se lhe deparava o problema do “fascismo”, essa hidra obscura que servia para tudo e estava veladamente omnipresente em qualquer desgraça das hostes “democráticas”.
Com a euforia embriagada dos primeiros momentos do 25 de Abril, ganharam grande sucesso as pseudo-explicações do mundo fascista com base em todo um sistema folclórico, que não hesitava em alinhar a PIDE com Mussolini, em ver no CDS um epifenómeno nazi, e não cessava de contar mortos, estropiados, feridos e gaseados, câmaras secretas e ossadas sinistras, chegando até a lembrar gravemente ao dr. Sá Carneiro e aos seus antigos pares da ANP “liberal”, a sua cumplicidade em todo um rol de “crimes contra a Humanidade”. Era a época em que a esquerda festiva dava largas à sua sinceridade intelectual, o tempo alegre em que, parafraseando Bardèche, “cada um tinha o seu fascista”.
Claro que havia aquela “intelligentzia” mais sisuda, a que procurava fugir à vulgaridade e, com a solenidade própria de quem contempla o seu umbigo, avançava teses palavrosas sobre a psiquiatria de massa do fascismo, estudando-o como fenómeno clínico, aberração mental com vestígios esquizofrénicos e sado-masoquistas, caso típico de sublimação de toda a espécie de animalismo, próprio de mentalidades atrasadas e do subdesenvolvimento cultural. Hitler era um “gangster”, um chefe de bucaneiros, um homenzinho perverso, em suma; Salazar, um campónio tacanho e meditabundo, admirado apenas pelos simples e sustentado pela boçalidade policial; Mussolini não passava de um comediante frustrado, admirador da “soap-opera”, “avant la lettre”, um primário sanguíneo “doublé” de demagogo. Não se referia mais ninguém, ou quase, porque se desconhecia tudo o mais: “era paisagem”...
De referir que estas penetrantes análises se faziam acompanhar de bastas alusões culturais, citando-se de uma assentada Brecht, Wilhelm Reich, Marcuse, Lukács e muitos outros “inevitáveis”, como Althusser e Politzer, num “cocktail” vistoso mas sempre confuso, em que se ia desde o defeito (humano) de pronúncia à citação pretensiosa simplista, de preferência colhida em qualquer manual de vulgarização.
As poucas figuras que, na “esquerda” que tínhamos e ainda resta, tentavam romper timidamente a cortina obscurantista que misturava a ignorância e a doce satisfação das “simples verdades”, e punham algumas interrogações pertinentes, ousando perguntar se o Estado de Salazar tinha alguma coisa a ver com o incêndio do Reichstag, esses poucos ou eram marginalizados pelos “mecenas culturais” da época ou caíam também em tentativas de explicação que lembravam logo um “dejá vu”.
Foi preciso a Esquerda oficial e periférica perder terreno e enforcar-se nas suas contradições, para hoje aparecerem mais vozes a interessarem-se pelo problema do “Fascismo”, procurando rever axiomas e teses aparentemente indestrutíveis, reflectindo sobre “o que é que falhou”.
Mas o que pareceu poder mudar permaneceu pouco alterado: numa desprestigiada “Faculdade de Letras” proferiram-se as banalidades do costume, prevaleceram antigas birras e recalcamentos pouco disfarçados sobre qualquer tentativa de estudo científico. Os actores eram os mesmos, as conclusões iguais e as palavras pouco diferentes. Com o filme de Syberberg aconteceu, com raríssimas excepções, coisa semelhante, acrescendo só um pedantismo muito saloio que sempre se associa às pseudo manifestações “vanguardistas” dos sectores da burguesia bem-pensante. Aqui, até os “idiotas úteis” deixaram de o ser, perante a sua histeria descontrolada, que detecta “fáchismo”, em toda a parte, desde “o gabinete do dr. Caligari" até aos romances de Soljenytsin. Há limites...
Mas toda esta agitação pressupõe a existência de uma preocupação: quer a “esquerda” do regime quer as outras áreas “comprometidas”, sentem difusamente que algo poderá vir a acontecer, a nível institucional “mas não só”, como consequência dos sucessivos tropeções do Estado de Abril. E tal realidade nova poderá ter pouco a ver com a actual ordem de coisas, ou seja, não será talvez, apenas, um estádio quantitativamente superior de uma situação “reaccionária” em relação ao 25 de Abril.
Na impreparação teórica e na ambiguidade semântica de grande parte da intelectualidade comprometida com o regime reside a dificuldade em situar e designar certos problemas. Até há pouco, o “fascismo" e as suas variantes terminológicas mais divulgadas, eram tudo o que não fosse uma certa ideia de «esquerda», eram o mundo inimigo, sem distinções. Hoje, num período em que até os mais cegos têm de cair em si, já se fala de “fascismo” para representar, embora num traço primitivo, uma realidade que se pressente diferente “do que está”, diferente mesmo (e sobretudo) dos inimigos indistintos de ontem que, bem ou mal, incarnavam afinal também uma certa ideia do sistema. (Como hoje, com a “filtragem” do tempo, se acabou por compreender).
