sexta-feira, outubro 31, 2003

Terra e Povo

Porque me agarro, cada vez mais, à minha identidade cultural alentejana?
Simples. Os reflexos identitários são num povo o equivalente a um sistema imunológico.
Garantes de sobrevivência.
Hoje o localismo aparece-me como alternativa global à globalização.
Quanto mais locais mais universais; e mais longe do impulso geral para o cinzentismo e a indiferenciação próprios das ideologias dominantes.
O enraizamento, ou a queda no homem abstracto e uniforme sonhado por todas as engenharias sociais.
That's the question!

Gente Fina

Como uma desgraça nunca vem só, e para que nada falte ao infeliz Dr. Ferro, a Dra. Fátima Felgueiras vem lembrar que existe e lança vigorosa campanha para as eleições autárquicas em Felgueiras.
Vem tudo no jornal A Voz de Felgueiras, e merece leitura cuidada.
Para além de muito mais, a dado passo diz a senhora:

"É uma vergonha que um Secretário-Geral do maior partido da oposição não hesite, nem por um segundo, e decida afundar o PS – consigo e com o seu melhor amigo – num escândalo que, ao que sabemos, nada tem a ver com actividade política.
(...) É no mínimo muito estranho que o líder de todos os socialistas só meta as mãos no fogo por um amigo indiciado por 15 crimes de violação de menores!"

José António

Neste ano de 2003 completaram-se cem anos sobre o nascimento de José António, a 24 de Abril de 1903; passam sessenta e sete anos sobre o seu fuzilamento, a 20 de Novembro de 1936; e setenta anos sobre o acto de fundação da Falange, a 29 de Outubro de 1933.
Pelo que sei, mesmo em Espanha tais efemérides têm passado e passarão razoavelmente despercebidas. A Espanha actual prefere esquecer.
Em Portugal, onde o impacto e o conhecimento da obra e da personalidade de José António nunca alcançaram mais que núcleos muito limitados de admiradores, apesar da expressão que aqui também teve, in illo tempore, um precário movimento nacional-sindicalista, os aniversários referidos terão por destino passar inteiramente esquecidos.
E todavia, mesmo assim, a figura do mártir de Alicante alimentou também entre nós sonhos e paixões de gerações que no seu discurso e no seu exemplo pensaram encontrar o caminho da verdade política.
Quando eu, imberbe ainda, começava a minha pessoal caminhada pelas andanças da política, José António surgiu como uma revelação. No meu pequeno grupo recebemos todos com entusiasmo quase devoto o livrinho que José Miguel Alarcão Júdice lhe dedicou, editado em 1972, em Coimbra, pelas Edições Cidadela (agora não surge entre a bibliografia do autor), e creio que foi a admiração daí nascida que explica, em parte, a adesão logo dias depois do 25 de Abril ao Movimento Federalista Português (esquisito nome para uma organização onde ninguém era federalista; mas tudo tem a sua explicação).
O Júdice estava lá ...
O MFP surgiu logo no princípio de Maio de 1974, tendo à frente Fernando Pacheco de Amorim e Costa Deitado. Veio a falecer de morte matada em 28 de Setembro de 1974, crismado já então de Partido do Progresso. E os que não foram levados a conhecer a obra prisional do Estado Novo foram então conhecer a Espanha, a salto, que então ainda havia fronteiras, e bem guardadas.
Foram cinco meses de vida; todavia, tão intensos que marcaram para sempre uma geração, como marcaram um país. Muitos dos jovens dos núcleos nacional-revolucionários existentes em Coimbra, no Porto e em Lisboa tinham seguido naturalmente atrás de Miguel Júdice, de José Valle de Figueiredo, de Miguel Seabra, de Manuel Rebanda, de Diogo Miranda Barbosa, de Manuel Sobral Torres, e de outros que lhes davam garantias. E foram apanhados no turbilhão.
Os precavidos, que não vão a foguetes, tinham formado entretanto o MAP, Movimento de Acção Portuguesa, mas esses não eram os jovenzinhos inconscientes que nós éramos – e essa é outra história. Mas lá que não tiveram mais sorte, isso também é verdade.
Como o propósito era evocar José António, deixo aqui um pequeno artigo que Jaime Nogueira Pinto, então também na verdura da mocidade, publicou vai já para trinta e seis anos.

UMA JUVENTUDE

Escrever sobre José António Primo de Rivera é para nós como falar «dum irmão mais velho, que, antes de nascermos, tivesse abandonado a casa paterna», para correr mundo e morrer longe, um desses retratos amarelecidos, cartas e papéis em arca velha, uma história a recontar, um exemplo a seguir... Tudo isso nos legou José António e por tal, três décadas volvidas o achamos na juventude, e na juventude o temos como modelo, como padrão, como símbolo, como caminho...
Folheio o volume das Obras Completas reunidas e prefaciadas por Agustin del Rio Cisneros. Das páginas dos discursos, das notas políticas, das narrativas das batalhas, deste memorial, deste diário duma Alma e dum Movimento vejo recortar-se, imprimir-se, indelével, na imaginação e na manhã dos dias, a figura do Jovem César, um Espírito, um Destino, um Homem. Bardèche, num livrinho que muitos temos à cabeceira, Qu`est-ce que le Fascisme, escreveu: «...O único doutrinador de quem os fascistas do após-guerra admitem as ideias quase sem reservas, não é nem Hitler, nem Mussolini, mas o jovem chefe da Falange que um destino trágico poupou às agruras do poder e aos compromissos da guerra. A escolha deste herói não é puramente sentimental. Ela mostra tudo o que existe de idealismo no mito fascista. E contém mais, um testemunho: os fascistas preferem os seus mártires aos seus ministros. Como toda a gente».
Preferimos os nossos mártires... Creio que é verdade e talvez aí esteja uma das nossas virtudes que são nossas fraquezas.
Preferimos José António a outros mestres tão coerentes, talvez mais ortodoxos, talvez mais lúcidos... Porque para nós ele significa a Coragem, a Fidelidade, a Alegria, a Juventude, o «sentido ascético e militar da Vida», queremos esse Paraíso difícil, implacável, onde se está de pé com os Anjos. Como ele somos jovens e temos Camaradas, como ele pedimos ao Senhor Deus das Tempestades e das Batalhas, que nos dê o Caminho mais difícil e mais justo, leve a capitólios ou rochas tarpeias não importa, mas que seja o nosso Caminho. E que o sigamos com a mesma Fidelidade, a mesma Alegria, o mesmo Amor, com que José António o trilhou, desde sempre, por boas e más horas, do Discurso da Comédia àquela manhã de Novembro, em Alicante, quando uma vez mais o rubro do Sangue e o negro da Terra se fundiram no epílogo dum «destes combates em que se deixa a pele e as entranhas».


Jaime Nogueira Pinto (In «Agora», n.º 332, pág. 7, 25.09.1967)


quinta-feira, outubro 30, 2003

Três meses

Ao findar Outubro, no cair da folha, o “Sexo dos Anjos” completa três meses.
A melancolia do Outono bate forte, fortemente.
Mas continuo, gostando de me sentir de vez em quando como dos seus gatos dizia o meu conterrâneo Fialho de Almeida: “miando pouco, arranhando sempre, e não temendo nunca”.
Presunção, claro. A água benta que não falte.