E se um certo pensamento tradicional, de raiz cristã, sobretudo mais profundo que o habitual Maritain, já consegue reconhecer, com Del Noce, a originalidade de certas formas e movimentos políticos (rigorosamente, como observaria Nolte, “transpolíticos”), fora das análises moralizantes tão vistas nessas áreas, também uma esquerda mais adulta, se bem que essencialmente pouco menos dogmática que as suas variantes “doenças infantis”, acaba por admitir novos campos de enquadramento do fenómeno “fascismo”, fora da demasiado esquemática interpretação do “exército branco da burguesia” ou da ambígua referência à “psicose colectiva”, à “demência satânica” (meios termos entre um moralismo profano indisfarçado e um cientismo muito débil, irremediavelmente reduccionista e indemonstrável).
Sinal desta mudança numa esquerda em busca de respeitabilidade intelectual, está por exemplo nas palavras de Baran e Sweezy, dois marxistas (como eles próprios se gostam de situar), bem longe das fábulas de um certo antifascismo roncante e demagógico, ainda dominante entre nós:
Em geral, porém, as oligarquias financeiras preferem os Governos democráticos aos autoritários. A estabilidade do sistema é consolidada por ratificações periódicas da dominação oligárquica - este, e não qualquer outro, é o significado normal das eleições parlamentares e presidenciais democráticas -, que poupam à oligarquia certos riscos muito reais de ditadura pessoal ou militar.
(...) Com tais métodos... a democracia é capaz de servir os interesses da oligarquia muito mais eficaz e duradouramente do que um regime autoritário.
” (“Le Capital Monopoliste”)
Esta mudança relativa verifica-se também em certo pensamento socialista, como em Rosselli e, de outra forma, em Nenni, e em dissidentes do comunismo oficial, de Pierre Fougeyrollas a Gilles Martinet, que em última análise acabam por confirmar as precoces observações de Henri de Man, sobre os movimentos nascentes nos anos 30: surgia algo de radicalmente novo perante os principais sistemas existentes, uma “vingança dos factores extra-económicos sobre os factores económicos" (na expressão do jesuíta Henri Chambre), e no fundo a visão de um novo universo, de uma “Revolução Proibida”.
De facto, decorridos mais de trinta anos sobre Hiroshima, com o Mundo novamente à beira de uma época de sobressaltos nas convicções vigentes, de nada serve já manter os velhos mitos, as fábulas boas para esconder as realidades que, de uma forma ou de outra, vão aparecendo sob vários impulsos.
Uma certa esquerda, mais atenta ou mais desprendida, compreendeu que tinha de reformular tudo para assegurar a continuidade: teria sobretudo de largar os mitos gastos e inúteis, por serem já pouco atraentes e de fraco poder mobilizador. Nisto há também uma intenção “maquiavélica” de perpetuação, pela submissão tempestiva às leis da realidade.
As trevas, o desconhecimento feliz e a miopia política, ficam com os submundos que, no presente, perdem já a batalha cultural do futuro.
Mas reconheça-se que muita confusão sobre o “fascismo” se repercute também na chamada “direita”, que procura libertar-se de fantasmas de um passado que nem sequer conhece com rigor, confundindo a História com os mitos temporais fabricados pela escolástica política. A “direita” do sistema, plutocrática, parlamentar, neocapitalista, mais ou menos letrada, procura exorcizar a ideia “fascista”, os traumas que esta lhe provoca, não se preocupando sequer em saber se tem, em termos históricos, algo a ver com a revolução dos “arditi”. A outra “direita”, esclerosada, fora do tempo, metafísicamente reaccionária, saudosista (saudosista do Poder personalizado, das formas, das estruturas) olha para o “fascismo-movimento” como algo de sacrílego, perigoso e completamente estranho ao seu velho mundo (que se esforça por recuperar sem saber que já não existe).
Há ainda os que, por cegueira, doentio romantismo e incapacidade de enquadramento histórico, não se apercebem que, a surgir qualquer realidade diferente e contestatária dos actuais sistemas de organização, ela nunca poderá adquirir um morfismo passadista. Porque é, por definição, nova e de concepção humana, não podendo pois comandar a história, e por uma intervenção “deus ex machina”, fazê-la retrogredir.
As revoluções são-no, precisamente porque sabem cortar com o passado, em nome de uma nova ordem: podem respeitar a tradição, mas isso só significa renovação e caminho, como observava Ortega. A reprodução mórbida do passado pode ser simples “folclore”, alarido reaccionário, atitude de uma casta frágil e irrealista. Não é, de certeza, a verdadeira revolução.
Esta a contradição em que podem cair os “históricos” de todos os quadrantes, “incondicionais” e apressados: pensando trazer um sopro novo de vida, estão já, sem o saberem, na morada dos mortos, mimando o Nada.