José Valle de Figueiredo

Poeta e crítico literário, nascido em Tondela, em 1942.
Em tempos director do jornal Combate e da revista Commedia.
De um rigor oficinal vigilante, só razões exógenas ao "dizer poético" o não tornam mais compartilhado.
Um dos poetas urgentes dos tempos novos.


CANTO PARA A JUSTA ACLAMAÇÃO DE VISEU

Palavra declamada em pedra,
que à arte mineral e pura se deu,
senhorial e descobridora,
com sílabas de granito
se abriu ao mundo:
foi além e acolheu-se
ao mar antigo e à terra estranha,
à gente remota e afeiçoada.
Daquela janela saudosa,
como verso que se faz poema
no curso vário, secular,
do alto se desvelou e viu,
e a novo canto se deu:
arte viva, grã cidade, Viseu.


José Valle de Figueiredo

Outra de Nelson Rodrigues

Como já tinha referido, Nelson Rodrigues participou activamente na campanha de recolha de fundos para evitar o fim da revista “Permanência”, de Gustavo Corção. Aproveitou mesmo para isso a tribuna de que dispunha no jornal “O Globo”, lançando daí o apelo bem humorado que segue (repare- se como parece fácil dizer coisas sérias a sorrir).
Fica aqui de presente, tanto para os que cultivam o prazer da leitura, puro e simples, como para aqueles que adicionalmente cultivam o hábito reflexivo de ler e pensar.

CARTA AO MILIONÁRIO BRASILEIRO
1
Meu caro milionário paulista. Não, não. Melhor será dizer: brasileiro. Meu caro milionário brasileiro: em primeiro lugar, devo dizer-lhe que não sinto nenhum preconceito contra o rico. Fica-lhe muito bem a sua fortuna e vou-lhe dizer mais: desejo do fundo da alma que você tenha uma casaca. Se a tem, creia-me: está justificado o fato de você ter nascido.
2
Nem pense que a casaca seja um dado frívolo, intranscendente. Sabe você por onde se demonstra o nosso racismo jamais confessado? Por um fato muito mais dramático do que se imagina: até hoje, não se viu um preto brasileiro de casaca. Não importa que os nossos sociólogos ponham a mão no fogo por uma democracia racial que nunca existiu. Primeiro, a casaca; depois, a sociologia.
3
Mas como ia dizendo: não tenho o preconceito contra a fortuna e tenho o preconceito oposto, ou seja: contra a miséria. Entendo que o Dom Hélder ame a miséria, ame a mortalidade infantil, ame a fome. Tudo isso é o seu ganha-pão. Por uma questão de sobrevivência e de turismo (ele, que viaja tanto), interessa-lhe que o Nordeste apodreça de fome infantil e adulta. Mas eu quero, inversamente, a multiplicação dos ricos.
4
Está escrito que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Escrevo isso e já uma dúvida me ocorre: será “fundo de uma agulha” ou “buraco de uma agulha”? Em ambas as hipóteses, tanto faz. Não sei se é católico e, em caso afirmativo — que tipo de católico? No passado, o católico era simplesmente católico. Mas hoje tudo mudou. Os “padres de passeata”, ditos “progressistas”, questionam todos os dogmas e, até, acham graça nos dogmas. Uns são católicos-marxistas, outros católicos sem vida eterna, e ainda outros “católicos-maoístas'“, ou “católicos-fidelistas” etc. etc. Só não são católicos.
5
Se meu caro milionário está na linha de D. Hélder e Dr. Alceu, a história do camelo e da agulha não passa de fábula de “gibi”. Mas quero crer que você seja um católico de verdade e não dos falsamente chamados “progressistas”. E, nesse caso, entre o efêmero e o eterno, você terá escolhido a eternidade.
6
Mas pergunto: entrará você no reino dos céus? Façamos aqui uma breve meditação sobre o seu destino efêmero e o seu destino eterno. Na Terra ou por outra — no Brasil, ser rico é um risco. Duas forças o ameaçam: de um lado, o comunismo; de outro lado, o anticomunismo. O que o salva do comunismo é o comunista. Com que inépcia, cegueira, obtusidade, irrealismo, alienação o comunista liquida o comunismo.
7
Resta o anticomunismo, que, por um ressentimento ingênuo, também não gosta dos ricos. Outro dia, dizia-me um milionário: “Ainda vou-me disfarçar de ceguinho.” Não brincava. Falo muito no ceguinho da Rua do Ouvidor. É o que toca ao violino sempre o mesmo tango: “La Cumparsita”. E o meu amigo milionário, nas suas fantasias, imagina-se de óculos escuros, bisando eternamente “La Cumparsita”. Gemeu: “O ceguinho da Rua do Ouvidor está muito mais seguro do que os milionários do Brasil.” Certamente, há, no seu pânico, um relativo exagero.
8
Eu me pergunto se você será ou não um herdeiro. Fez a sua fortuna ou se a recebeu, de graça? Em ambas as hipóteses, não há mal nenhum. Admitamos que seja um milionário de berço. Antes da primeira chupeta, já era milionário. Resta saber que destino escolheu para a sua herança. Você a dinamizou, você a potencializou, você injetou-lhe a sua vontade criadora?
9
Não sei se você passa muitas vezes pela Avenida Atlântica. É o meu caminho diário. Aquelas máquinas, aqueles guindastes, aquelas estacas, aquelas dragas, tudo aquilo parece a fundação do mundo. Todas as manhãs, faço o caminho do Forte ao Leme. E sinto que a praia da véspera não é a mesma do dia seguinte; que o mar é outro; que as dunas conquistam o mar. E como a praia muda, e muda o mar, e as espumas, tudo começa a mudar. É um delírio. Eis o que eu quero dizer: o seu dinheiro pode transformar também a realidade. Pode fazer inventar outras praias, outros mares, outros horizontes, outras ilhas.
10
Quero saber se você, meu bom milionário, tem feito horizontes, ilhas, praias. Há de gostar de uísque. Ou por outra: não gosta, mas toma uísque. Ninguém gosta e todos se encharcam de uísque. Está maravilhosamente certo. Ninguém bebe o que quer, ninguém come o que quer, ninguém tem a mulher que quer. Também finge que adora o seu jardim. Mandou Burle Marx fazê-lo. E o seu jardim só tem uma cor: um verde obsessivo, apavorante, alucinatório. Nós sabemos que não há nada mais feio do que uma cor sem as outras. E as visitas invejam o seu insuportável jardim e acham Burle Marx um gênio.
11
Você gosta de ter, nas imediações, decotes ideais. Nada disso o impedirá de atravessar o buraco da agulha (não o estou chamando de camelo). Mas o que é que você faz ou que é que você tem feito? O Brasil está para ser feito, nós temos de fazê-lo. Você nasceu, e como justifica o fato de ter nascido? É milionário e o acusam de ter dinheiro. Estão contra você o comunismo e o anticomunismo. E é possível que você mesmo, em suas insônias, faça uma autoflagelação.
12
Estou dizendo tudo isso para lhe fazer um pedido, meu bom milionário. Não quero de você nada de épico, de sublime. Pelo contrário. É um pequeno ato, de uma infinita modéstia. Sim, ato humilde, que não vai absolutamente promovê-lo. Ninguém vai saber que você o fez, senão você mesmo. É o seguinte: há, no Brasil, uma revista católica chamada Permanência. Imagino o seu pânico: “Revista católica?” Não se assuste, meu caro milionário. Permanência é uma desesperada batalha contra os “assassinos da Igreja”.
13
Não sei se você sabe, e, se não sabe, fique sabendo: a maioria absoluta, a quase unanimidade das revistas católicas são feitas, precisamente, pelos anticatólicos. Outro dia, li um pequeno jornalzinho e lá Cristo é apresentado como um guerrilheiro. Sim, como um assassino. Dirá alguém: “Mas o guerrilheiro não é assassino.” Acontece, porém, que é perfeitamente — assassino. Sabemos que qualquer guerra é monstruosa. Na última, morreram milhões e milhões de pessoas. Essa abundância cadavérica chega para o nosso horror. Pois a guerrilha é a mais infame das guerras, a chamada “guerra suja”. Direi, apenas, que é a guerra sem prisioneiro, que não admite prisioneiros, que mata prisioneiros. Você entende? Se quem mata prisioneiros não é assassino, quem o será?
14
Permanência constitui uma dramática exceção. É uma das raras, raríssimas revistas católicas feitas por católicos e não pelos inimigos da Igreja. Vive e sobrevive graças ao esforço abnegado e solitário de uma meia dúzia. E, sem meios promocionais, é pouquíssimo conhecida. Imagino que você, milionário, diga: ”Eu nunca a li.” E outros dirão: ”Nem eu, nem eu.” Não importa que ninguém a tenha lido. Mesmo sem um único leitor, Permanência precisa existir, continuar, não morrer.
15
Bem. Vamos ao pedido. Eu queria, milionário, que você fizesse o seguinte: mandasse um cheque para Permanência. Ninguém saberá, ou por outra: saberá aquele que o receber. Mas não mande uma quantia pequenina e vil. Se você, milionário, me pedisse uma sugestão, eu diria: um cheque de vinte milhões antigos. Gostaria de saber se, entre os milionários brasileiros, há um capaz desse gesto de amor. Se você fizer isso, meu amigo, o camelo passará pelo buraco da agulha. Sua doação será um momento da consciência católica.