NUNO ROGEIRO

terça-feira, dezembro 23, 2003

À Voz Própria

Procuro-te,
e na precipitação de buscar-te
quantas vezes te supus na voz alheia!...

Quero-te,
sem a cortina de nuvens,
sejas abismo, ou superfície líquida, ou pássaro,
ou folha solta sem valor no Outono.

Soa
tal como sejas
- única admissível
como eu sou.


FERNANDO GUEDES

Natal

Nasceu!
Numa garagem abandonada, coberta de chapa de zinco,
E num caixote velho de latas de óleo,
Entre desperdícios sujos e usados.

Nossa Senhora e S. José tinham vindo pela estrada
Os pés no asfalto negro, onde circulavam carros de luxo:
Pedir boleia, pediram, mas ninguém os viu ou quis ver,
Ou escutar o gesto...
Iam todos apressados para a ceia da noite,
Desbragada como um conta-quilómetros

E cheia de neblina e de promessas.
Nasceu!
Num caixote velho de latas de óleo,
Entre desperdícios sujos e usados.

O clarão dos holofotes chamou lá os vadios de todas as noites:
Os quarda-noturnos, os polícias de giro,
Os que não têm cama para dormir,
Os poetas e os fugidos à lei — todos! —
Todos os que naquela e nas outras noites
Não têm para onde ir, nem têm onde comer.
Foi, porém, o clarão dos holofotes gastos que os levou lá:
E viram, sobre os desperdícios sujos, num caixote velho,
O Redentor do mundo,
Aquecido pelos dez cavalos-vapor de um velho "Ford T"
Que, trabalhando, acordava a vida no arrabalde longínquo.

S. José e Nossa Senhora choravam:

Todos pediam no mundo a ressurreição do Cristo!
E Ele viera, Ele encarnara de novo
Através do ventre puríssimo da Virgem,
Sob a custódia lirial do descendente de David.

Os donos de carros de luxo cortavam o nevoeiro
Comprometidos pelas amantes caras que ficavam para trás;
As camionetas de transporte temeram a polícia das estradas
E os outros todos também não quiseram dar boleia
Ao Filho de Deus.


Amândio César

Os velhos

Antigamente o Natal era o tempo dos avós. Eles dominavam, ao centro de tudo. Unia-se então a cadeia das gerações.
Avós, bisavós, netos, bisnetos, muitos, na celebração da vida que continuamente se renova.
Agora existe apenas uma solicitude suspeita em relação às poucas crianças existentes. Estas reinam, veneradas por todos os rituais do consumismo.
Os avós desapareceram. Foram arrecadados em escusos e distantes lares. Têm direito a uma visita rápida e envergonhada.
Hoje a camada mais frágil e desprotegida da sociedade está aqui: são os velhos.
Pudicamente designados de terceira idade, como se houvesse outra idade a seguir-se a essa, os velhos foram afastados do convívio dos outros. Nas casas não cabem. Os filhos não têm tempo. Os netos não chegam a conhecê-los.
Aparecem na televisão os que podem fingir a juventude: o octogenário que anda de bicicleta, os septuagenários que casaram na capela do asilo, a classe de ginástica onde a média de idades é setenta e dois anos, o grupo de teatro da terceira idade.
Não os outros. Os que são todos os dias abandonados nos hospitais, porque ninguém os quer. Os que jazem encaixotados em recolhimentos improvisados, à espera da morte. Os que passam fome. Os que são vítimas de todos os maus tratos, físicos e psicológicos. E não se queixam, por que não podem, e ninguém o fará por eles.
Aqueles, e são tantos, a quem até as poucas economias e reformas são desviadas para sustentar o padrão de consumo dos filhos.
Nas sociedades contemporâneas os velhos formam hoje um enorme continente invisível, olhado com embaraço e vergonha – e medo, porque todos se antevêem ali, num mundo virado para a religião da juventude.
Não há declarações de direitos dos velhos, nem associações de protecção ao idoso, nem se fazem campanhas de alerta e prevenção a favor deles. As crianças, as que nasceram, essas sim: para elas se concentram todas as atenções, com sinceridade ou hipocrisia. Deve ser do medo.

segunda-feira, dezembro 22, 2003

O Partido Liberal

Continuando a pescar no famoso relatório oficial da comissão de investigação aos acontecimentos de 28 de Setembro, copio hoje as referências feitas ao único partido que até agora usou em Portugal o nome de Liberal. Durou uns escassos meses, em 1974, porque o MFA tratou logo de o “desmantelar” (é a linguagem oficial; significa que todas as suas instalações, bem como as moradas conhecidas dos seus responsáveis, foram ocupadas e pilhadas em operação militar organizada, e os ditos responsáveis, reais ou presumidos, que não se pisgaram a tempo para a estranja, foram direitinhos para Caxias, conhecer as vistas do Tejo).
Agora os riscos da designação são notoriamente menores, felizmente, embora ainda haja quem se queixe.
Vejamos então os horrendos crimes que puderam ser assacados à referida “associação de malfeitores” (também é linguagem da época; foi figura jurídica que bastou para levar para a cadeia centenas e centenas de portugueses, a generalidade deles sem perceberem porquê).

“13. Partido Liberal
Nascido de uma cisão verificada na Convergência Monárquica, cuja ala mais reaccionária passou a agrupar, o Partido Liberal teve uma existência apagada até Agosto.
Funcionando nas instalações da SINASE - Sociedade de Investigação Aplicada ao Serviço da Empresa, S.A.R.L. - a qual se dedica à prestação de serviços de vária ordem a empresas nacionais e estrangeiras e cuja administração era presidida por António Ávila, que vai aparecer igualmente no Directório e na Comissão Executiva do partido, este agrupamento possuía escasso número de filiados.
Nos finais do mês de Julho, num comício que o Partido Liberal levou a efeito no Teatro São Luís, em Lisboa, fez a sua aparição política pública José Harry de Almeida Araújo – espécie de arquitecto muito rodado nos circuitos sociais da grande burguesia nacional e internacional, o qual, levando uma vida faustosa, suportada com avultados meios, a garantia através de múltiplos expedientes, nomeadamente sucessivos casamentos.
Tendo vivido mais de vinte anos em países estrangeiros, Almeida Araújo estreara-se, por essa altura, nas páginas da imprensa portuguesa, publicando no "Expresso" (27/7/74) um texto virulentamente anticomunista intitulado "Não somos todos camaradas somos todos portugueses". Foi ele também quem iniciou a campanha de cartazes com dizeres extremamente reaccionários, mandando imprimir grande quantidade a expensas suas, denunciados oportunamente na imprensa diária, designadamente no "Diário de Notícias".
Não se conhece qualquer facto que revele anterior inclinação de Almeida Araújo para o activismo político; mas na sequência - pelo menos lógica - da sua intervenção no citado comício, surge no Partido Liberal, acompanhado por António Luís Marques de Figueiredo, Tenente-Coronel da Força Aérea na situação de reserva, propondo-se tomar conta da respectiva direcção.
Rapidamente integrados na Comissão Executiva do partido, onde é atribuída formalmente a Almeida Araújo a propaganda e a imprensa e ao Tenente-Coronel Figueiredo a gestão financeira, estes dois elementos vêm emprestar ao agrupamento toda uma dinâmica. Despesas consideráveis, na inexistência de qualquer montante significativo obtido pela quotização dos filiados, passam a ser satisfeitas por "apports" aparentemente pessoais do último. Homem de recursos vastos, o Tenente-Coronel Figueiredo, para além das posições que deteve ou detém noutras empresas, era administrador da "NAVEX" e da "TRÁFEGO E ESTIVA", de que é proprietário em sociedade com o alemão Scheder.
Partido híbrido, sem uma definição clara das suas linhas programáticas, embora norteado por uma orientação fascizante e profundamente antimarxista, pretendendo organizar-se num esquema de empresa de serviços adaptada à legislação referida a partidos para facilitar a adesão de “capacidades alérgicas à política”, contando com um Directório Nacional composto por indivíduos relativamente pouco conhecidos, em que se salientavam, além dos já mencionados, Gastão Caraça da Cunha Ferreira, psicólogo-pedagogo, José Cabral, médico, Luís Alberto Vinhas Frade, estudante universitário, e Osvaldo Eurico Aguiar, advogado, o Partido Liberal viria a ser o centro e o grande coordenador de toda a manobra do “28 de Setembro” nas suas implicações civis.
O Partido Liberal mantinha ainda discretas relações com Duarte Pio de Bragança. Este, numa viagem que fez pela Ásia, África e América em Maio, Junho e Julho de 1974, ao mesmo tempo que ia descobrindo negócios para a SINASE, com a qual estava relacionado, cuidava da promoção externa do Partido Liberal e estabelecia contactos pessoais de natureza mais reservada. Assim, em Cabinda avistou-se com Alexandre Tati e com Tiago Nzita, vice-presidente da FLEC, que convenceu a virem a Lisboa, encarregando Fernando Pacheco de Amorim, dirigente do Partido do Progresso, de lhes marcar uma entrevista com o General Spínola, mas sugerindo igualmente que fosse o Partido Liberal a apresentar tais indivíduos como seus hóspedes”.


E não há mais nada: foram estes os delitos!


GÉNESE DA POESIA

Nascem os versos
da emoção consciente
que transforma em cor
o gesto desprendido.

- A existência de mais mundo
tem distância:
o Poeta só sente quando vive.

Depois,
é construção:
a subida lenta da forma,
o anjo revestido
da carne que lhe entregam.


FERNANDO GUEDES

FIM DE OUTONO

Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

Tudo seco pelas hortas,
Grandes lágrimas no chão
Nem uma flor pelos montes,
Tudo numa quietação
Soluça numa oração
O triste cantar das fontes.

Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

A terra fechou as portas
Aos beijos do sol ardente,
E agora está na agonia...
Valha à terra agonizante
A Santa Virgem Maria!

Fim de Outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...