NELSON RODRIGUES
(O Globo, 27-12-69)

«Vencer a matéria pelo espírito. O que seria preciso era a formação de um escol. A Filosofia Portuguesa é que tem o segredo da espiritualidade necessária para a transformação do Mundo. Não podemos esquecer Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro, José Marinho, Agostinho da Silva, e muitos outros. Mas, se é a Filosofia Portuguesa que tem o segredo dessa espiritualidade, os mais novos é que têm o segredo da transmutação. Se os jovens forem na corrente actual, então está tudo perdido. Nota-se, de facto, muitos jovens interessados no pensamento português. Se daqui resulta algo, só Deus é que sabe. Nós temos é de fazer as coisas.»

(António Telmo)

quarta-feira, outubro 29, 2003

Blogues

Eu já conhecia o melhor blogue do Chiado.
E descobri agora o melhor blogue de Seia.
E o melhor blogue de toda a Beira Interior.

António José de Brito

António José Aguiar Alves de Brito, nascido a 22 de Novembro de 1927, no Porto, e no Porto residente, construiu ao longo do último meio século, em constante labor intelectual, uma obra de cuja vastidão e importância não parecem dar-se conta nem sequer os amigos.
Pensador comprometido com o seu tempo, longe da imagem tranquila do sábio de biblioteca, moveu-se sempre por uma preocupação de rigor e fundamentação que fizeram dele um dos casos mais sérios de vocação filosófica em toda a segunda metade do século XX em Portugal.
Ao acaso da memória, entre obras que tenho e outras que não tenho ou não encontro, elaborei a amostra que vou deixar aqui já a seguir, de títulos de livros publicados por António José de Brito.
Ficam por ordem alfabética, que outra organização implicaria trabalho a que não posso dedicar-me. Espero com isto impressionar, e motivar alguém a interessar-se, e ler – com o profundo respeito que merece um trabalho que não tem igual em Portugal, e não sei se terá similar em qualquer outro pensador vivo encontrável na família política em que orgulhosamente se insere.
Permanecem de fora, evidentemente, os inumeráveis exemplos dispersos da sua actividade de publicista, espalhados ao longo dos anos, desde a juventude até à actualidade, por jornais e revistas de desigual valor e notoriedade.
Quase todos os livros referidos são hoje muito difíceis de encontrar; sugiro mesmo assim que sejam procurados na Hugin e na Nova Arrancada, onde é possível que alguns deles estejam disponíveis.

- A propósito de juízos de existência
- Contradição e identidade
- Destino do nacionalismo português
- Diálogos de doutrina anti-democrática
- Estudos de Filosofia
- Filosofia contemporânea
- Le point de départ de la philosophie et son développement dialectique
- Nota sobre o conceito de soberania
- O problema da filosofia do direito
- O professor Jacinto Ferreira e o destino do nacionalismo português
- Para a compreensão do fascismo
- Para a compreensão do pensamento contra-revolucionário: Alfredo Pimenta, António Sardinha, Charles Maurras, Salazar
- Para uma filosofia
- Pensamento e realidade em Leonardo Coimbra
- Positivismo e idealismo na ética
- Razão e dialéctica: estudos de filosofia e história da filosofia
- Reflexões acerca do integralismo lusitano
- Sageza e ilusões da filosofia
- Será o homem uma pessoa?
- Uma “defesa do racionalismo”, no Porto, na segunda metade do século XIX
- Valor e realidade

Os católicos e a política

Nestes tempos mais próximos tem sido muito falado o apelo do Papa João Paulo II aos cidadãos católicos para que se empenhem na coisa pública, surjam activos na defesa dos princípios e valores que lhes são próprios, usando dos meios que a legalidade vigente lhes oferece e proporciona.
Cumpre observar que essa orientação não é nova, e antes tem sido uma constante nos ensinamentos papais desde a parte final do século XIX.
Em Portugal esse empenhamento traduziu-se logo nos primórdios do século, numa época de tormentas várias, pela criação do Centro Académico da Democracia Cristã, em Coimbra, sempre associado a Salazar e Cerejeira, e posteriormente no Centro Católico, que viria a ter papel importante durante a primeira república na mobilização da opinião pública católica. Na fundação destes dois organismos salienta-se a presença prestigiada do professor Diogo Pacheco de Amorim, que para além do seu contributo pessoal prolongou ainda o seu legado à causa deixando sucessores, filhos e netos que ao longo do século marcaram presença em todos os momentos decisivos da vida nacional.
Este prólogo destina-se a explicar porque fica hoje aqui um curioso documento, não muito conhecido, todavia do maior relevo para a compreensão da acção política dos católicos durante a primeira república, e especialmente as suas relações com o sidonismo, no curto período em que esse movimento marcou a actualidade.