Fernanda de Castro

Aborto, vida e sociedade

No aborto estético, que já descrevi, ou no aborto utilitário, que todos conhecemos, explicado em geral por contrariedades de momento (a vida, a carreira, a casa, o curso, a inoportunidade), deparamos com motivações de conveniência, situadas claramente no contexto de uma sociedade hedonista, onde nada mais conta ao lado da satisfação egoísta dos impulsos e objectivos individuais. Mas não há teorização, nem objectivos de natureza política ou social.
No aborto ideológico, que também mencionei, o que se encontra é evidentemente uma posição sobre a vida e a sociedade, consciente ou ainda difusa. Os seus apaniguados defendem entusiasmados o aborto como um direito próprio dos seres humanos do sexo feminino, assumindo que deixa de haver qualquer protecção jurídica para o humano ainda não nascido, ou seja que o feto não é um bem jurídico, nem o poderá ser a vida, por si só.
Daqui decorre com lógica que os defensores dessa posição são também defensores da eutanásia: a vida sem o que chamam de dignidade não vale a pena ser vivida. E dando um passo mais assumem-se logicamente como defensores de políticas eugenistas; ao menos que se trate de esterilizar os seres humanos deficientes (aqueles que nasceram escapando à filtragem do diagnóstico pré-natal), de modo a que não possam transmitir as suas malformações e taras. Do mesmo passo, também será uma vantagem para a sociedade a esterilização de todos aqueles que, embora nascidos de acordo com todos os padrões de normalidade predefinidos, por qualquer azar da vida ameacem transmitir doenças que irão propagar-se nas futuras gerações.
E sem grande esforço se chegará à demonstração da desnecessidade de sobrecarregar a sociedade com o fardo terrível dos doentes terminais, dos dependentes, dos portadores de doenças incuráveis.
O mais difícil será definir com rigor o que será a medida padrão para a vida com dignidade e merecedora de tutela jurídica, a tal que constituirá ela sim um bem jurídico de primeira ordem.
Mas o caminho aponta para o “brave new world”. O planeamento para a perfeição.
Curiosamente, muitos daqueles que publicamente pugnam por estas correntes de pensamento tornam-se de súbito defensores da vida humana inviolável, e da ausência de qualquer direito da sociedade para dispor dela, quando se entra na discussão da pena de morte. É a única situação em que a vida humana, em si e por si, lhes surge dotada de tal valor.
Mas nessa perspectiva não se compreende porque motivo a sociedade que tem todo o direito de regulamentar as condições em que os seus membros inaptos para a vida social por razões físicas, em que nenhuma culpa lhes pertence, deixam de ter as suas vidas reconhecidas como um valor, não poderá regular também os casos em que por demonstradas razões comportamentais as vidas de outros dos seus membros passam a constituir um valor negativo.

O aborto estético

Anos depois de ter conhecido o aborto ideológico, travei conhecimento com o aborto estético. Este não tinha a face hedionda da megera intelectual, mas o rosto bonito de uma jovem (donzela não digo) nascida das melhores famílias e frequentando distinta universidade privada.
Falava-se em grupo, por entre risadas despreocupadas, dos problemas mais prementes, fossem os da moda fossem os da última ida à discoteca mais badalada. E intrometeu-se não sei porquê esse tema do aborto. A elegante e promissora menina de sociedade, das que aparecem nas capas das revistas, fez um ar sinceramente alarmado e exclamou no tom que imaginam: "eu, mãe!!! Credo!!! E a minha cintura?!!!!”
As demais circunstantes, meninas todas saídas da mesma forma, riram compreensivas e concordantes.
Fiquei a meditar no assunto. Não, o problema da incriminação do aborto nada tem a ver com as mulheres pobres e desgraçadas que em desespero o praticam. Essas só são chamadas à conversa em alturas de campanha. E nunca por elas próprias o desejarem. Aliás, elas não estão confundidas sobre os valores, e não se orgulham do feito, nem o encaram como uma causa a defender.
O problema do aborto prende-se com aqueles para quem por uma razão ou por outra o feto humano tem menos valor do que um ovo de perdiz, um ninho de andorinha, um rebento de azevinho, ou um touro de Barrancos – entidades defendidas com muito maior comoção e vigor.
A natureza criminosa do aborto tem que ser consignada na lei penal. Não porque isso constitua obstáculo decisivo à categoria de pessoas acima referida, que provavelmente sempre o poderão fazer, mais ou menos às ocultas, aqui ou no estrangeiro, sem que se torne efectiva a punição (judicial).
Mas pelo menos para que esse comportamento nunca possa ser apresentado como lícito, e desse modo banalizado e legitimado – cumprindo-se ainda assim uma função essencial própria da lei penal.

domingo, dezembro 21, 2003

O aborto ideológico

Lembro-me como se fosse hoje. Foi ainda em 1974 ou nos primeiros meses de 1975, andava eu no liceu, quando surgiu de rompante a polémica sobre o aborto.
A ponta da lança da campanha a favor da legalização era então constituída pelos movimentos de emancipação feminina, aparecendo só atrás deles os partidos da esquerda clássica, desde o cor-de-rosa ao vermelhão mais radical. Os chamados grupos de libertação da mulher e a respectiva ideologia viveram então uns efémeros meses de glória em Portugal, a reproduzir em moda passageira o que já tinham perdido por outros lados. Ainda deu para queimar soutiens, em cerimónia pública no Parque Eduardo VII.
Os argumentos matraqueados nessa altura em regime de monopólio na comunicação social eram em tudo iguais aos de agora, surgindo porém com frequência em tom muito mais extremizado – como tudo o resto.
Foi então que uma vez ao serão, estando eu à mesa e calhando olhar para televisão, ouvi e vi uma senhora, escritora consagrada no seu meio, militante empenhada dessas causas, argumentar ardorosa que a mulher só seria verdadeiramente livre quando fosse inteiramente senhora do seu próprio corpo, e nomeadamente quando o aborto pudesse ser visto e encarado com tanta naturalidade como a decisão de extrair uma borbulha.
Senti um calafrio, mirando a carantonha alucinada da megera, a cabeleira desgrenhada a encimar o quadrado dos óculos. Não sei se lhe chame terror, pelo menos o pânico de que aquela visão se concretizasse aterrou-me até ao mais fundo do ser.
Naquela face sinistra formou-se em definitivo a minha convicção militante. A questão do aborto é uma guerra ideológica, um combate decisivo pela civilização e pela vida.
Mais recentemente, quando do debate que precedeu o referendo, voltei a deparar-me com o aborto ideológico. Em dada discussão esgrimiam-se razões, e um muito conhecido escultor eborense, encolhendo os ombros, sai-se gaguejando com a sinceridade própria da senilidade e da estupidez, embaraçando os correligionários presentes: “a vida ... a defesa da vida ... mas o que é a vida... tudo são formas de vida ... olhe, uma alface, por exemplo, é uma forma de vida ... e todos comemos salada... "
Escusado será comentar que no caso da alface ser proclamada espécie em perigo por algum grupelho iluminado logo o generoso artista se desdobraria em iniciativas de protecção à alface, e sem dúvida exigiria a criminalização de quem colhesse alfaces.
Não, não há lugar para ilusões ou para equívocos. Trata-se realmente de uma pulsão de morte, que atinge o âmago mais fundo das sociedades humanas como as entendemos e conhecemos.