Manifesto do Centro Católico

Aos católicos portugueses:
Vimos, em nome do Centro Católico, expor aos católicos portugueses, em termos sinceros, francos e leais, o que se nos afigura ser na hora presente dever seu indeclinável.
Começaremos por definir a missão do Centro.
Não pretende este constituir um partido, que desça à arena política para disputar o poder.
Outra e mais alta é a sua ambição. Agremiando os homens de crenças vivas e acendrado patriotismo, sem distinção nem sacrifício de ideais políticos para fazerem imperar na vida pública os princípios cristãos de justiça e caridade e reivindicarem e defenderem os direitos e liberdades da igreja.
Como cidadãos, querem os católicos ver assegurada a sua liberdade religiosa sem ofensa dos direitos de outrem.
Propõe-se ainda o Centro exercer acção moderadora sobre as paixões políticas, defendendo os interesses superiores do país, sobranceiros às competições partidárias, como supremo critério da vida pública.
É singularmente difícil e incerta a situação actual, mercê das convulsões internas e dos perigos externos.
Cá dentro, a disciplina social abalada; os princípios fundamentais da ordem esquecidos ou violados; o espírito cristão enfraquecido; a vida económica e financeira profundamente perturbadas.
Lá fora, achamo-nos envolvidos na terrível guerra mundial, solidários com os nossos aliados. Cumpre-nos afirmar bem alto os direitos da nossa gloriosa nacionalidade e manter integro o seu património territorial.
Antes e durante este período crítico da vida nacional a demagogia sectária calcou aos pés todos os direitos e desencadeou as mais ruins paixões. Viram-se os católicos despojados das liberdades essenciais de culto, de associação, de ensino e consumada a apostasia do Estado pela quebra das relações seculares com a Santa Sé.
Máxima foi a nossa culpa. Não tínhamos organizado a defesa, mercê de comodista individualismo, propenso à passividade resignada e ao menosprezo do dever cívico.
A revolução triunfante em 8 de Dezembro último veio iniciar de surpresa a emancipação do país do jugo demagógico, que sobre ele pesava.
Por isso de norte a sul aclamaram entusiasticamente todas as classes sociais, sem distinção de opiniões, o actual Chefe do Estado, prestigioso caudilho daquele movimento libertador.
A parte sã do país manifestou - por modo mais significativo que uma consulta eleitoral - que daria todo o apoio a quem lhe garantia ordem, administração honesta e patriótica, respeito das consciências, exercício das legítimas liberdades.
A essas solenes demonstrações correspondeu o formal apelo do sr. dr. Sidónio País ao concurso patriótico de todos, sem distinção de crenças, nem de ideais políticos, à união de todos os bons portugueses para salvarem a Pátria nesta hora angustiosa.
Essa obra reparadora foi iniciada.
No que respeita a liberdade religiosa, algumas demonstrações de boa vontade foram dadas aos católicos e prometeu-se-lhes a reforma dessa lei odiosa e iníqua, que durante sete anos fora declarada pedra angular e paládio intangível, a lei chamada de separação e que foi apenas instrumento de expoliação e opressão. O que a Igreja sofreu e nós com ela, tratados como párias num país católico!
Veio a reforma prometida, mas, por lamentável contradição, não correspondeu a nossa expectativa, nem traduziu o propósito justiceiro do Chefe do Estado.
Derrogaram-se, é certo, alguns preceitos odiosos da antiga lei, mas outros permaneceram vigorando, em estranha antinomia com o critério anunciado.
Urge modificar a actual situação legal da religião católica entre nós, embora em regimen de separação; pondo-se termo ao funesto conflito entre o Estado e a consciência religiosa da grande maioria da nação.
Por esse propósito justiceiro e pacificador - que parece ser o do actual ministro da justiça -, importa orientar sem demora a acção governativa e parlamentar em matéria religiosa.
A primacial manifestação destas tendências deve ser um pronto e leal entendimento com a Santa Sé, consoante o exigem iniludivelmente os superiores interesses do país e o Centro Católico tem insistentemente reclamado.
Vai-se proceder a eleições para confirmar o mandato revolucionário que investiu o sr. dr. Sidónio País na presidência da república e para escolha dos membros de câmaras constituintes.
Qual o dever dos católicos em tal conjuntura?
Definiu-lho em termos claros e iniludíveis a última Pastoral colectiva. Devem votar e votar bem, preferindo os candidatos que melhores garantias derem de apoiar as suas reivindicações. Para isso importa que se façam recensear e que procurem esclarecer a consciência dos eleitores, acerca do alcance moral do acto que vão praticar.
Ao problema religioso junta-se o problema da ordem, da honesta e patriótica administração.
É no sr. dr Sidonio País que a nação confia para o resolver neste momento angustioso.
Por isso, devemos conceder, por desinteressado patriotismo, a ele e ao governo a que preside, apoio leal e franco, contribuindo para lhe fortalecer o prestígio pela consagração dos votos da grande massa conservadora.
Podemos e devemos fazê-lo sem quebra de dignidade, nem sacrifício dos nossos princípios.
Tem de ser reformada a Constituição.
Esforcemo-nos por fazer expurgar dela preceitos incompatíveis com a verdadeira liberdade da consciência. Cooperemos para que se fortaleça o poder executivo, libertando-o da abusiva invasão de atribuições pelo parlamentarismo, que em vez de exercer apenas a sua missão legislativa, sujeita os governos a tutela humilhante e corruptora, e impede a continuidade e salutar desafogo da sua acção.
Aconselhamos pois as católicos a dar o seu voto ao sr. dr. Sidónio Pais para a presidência da república.
Quanto à escolha de candidatos, depende de circunstâncias regionais. Onde a nossa organização nos permite fazer vingar uma candidatura do Centro, outra não pode ser a solução. Fora desses casos impõem-se os acordos honestos e dignos com o Governo e com os partidos que nos mereçam confiança sobre a base do apoio às nossas reivindicações essenciais.
Para unidade da acção, que a torne mais eficaz, as combinações eleitorais devem ser submetidas à Direcção Geral do Centro, à qual compete, segundo o regulamento, orientar e dirigir superiormente as trabalhos de acção eleitoral.
Fica assim traçada a linha de conduta que em consciência se nos afigura mais consentânea com a defesa dos superiores interesses da Religião e da Pátria.
Para a zelo dos católicos apelamos, cheios de confiança, pedindo-lhes que cumpram o seu dever.

Porto, 14 de Março de 1918.