A guerra civil nas estradas

Trinta mil mortos! Trinta mil mortos!
Arrepia pensar no significado concreto da hecatombe. Em dez anos, segundo os números oficiais, morreram trinta mil pessoas em Portugal em consequência de acidentes rodoviários.
Não imagino quantos serão os feridos, os estropiados, os enlutados, os que ficaram para sempre marcados com os sinais da tragédia. É de todo impossível calcular os custos sociais e humanos de um cataclismo desta dimensão, que todos os dias se prolonga em novas réplicas. Para os que gostam de avaliar os custos económicos também a tarefa me parece desmedida.
É um novo terramoto de 1755, uma nova guerra civil, a destruir todos os dias mais uns tantos lares portugueses.
Não se compreende como é possível manter a indiferença ou a distracção perante o fenómeno. Mas persistem. E nem se vislumbram motivos de esperança. A cada inquérito aos nossos condutores o resultado surge invariável, obedecendo a um padrão coerente: todos acham que a condução que se faz em Portugal é temerária e imprudente, mas a dos outros – a do próprio interrogado é exemplarmente cuidadosa.
Por mim, não tenho receita rápida. Mas sinto que tudo o que seja feito para mobilizar a comunidade quanto a este problema será sempre pouco.
Apoio inteiramente, e sempre, seja quem for que tenha o mérito de partir para esse combate. Como a ACAM.
Embora a meu ver seja perigoso colocar o acento tónico na responsabilização do Estado pela tragédia rodoviária - isso cai que nem ginjas na tendência sempre presente para a desresponsabilização individual. Perante o Estado devemos ser exigentes - sim senhor; mas que isso nunca sirva para distrair as atenções da responsabilidade pessoal e intransferível que a cada cidadão, sobretudo enquanto condutor, cabe na génese e na solução do problema.

Leitura

Verificando em marcha atrás o que fui publicando no blogue fico com a impressão que isto está ficando a parecer uma espécie de "mémoires d'outre-tombe."

Fado Alentejano

Alentejo, ai solidão,
Solidão, ai Alentejo,
Convento do céu aberto!
Nos teus claustros me fiz monge.
Perdeu-se-me a terra ao longe,
Chegou-se-me o céu mais perto.

José Régio

sábado, dezembro 20, 2003

Orlando Vitorino

Ao aludir há umas horas atrás a Orlando Vitorino, a propósito dos “Princípios de Filosofia do Direito” de Hegel, que ele traduziu e prefaciou, estava longe de saber que o Orlando faleceu no Domingo passado, em Lisboa. As notícias chegam tarde ao meu casulo.
Descobri há instantes, ao navegar pela rede. E não sei como transmitir o complexo conjunto de sensações e pensamentos que me assaltam.
Creio que domina uma impressão de amargura e perda, e já também de nostalgia saudosa. O Orlando era um dos mais vivos e originais pensadores do seu tempo, uma personalidade vigorosa, rica e multifacetada, um homem de cultura e saber, um português dificilmente substituível.
A última vez que o encontrei pessoalmente foi na “Mimosa do Camões”, num daqueles jantares que o incansável António Quadros promovia periodicamente em prol do convívio e da filosofia. O António pairava sobre tudo, certificando-se discretamente se todos se sentiam bem, no seu jeito afável e afectuoso. Os jantantes iam-se embrenhando mais ou menos acaloradamente nas discussões cruzadas que surgiam.
Por ter ficado perto dele fiquei longo tempo a conversar com o Orlando, exercício que uma vez começado ameaçava não acabar mais. Era um conversador fascinante, ele só uma tertúlia inteira. Lembro-me do seu sobressalto de surpresa e de agrado por eu, tão jovenzinho, conhecer o "Alentejo não tem sombra”, talvez o mais belo filme realizado sobre o Alentejo. “Mas onde é que você viu isso?!!”
Homem de cinema, aproveitou para queixar-se com mágoa do que acontecera a outro filme que se tinha empenhado em realizar – “Tonga Tabu” – e que nunca chegara à exibição pública, no seu entender por boicotes vários imputáveis aos controleiros da cultura.
Homem de teatro, expunha-me a sua tese confidencial de que o grau de civilização de um povo pode avaliar-se pelo nível do seu teatro.
Homem do pensamento, entusiasmava-se a falar das suas causas de sempre, a Filosofia Portuguesa, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro ...
Eu tinha começado a ler tudo o que apanhava do Orlando Vitorino ainda muito mais novo, na altura da publicação da “Escola Formal”, a revistinha com o nome emprestado a um livro de Álvaro Ribeiro. Depois, bichinho de alfarrabista que eu era então, fui reunindo as obras dele, desde que surgira em letra de forma, ainda estudante de Letras, com a “Fenomenologia do Mal”.
Aí por 1980 tinha-o acompanhado também na memorável campanha para lançamento da sua edição e tradução de “O Caminho Para a Servidão” de Friedrich Von Hayek, que incluíra trazer a Lisboa o velho filósofo, com sessão solene no Grémio Literário (sobre isso já aqui falei, em postal que ficou esquecido lá nos primórdios do blogue).
Tinha acompanhado também o entusiasmo e a energia da edição da “Refutação da Filosofia Triunfante”, o mais emblemático e conhecido dos seus livros.
Tinha acompanhado depois a epopeia divertida da sua candidatura à Presidência da República, em nome da Filosofia e da Pátria.
Durante muito tempo tinha-o encontrado com regularidade semanal nas conferências e debates que o António Quadros, sempre ele, organizava no IADE. Chegávamos ao Largo Barão de Quintela, onde a estátua de Eça de Queiroz nos apontava com a mão estendida a entrada do palacete onde as aulas tinham acabado, e subíamos a escadaria até aos altos, onde o anfitrião nos aguardava e deliciado abria as hostilidades, que não raro se prolongavam acirradas até horas impróprias.
Ainda haverá trinta ou quarenta portugueses que percam o sono a discutir filosofia?
O Orlando costumava dizer que calculava que houvesse aí uns quinhentos que liam ...

Horário das missas de rito tradicional latino-gregoriano

Domingos: às 11 horas, no Priorado São Pio X
Estrada de Chelas, 29-31 (junto à Avenida D. Afonso III), em Lisboa
Segunda-Feira a Sábado: às 19 horas, no mesmo local

Neste Domingo 21 de Dezembro: também em Perolivas, às 18.30 horas, na Capela de São José
Rua do Forno, 25, Perolivas, Reguengos de Monsaraz

Direito Internacional

Nos meus tempos de estudante tive que fazer uma disciplina com o nome de Direito Internacional Público. Nessa altura já a minha percepção da realidade jurídica, tal como é normalmente compreendida, rejeitava a aceitação da autenticidade de tal corpo normativo – enquanto Direito, entenda-se. O Direito, dada a sua natureza de sistema normativo assistido de protecção coactiva, só é concebível onde exista essa coercividade. Mas onde a coercividade existente não resulte senão das relações de força entre os diversos sujeitos não estamos perante um fenómeno jurídico. E onde o acatamento da norma não possa resultar senão da livre vinculação dos sujeitos não existe também um sistema jurídico.
O direito remete assim claramente, nas sociedades modernas, para o conceito de soberania.
Esses meus entendimentos nada têm de original, e sendo comuns e parecendo-me alicerçados de modo óbvio pela observação e pelo raciocínio não me fizeram antever os melindres que iriam suscitar.
Mas suscitaram, sob forma de indignação e revolta acesa numa criatura que estava incumbida de me classificar e que acabou por me forçar à repetição do exame respectivo. Tratava-se de membro notório do sector do Ministério dos Negócios Estrangeiros conhecido habitualmente por “internacional cor-de-rosa”, e hoje parecem-me lógicos os seus sentimentos perante o trabalho que lhe apresentei: aquilo era um pouco como cuspir-lhe na sopa.
O tal trabalho, que entretanto perdi pelo meu usual desmazelo, nascera imediatamente da leitura de Hegel, na tradução dos “Grundlinien” saída na Guimarães Editores, acompanhada das palavras sempre sábias de Orlando Vitorino.
O meu espírito desconfiado quanto ao Direito Internacional Público encontrara uma construção lógica na ideia de “Direito Estadual Externo”, exposta por Hegel: cada Estado tem a nível do seu Direito Público uma regulamentação das suas relações com o exterior, emanada das suas próprias fontes e vinculando os seus órgãos e agentes, e que constitui um ramo do seu ordenamento jurídico – e este é o único ramo do Direito que pode ser denominado de Direito Internacional Público.
A evolução da política internacional nestes últimos anos obrigou-me a reflectir novamente nesta questão da existência de Direito Internacional Público. Por um lado a emergência de uma única potência planetária que passou a assumir de forma expressa que rejeita qualquer vinculação externa, qualquer norma que não seja emanada da sua própria soberania, definida em função dos seus interesses próprios, desfez de todo as ilusões habitualmente servidas sobre igualdade dos estados, comunidade internacional, tribunais internacionais, organizações unidas de estados soberanos, etc. etc.
Ou seja, o Direito Internacional a que aludem os tratados não existe e não existiu nunca.
Por outro lado, a situação que parece resultar desta evolução de forças pode, à semelhança do que aconteceu na sua época com o império romano, conduzir à formação de um verdadeiro direito internacional, no sentido de corpo normativo assistido de protecção coactiva que regulamenta as relações dos diversos sujeitos da comunidade internacional.
Será o corpo de normas definido pela única entidade soberana, a qual a ele não se vincula, pelo que terá por destinatários os demais, esses efectivamente sujeitos – pois dado o poder universal do império existirá de facto e pela primeira vez a coercividade necessária para que se possa falar em sistema jurídico.
O Direito Internacional Público existirá então – sob a forma de “jus publicum americanum”.