A Direcção Geral do Centro,

José Fernando de Sousa
Diogo Pacheco de Amorim
Alberto Pinheiro Torres

terça-feira, outubro 28, 2003

Pedro Homem de Mello

O poeta D. Pedro da Cunha Pimentel Homem de Mello nasceu no Porto a 6 de Setembro de 1904 e veio a morrer na mesma cidade a 5 de Março de 1984.
Deixou vasta obra marcada por um lirismo profundamente português, nascido da sua própria vivência íntima e numa sentida e autêntica sintonia com o povo.
Foi muitas coisas na vida; advogado, professor ... sempre e sobretudo poeta.
A popularidade veio-lhe mais da sua actividade como estudioso e divulgador do folclore português, tarefa que o apaixonou durante décadas, e que o levou desde as romarias do Minho até aos programas da televisão.
A sua poesia espraiou-se por muitos livros: “Caravela ao Mar”, “Segredo”, “Há Uma Rosa na Manhã Agreste”, “Grande grande era a cidade”, “Eu Hei-de Voltar um dia”, “Eu Desci aos Infernos”, “Grande Poeta é o Povo”, “O Rapaz da Camisola Verde”, “Bodas Vermelhas” ....
Mas nunca ela, que tinha nascido do povo, teria alcançado a glória da voz do povo se não fora o encontro com Amália. Mágico casamento, que nos deu, entre o mais, “Fria claridade”, “Prece”, “O rapaz da camisola verde”, e, acima de tudo, “Povo que lavas no rio”.
Dou-vos hoje de presente “Povo que Lavas no Rio”, do Poeta D. Pedro.


Povo que lavas no rio

Povo que lavas no rio
Que vais às feiras e à tenda
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Há-de haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida não!

Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia...
Mas a tua vida, não!

Fui ter à mesa redonda,
Beber em malga que esconda
Um beijo, de mão em mão...
Água pura, fruto agreste,
Fora o vinho que me deste,
Mas a tua vida não!

Procissões de praia e monte,
Areais, píncaros, passos
Atrás dos quais os meus vão!
Que é dos cântaros da fonte?
Guardo o jeito desses braços...
Mas a tua vida, não!

Aromas de urze e de lama!
Dormi com eles na cama...
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
Tive o dom de conhecê-las...
Mas a tua vida, não!

Subi às frias montanhas,
Pelas veredas estranhas
Onde os meus olhos estão.
Rasguei certo corpo ao meio...
Vi certa curva em teu seios...
Mas a tua vida, não!

Só tu! Só tu és verdade!
Quando o remorso me invade
E me leva à confissão...
Povo! Povo! eu te pertenço.
Deste-me alturas de incenso.
Mas a tua vida, não!

Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado,
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!

PEDRO HOMEM DE MELO

segunda-feira, outubro 27, 2003

"Há dois mistérios capazes de atrair a morte e de a aniquilar: escrever e amar, experiências originárias e últimas, a morte da morte ..."
(Vintila Horia, in Viagem aos Centros da Terra)

Nelson e Corção

Tenho a certeza que a primeira vez que li um artigo de Nelson Rodrigues foi em 1975, nas páginas de “O Dia”.
O quotidiano lisboeta, dirigido então por Vitorino Nemésio ou já por David Mourão Ferreira, ou pelos dois, não recordo bem, publicava pequenas crónicas do grande escritor brasileiro.
Fixei o momento porque o sabor único e inconfundível daquela prosa vigorosa, viva, envolvente, a visão daqueles pedaços de vida que ali ficavam expostos, com um toque de humor incomparável, constituíram de imediato um deslumbramento, uma descoberta que nunca mais esqueci.
Não se escrevia assim em Portugal – e ainda hoje se pode dizer o mesmo.
Desde então nunca mais afastei a minha atenção do formidável Nelsão. Entretanto, passou tempo, e muitos outros partilham o gosto. Não era assim nessa época, em que o autor era aqui um desconhecido, e pouco ilustre.
Mas falo de Nelson para falar de Corção.
Este nem depois de morto logrou o reconhecimento. Continua no índex.
Não por falta de empenho de Nelson: sempre, até ao fim, este exaltou o amigo em todas as oportunidades que lhe deixavam. Sempre sublinhou a grandeza do vulto cultural que os bloqueios imperantes condenavam ao silêncio.
A dedicação de Nelson chegou ao ponto de andar a fazer peditório a favor da “Permanência”, a revista de Gustavo Corção, lutando contra o iminente encerramento pela razão do costume.
Fica aqui o artigo, que já tinha prometido: uma crónica de Nelson Rodrigues sobre a personalidade de Gustavo Corção.


Tudo em Corção é Amor

Outra figura brasileira consagrada pelos palavrões: - Gustavo Corção. Ninguém diria, de maneira sucinta e inapelável: "É uma besta!" Bem que as esquerdas gostariam que o fosse. Mas os seus piores inimigos sabem, e não teriam o cinismo de negar, que Gustavo Corção é uma das inteligências mais sérias do Brasil. Certa vez aconteceu-me uma passagem extraordinária com o grande pensador católico.
Era domingo. Voltava eu, não sei se de um clássico ou de uma pelada. Na saída do Estádio Mário Filho, alguém me chama. Volto-me e dou de cara com um amigo, uma flor das esquerdas, um doce radical como o Antônio Calado ou como o Hélio Pelegrino. Eu e o amigo caminhamos no meio da torcida. Acontecera um empate e ninguém gritava. A multidão tinha algo de tristeza fluvial no seu lerdo escoamento. Então, o meu companheiro falou: - "Estou besta! Com a minha cara no chão!" Pensei que ele, Fluminense como eu, estivesse desiludido com o Tricolor (realmente, o meu clube não compra ninguém). Mas ele continuou: - "Nunca pensei que o Corção..." Fez uma pausa e repetiu: - "Estou besta! besta!"
Entre parênteses, esse meu amigo tem, pelo Corção, um ódio comovente. Não lhe diz o nome sem acrescentar... Acrescentar não. Não lhe diz o nome sem lhe antecipar um palavrão. Chega ao nome pelo palavrão. E, súbito, falava do inimigo com uma impostação diferente e, mesmo, inédita. Perguntei-lhe: - "Mas estás besta por quê?"
Esquecia-me de dizer que o meu amigo levava um radinho de pilha. Abriu uma pausa na conversa para ouvir os comentários do João Saldanha e as gravações dos "goals". Só depois do Saldanha é que voltamos ao Corção. Rádio desligado, e o outro me perguntou, na sua impressão profunda: - "Leste o artigo que ele escreveu? Que escreveu sobre o filho? Ó rapaz! O artigo do Corção sobre o filho?"
Não era um artigo do dia ou da véspera. Da sua publicação, transcorrera toda uma semana. E, através dos sete longos dias, o artigo do Corção ficara badalando dentro do meu amigo, como um sino inexorável. Membro da "festiva", freguês do "Antonio's", havaiano de praia, relera o inimigo umas quinze vezes. E a cada leitura a sua perplexidade era cada vez mais amarga. Súbito, via um novo Corção, um Corção jamais suspeitado, um anti-Corção.
Vejam vocês: - o grande prosador escrevera uma página sobre o filho, Rogério. Foi um artigo de funda e dilacerada ternura. O nosso Rogério estava no Vietnam, como um dos representantes do Brasil. Lá, as balas não escolhem, não discriminam, e tanto estouram a cara de americano, como de brasileiro. E havia no artigo todo um amor insuportável, e uma solidão desesperadora.
O assombro do meu amigo tinha a sua lógica. Durante anos, criara, e recriara, dia após dia, uma imagem hedionda do "reacionário". Ele imaginava que, se o Corção passasse a mão pela face, havia de sentir a própria hediondez. Nunca lhe ocorrera que aquela besta-fera pudesse ter costumes, usos, gestos, como outro qualquer. Impossível um Corção tomando cafezinho ali na esquina; inadmissível uma gargalhada do Corção, ou um assovio do Corção. E aquele Corção pai, simplesmente pai, e simplesmente terno, e simplesmente infeliz, e simplesmente órfão do próprio filho, contrariava toda uma imagem feita de palavrões, de insultos, de baba.
Mas, vejam toda a operação psicológica do meu amigo. A princípio não entendera uma palavra, tão desconhecido, tão estrangeiro, tão alienado parecia aquele Corção vergado, sofrido, perdidamente solitário. Só depois é que, limpando a figura dos palavrões, dos ultrajes, das calúnias, é que o freguês do "Antonio's" pode chegar à luz última e verdadeira do inimigo.
Por fim, quem estava infeliz, na volta do Estádio Mário Filho, era o membro da festiva. A partir daquele momento, os seus palavrões soariam falsos aos próprios ouvidos. O meu amigo estava comovido e, pior, furioso com a própria comoção.
E, então, chegou a minha vez. Não me lembro de tudo o que disse de Gustavo e de Rogério. O esquerdista ouvia só, numa desesperada impotência para negar a imagem que eu ia elaborando de Corçâo. Expliquei-lhe que tudo em Corção é amor; poucas pessoas conheço com tanta vocação, tanto destino, para o amor. O que parece ódio, nos seus escritos, é ainda amor. Amor que assume a forma das grandes e generosas procelas.
Bate forte, muitas vezes. Mas sempre por amor. Está fatalmente ao lado da pessoa e contra a antipessoa. É a luta que o apaixona. Todos os dias, lá vai ele atirar o seu dardo contra as hordas da antipessoa. Eis o que eu repeti para o meu amigo das esquerdas: - o Corção tem um coração atormentado e puro de menino.
Quem o sabe ler, percebe em todos os seus escritos o pai de Rogério, sempre o pai de Rogério, querendo salvar milhões de filhos, eternamente.


Nelson Rodrigues

In “O Óbvio Ululante”, Livraria Eldorado Editora, 1968, pp. 164-166


domingo, outubro 26, 2003

Ser liberal em Portugal

Na Catalaxia publicou o Rui um valioso texto em que, primeiro, dá notícia do lançamento no Porto de um livro de Carlos Abreu Amorim, com o título “É difícil ser liberal em Portugal”.
Porque se trata de duas pessoas que me merecem estima e consideração, como já ficou patente neste blogue por três ou quatro referências, não quero deixar passar em branco o acontecimento.
Antes do mais, porém, confesso, neste ponto dirigindo-me mais aos dois mencionados, que o título me causou um sorriso, ao mesmo tempo divertido e amargo. Não porque não acredite que é efectivamente difícil ser liberal em Portugal; admito perfeitamente, até porque em Portugal é habitualmente difícil ser seja o que for, desde que se queira ser com inteireza e carácter.
Todavia, inevitavelmente, tenho que observar que há opções bem mais dolorosas; fosse o Carlos por outros caminhos e logo veria como em vez da intensa actividade cívica que se lhe conhece teria por destino fatal a irremediável morte civil, quando não pior (dependeria dos momentos históricos).
Ser liberal, ainda assim, não me parece das coisas mais inconvenientes.
Mas isto são desabafos pessoais, de menor importância. O que mais queria salientar era a parte substancial do texto do Rui, onde este alinhava as múltiplas razões pelas quais, a seu ver, a seiva salvífica da ideologia liberal nunca foi recebida e assimilada pelo débil organismo da nação portuguesa.
O seu raciocinar enuncia algumas observações de indiscutível pertinência, relevância e actualidade, na caracterização que faz da sociedade portuguesa e das suas fragilidades. Mas não basta descrever o doente.
Perdoar-me-à, mas, embora ressalvando a valia do artigo, parece-me que este se detém onde deveria prosseguir.
O que deixa escrito são em geral constatações factuais. Mas quais as razões fundas para essa incompatibilidade radical? Quando a criança não se alimenta há que analisar os motivos.
Existe alergia congénita? Ou o produto não tem as propriedades precisas?
O bébé não sabe mamar? Ou essa mama é que não dá leite?

A obra intangível do Dr. Abílio Fernandes

Frequentes vezes, conversando longe de Évora, pessoas as mais diversas romperam espontaneamente em elogios à gestão municipal que foi aqui vigente ao longo de um quarto de século. Os elogios eram sempre estranhamente iguais. “fui outro dia a Évora. Que beleza! Vocês têm muita sorte em terem lá aquele presidente de câmara! Tudo tão preservado, tão cuidado ... uma maravilha!”.
Como já estava habituado a tais desabafos, geralmente fazia cara de ponto de interrogação: “Porquê tal elogio?” Os meus interlocutores admiravam-se, e engasgavam-se. “Então... não se está mesmo a ver? Não diz toda a gente? Tudo tão bem conservado! Tantos e tão belos monumentos!!!”.
A conversa acabava neste ponto. Observava divertido que nenhum dos monumentos era obra desta gestão autárquica; e que não me parecia grande mérito esse de conservar. Os cargos em causa não têm por missão a destruição do que existe. Conservar o que se recebe é o mínimo dos mínimos no cumprimento das obrigações.
Fiquei porém com uma ideia assente: na gestão da imagem, sobretudo para o exterior, foi o poder autárquico dominado durante 25 anos por Abílio Fernandes realmente mestre indiscutível.
Para dentro da cidade nem tanto; nunca por cá ouvi os rasgados elogios correntes na imprensa bem pensante ou na opinião moldada por esta.
Com efeito, findo o período histórico em questão, nada se encontra que possa servir de emblema, de marca de orgulho ou distinção para os responsáveis pelo poder local durante este passado quarto de século.
Nada, para além da tal conservação – e mesmo a este respeito os indígenas têm visão um tanto diferente do forasteiro que aqui passou uma vez como turista, ou viu algures umas reportagens.
Outros poderiam gabar-se – e lembro que ainda estão vivos pelo menos outros dois antigos presidentes de câmara desta cidade, Henrique Chaves e Serafim Silveira – de legados pessoais imperecíveis: “no meu tempo lancei e inaugurei as piscinas municipais”; “no meu mandato planeei e executei a zona de urbanização n.º 1 ou n.º 3” ....
Abílio não: ficam como sinais do seu tempo quatro ou cinco rotundas, e o monumento ao bombeiro ...
Mas conservar é realmente escasso mérito; repare-se que mesmo num conservador de museu actualmente é consensual que essa virtude não basta; pretende-se que anime o sítio, que faça do seu espaço um centro vivo de difusão da cultura, não que seja um guardião de memórias mortas.
Conservar é virtude capital em congelador ou arca frigorífica; espera-se mais de um governante.