Crónica judicial

Hoje todos os holofotes estão centrados nas peripécias de um processo em curso. Os títulos procuram puxar lustro aos acontecimentos, falando de coisas extraordinárias.
Por mim, lanço um olhar desinteressado. Para quem tivesse a frieza e a lucidez necessárias, tudo segue como estava escrito nas estrelas.
Como já aqui tinha previsto, a montanha inimaginável e nunca vista vai terminar parindo um mísero ratinho - e uma imensa frustração colectiva.
O aparelho judicial português não está feito para suportar o turbilhão de forças que se desencadeiam quando os poderosos são, por acidente raro, apanhados na rede. Precipita-se uma pressão tão furiosa e formidável que o frágil aparelho abre fendas e acaba por ceder, como um dique assaltado por feroz tempestade.
Em nenhum dos casos que se poderiam dar como exemplo o final foi diferente do que está à vista.
E nem me parece que haja qualquer intenção séria, da parte de quem pode, em fazer com que as coisas possam ser diferentes. Assim como está é que a Justiça serve muito bem. É eficaz para conter a canalha, que nem se sabe defender, mantém a populaça em respeito, e é manifestamente incapaz de constituir ameaça real para quem socialmente conta.
Pobre Bibi, por nascimento e destino manifestamente marcado para o sacrifício expiatório.

Sábado na cidade

Pelas ruas da cidade vai a barafunda nataleira.
A decoração convencional, abundosa em bonecos encarnados da coca-cola e neve fingida. Cenário de plástico colorido.
O ruído de fundo, por sobre os barulhos da multidão em movimento, repete indefinidamente monótonas musicatas em ruins arranjos.
Sigo alheio, por entre os encontrões da gente, eufórica de compras, carregada de embrulhos.
Retribuo maquinalmente uns cumprimentos passantes. E continuo, por entre o cinzento frio da manhã.
Nem o instinto gregário me traz o mais leve contágio.

sexta-feira, dezembro 19, 2003

Asa no Espaço

Asa no espaço, vai, pensamento!
Na noite azul, minha alma flutua!
Quero voar nos braços do vento,
Quero vogar nos braços da Lua!

Vai, minha alma, branco veleiro,
vai sem destino, a bússola tonta...
Por oceanos de nevoeiro
corre o impossível, de ponta a ponta.

Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim,
que a terra é curta, que o mar é pouco,
que tudo é perto, princípio e fim.

Castelos fluídos, jardins de espuma,
ilhas de gelo, névoas, cristais,
palácios de ondas, terras de bruma,
... Asa, mais alto, mais alto, mais!


Fernanda de Castro

Obsessão

Dentro de mim canta, intenso
Um cantar que não é meu:
Cantar que ficou suspenso
Cantar que já se perdeu.

Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido:
Cantar que passa perdido,
Que não é meu estando em mim.

Depois, sonâmbulo, sonho:
Um sonho lento, tristonho,
De nuvens a esfiapar...
E, novamente, no sonho
Passa de novo a cantar...

Sobre um lago onde, em sossego,
As águas olham o céu,
Roça a asa de um morcego...
E ao longe o cantar morreu.

Onde terei eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido...
E este cenário partido
Volta a voltar, repetido,
E o cantar recanta em mim.


Francisco Bugalho

Ainda a Restauração

Embora tarde, impõe-se um registo e uma rectificação.
Lamentou-se justificadamente em diversos blogues a total indiferença do país político e institucional perante a passagem do 1º de Dezembro. Nem os militares se lembraram.
Foi um silêncio total, de sinistros presságios. Apenas associações privadas, no caso a Sociedade Histórica da Independência de Portugal e o Grupo de Amigos de Olivença, quebraram o esquecimento - que, confessemos, pareceu muito bem lembrado e organizado.
Todavia, houve uma irredutível aldeia de irredutíveis portugueses onde não aconteceu como ficou descrito. Em Santo Aleixo da Restauração, no mais profundo Alentejo, a população reuniu-se mais uma vez na Praça da Restauração, junto ao Monumento à Restauração, no centro da localidade, com as autoridades locais à frente, recordou os acontecimentos de há 350 anos, e prestou homenagem aos seus antepassados, e aos sacrifícios e heroísmos de então.
Os discursos recordaram orgulhosamente os feitos que deram o nome à terra, e reiteraram o compromisso histórico e a fidelidade das gentes à sua condição de portugueses.
Aqui se faz justiça à excepção: honra a Santo Aleixo da Restauração!