sábado, outubro 25, 2003

Nostalgia

"O facto de sermos habitados por uma nostalgia incompreensível seria mesmo assim o sinal de que existe um além".
(Eugéne Ionesco)

Missas de Domingo

Horário das missas de rito tradicional latino-gregoriano marcadas para este Domingo, 26 de Outubro:

Em Lisboa: às 11 horas, no Priorado São Pio X
Estrada de Chelas, 29-31 (junto à Avenida D. Afonso III)

Em Monforte: às 18. 30 horas, na Capela Nossa Senhora Rainha de Portugal
Avenida General Humberto Delgado, n.º 3

Livreiros on line

Tanto quanto conheço, os principais locais de venda por correspondência de livros e outros produtos culturais na net de língua francesa, para quem procura vencer a censura difusa mantida pela ditadura intelectual das esquerdas, são os que se seguem:

La Librairie Nationale
Libre Diffusion
Librad
Charlemagne Diffusion

Aqui fica a informação, como resposta a alguns pedidos, e para utilidade geral.

sexta-feira, outubro 24, 2003

Congresso Nacionalista

Da Aliança Nacional recebemos para divulgação a notícia da realização em Lisboa, a 15 e 16 de Novembro de 2003, do II Congresso Nacionalista Português, sob o lema “Sobre a terra e sobre o Mar”.
Os organizadores sublinham a necessidade de “produzir aquilo que, com propriedade, se costuma designar um pensamento político”, já que “não existe um pensamento nacional fundamentado, sério e credível para o Portugal do séc. XXI. Ou seja, faz falta que os nacionalistas se unam, debatam e definam os princípios que devem orientar o seu pensamento e a acção, para conduzir a Nação à unidade, por caminhos de liberdade, responsabilidade e soberania”.
Concluem os organizadores que “o I Congresso Nacionalista Português, realizado há dois anos, em 13 e 14 de Outubro de 2001, iniciou um trabalho importante, desbravador, no sentido de um pensamento nacionalista novo para Portugal. Um considerável avanço se conseguiu”.
"Queremos continuar esse trabalho com o II Congresso Nacionalista Português".
Todas as informações sobre a iniciativa, bem como os textos do I Congresso (que, antes do mais, merecem leitura atenta e crítica) encontram-se disponíveis no blogue da Aliança Nacional.


Ramalho na Vidigueira

Sobre as relações entre o cante alentejano e a música litúrgica já muito se escreveu (Cónego Alegria, Monarca Pinheiro, Jorge Raposo...), e com entendimentos diversos. Veja-se a propósito este excerto que retirei da correspondência de Ramalho, relatando uma curiosa observação pessoal vivida em 1888.

Passei a 4ª feira em Viana, e vim à noite para a Vidigueira. Ontem, 5ª feira, trouxeram em procissão da vila para aqui a imagem de Nossa Senhora das Relíquias, que tinha ido desta igreja do convento para a igreja da freguesia a pedir chuva. Não se imagina o que são estas procissões do Alentejo, que eu nunca tinha visto. 5 ou 6 mil pessoas acompanham os guiões e o andor, vestidas de festa e atirando foguetes. Toda essa gente canta em coro durante todo o percurso da procissão. Perdi todas as ilusões que tinha a respeito da superioridade da música coral do Minho. Os alentejanos são muito mais músicos do que os minhotos. Os homens quando cantam em grupos de cinco ou seis põem logo em combinação os seus diversos timbres de baixos, barítonos e tenores e tiram efeitos de terceto. Os cânticos em coro são lindíssimos. Ontem com a igreja, que é grande, apinhada de gente, o coro de todas as vozes parecendo fazer um balanço de onda do altar-mor até à porta do fundo, era de um efeito inesperado e profundamente comovente pela música e pela devoção de toda a gente. Ontem fizeram a festa da despedida da Senhora na vila. Hoje é que é a festa aqui com missa cantada, sermão, ladainha e arraial na quinta. A decoração do adro com bandeiras e festões de murta e um arco foi dirigida por mim. Aqui, realmente, não se pode estar melhor.”

(Ramalho Ortigão, em carta a sua mulher, datada de uma sexta-feira de 1888)


Arqueobibliografia

No "Católico e de Direita" questiona-se a ausência de Gustavo Corção nas letras portuguesas. A interrogação é oportuna, e foi logo respondida pelo próprio: são frutos do tempo.
Mas nem sempre o desconhecimento foi total: houve uma época em que Corção era lido e seguido em certos meios intelectuais católicos lusitanos. Estes é que mudaram, quando Corção não mudou. Tal como aconteceu no Brasil com Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde), primeiro compagnon de route e mais tarde, depois do seu aggiornamento, alvo predilecto das setas de Corção. Tudo tem a ver com o dilúvio do progressismo católico.
Dessa primeira época ficou a edição em Lisboa de duas obras de Corção: "A descoberta do outro", editado em 1943 e 1955, e "Lições de Abismo”, editado em 1955. Ou seja: a última edição data de 1955!
Mas para melhor compreensão do que digo leia-se o prefácio de António Alçada Baptista à edição de 1955 de "A descoberta do outro". Coisas dos vencidos do catolicismo, para usar a expressão de Rui Belo já adoptada também por João Bénard da Costa, dois desses ilustres vencidos, como Alçada.
Depois de todas as rupturas consumadas, Corção ficou a ser património exclusivo dos reaccionários subsistentes. Sei que esteve em Lisboa em 1973, onde se deu ao convívio das hostes. Leia-se a este respeito o que escreve João Bigotte Chorão no seu "Reino Dividido (Diário 1969-75)".
Há também uma curiosa alusão a Corção num poema de Rodrigo Emílio, denotando estima e conhecimento; o poeta ameaça ir também para Pasárgada, "pra junto de seu Manuel", e apela "você me cede um corcel? / decerto cede, Corção" ...
E termino, que o postal já vai longo. Mas um dia destes vou publicar aqui um velho artigo de Nelson Rodrigues a propósito do ostracismo decretado contra Gustavo Corção em terras de Vera Cruz.

Ramalho em Évora

Évora ainda é para mim a mais simpática das terras portuguesas, mas tanto a estragam de dia para dia que nunca venho cá que não encontre mais alguma coisa de novo destruída e aniquilada. Compreendo que em poucos anos (se eu chegasse a vivê-los) não poderia cá voltar para não morrer de saudade. Quantas faltas já que me dão sincera vontade de chorar. Os lindos conventos das freiras; a bela sala dos actos da antiga Universidade; os antigos paços do concelho dos quais só agora encontro o entulho no chão! Que calamidade! Que maldição de Deus caiu sobre esta terra! Da velha pintura tão gloriosa, valendo incalculáveis milhões, pouquíssimo ou nada existirá daqui a quarenta anos. Os quadros que desta vez examinarei de perto e detidamente, estão-se a desfazer carcomidos pelo caruncho, e ninguém pensa em os amparar gastando alguns mil réis com eles. É de cortar o coração”.
(Ramalho Ortigão, em carta a sua mulher, datada de 24 de Maio de 1907, em Évora)

Não admira que ande há tanto tempo o Joaquim Palminha da Silva a inventariar “Évora desaparecida”, nas colunas do “Diário do Sul”...


quinta-feira, outubro 23, 2003

Escrita

"Devemos escrever para nós mesmos, é assim que poderemos chegar aos outros."
(Eugéne Ionesco)

Descobertas

Num blogue expressamente dedicado aos estudos sobre a guerra civil espanhola, o estudioso responsável informa o venerável público que o ditador Franco chamava-se na realidade Francisco.
Francisco Franco, e era natural de Ferrol.
Diz corrigir assim anterior informação onde por lapso lhe tinha chamado José António.
Segundo ele, o tal José António, com que fez confusão, era o chefe da Falange, filho do ditador Miguel Primo de Rivera.
Fiquei esmagado. Que novas descobertas ainda virão dali?

E para descontrair ...

Novo escândalo circula já por aí.
Parece que Ferro Rodrigues perdeu a cabeça e agrediu um grupo de escuteiros.
Os moços vestiam todos camisolas a dizer "Corpo Nacional de Escutas".

Coisas sérias

Ninguém tem dedicado tanta e tão sistemática atenção e análise aos desenvolvimentos políticos relacionados com o processo judicial chamado da Casa Pia como o "Do Portugal Profundo".
Recomenda-se leitura igualmente atenta e sistemática.

Passarinhos e passarões

O aparelho de justiça é uma rede para apanhar passarinhos; quando por acidente lá cai um passarão rasga-se e rompe-se por todos os lados.
Repare-se no caso chamado da Casa Pia: perante o panorama mais recente, não há já lugar para ilusões. O consenso que se estabeleceu entre aqueles que contam em Portugal é simplesmente a defesa da estabilidade de uma classe que se sente ameaçada. Ou seja, o instinto de conservação da classe política vai sobrepor-se a tudo.
No fim disto aqueles que efectivamente pensaram que era possível esclarecer alguma coisa dos chamados crimes da Casa Pia vão ficar por aí amargurados, afastados, demitidos, até mal vistos porque perturbaram o repouso das instituições ...
Agora já nem se fala de pedofilia, ou de crianças abusadas.
Só se ouve o apelo pelas "coisas importantes" ... a violação do segredo, o escândalo das escutas, o abuso da prisão preventiva, o desrespeito das garantias dos arguidos, as nulidades de processo ...
No fim, o único condenado vai ser o Bibi, que é feio, porco e mau .. e é pobre, desgraçado e sem família, nem influência política ou social.
Como convém.

Sessão sobre Barrilaro Ruas

A Sociedade Histórica da Independência de Portugal organiza, nesta Quinta-Feira, dia 23 de Outubro, pelas 17h30, no Palácio da Independência, uma sessão em que será evocada a vida e a obra de Henrique Barrilaro Ruas.
Estivesse eu na capital e não faltaria; mas sendo isso impossível solicito a todos os que puderem que compareçam em minha representação.
Vale a pena, por vários motivos.
Primeiro, obviamente, pelo tema; a vida e a obra de Henrique Ruas merecem a evocação de todos os que se interessam por estas coisas da cultura e do pensamento lusíada.
Depois, pela veneranda instituição: a Sociedade Histórica da Independência de Portugal, de que aqui o Manuel Azinhal é sócio há muitos anos, é, desde a sua fundação, no século XIX, um baluarte seguro na defesa da independência e soberania de Portugal.
Finalmente, last but not the least, é uma oportunidade para quem não conhece ficar a conhecer o espaço físico do Palácio, e estou a pensar nos milhares e milhares que passam diariamente naquele Largo de São Domingos sem sequer olhar; os que já conhecem sempre podem rever, e recordar com a natural emoção.
E a acrescer a tudo isto os habitués destes lugares selectos da blogosfera podem ficar a conhecer, em sua pessoa, ali em directo e ao vivo, o vizinho dos “Caminhos Errantes”, o jovem doutorando Alexandre Franco de Sá, que será um dos discursantes.
Digam lá que não é um programa aliciante para o fim de tarde!!

Mais Horia

Ainda sobre as edições portuguesas de Vintila Horia, escreve o "Nova Frente" a acrescentar que, embora não conheça mais nenhum livro em português, para além dos que já foram aqui mencionados, merece ser salientado um notável prefácio do romeno ao livro "Introdução à Etologia", de António Marques Bessa, saído pelas Edições do Templo, em 1977 ou 1978.
Fica aqui registado; e a propósito acrescento eu que pela mesma época publicou António Marques Bessa na mesma editora o "Ensaio Sobre o Fim da Nossa Idade", com abundantes ecos do convívio intelectual com Vintila Horia.
Frutos de Madrid - o exílio, já aqui o escrevi, faz bem até à poesia. Mais genericamente, pode afirmar-se com segurança que faz bem a toda a literatura.

quarta-feira, outubro 22, 2003

Que desastre!

Ainda a propósito de edições de livros de Vintila Horia em Portugal, mais correcções e aditamentos:

1 - "Deus nasceu no exílio", tradução de Rocha Júnior, prefácio de Daniel Rops, edição de "A. M. Teixeira & C. Filhos Lda", Lisboa, 1961;

2 - "Deus nasceu no exílio", tradução de Isabel Gentil Penha Ferreira, edição da Ambar; esta afinal é recente, de 2002, e por isso, em princípio, será fácil de encontrar.

3 - "Viagem aos Centros da Terra (depoimentos sobre o estado actual do pensamento, das artes e das ciências)", tradução de Virgílio Godinho, Tomás Gonçalinho de Oliveira, Maria Amália Sotomaior, Lisboa, Verbo, 1972.

4 - "Introdução à literatura do século XX (ensaio de epistemologia literária)", tradução de João Maia, edição da Arcádia, Lisboa, em 1978.

E estou a ver que isto não fica assim..

A idade não perdoa

Mal tinha afixado o meu postal sobre Vintila Horia, logo o atentíssimo Pedro Guedes me dirige o primeiro correctivo: existe tradução e edição portuguesa de "Deus nasceu no exílio", sim senhor. A obra foi editada pela editorial Ambar, há muito tempo.
Reza a apresentação que "o romeno Vintila Horia inspirou-se no exílio de Ovídio para narrar os últimos dias de um poeta, condenado ao desterro (...)"
Fica aqui a constar a minha pública humilhação.

Borges de Macedo

E já agora que falo de livros, faço questão de dar nota da aparição recente de um ensaio de Jorge Borges de Macedo, editado pela “Gradiva Publicações”, e encontrável em qualquer sítio.
Chama-se o livro “Da Crítica da Ciência à Negação da Ciência”.
Recomenda-se a todos os que tiveram a honra e o gosto de conhecer um dos mais cultos e inteligentes pensadores portugueses, e mais ainda a todos os que não o conhecem e bem fariam em conhecer.
Fica um aperitivo: «Em vez da eternidade, temos a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente.»
Pois é. Como diria Vintila Horia, as visões do mundo baseadas numa essencial aspiração à “homogeneidade macrofísica” estão com os dias contados.

Vintila Horia

Na sequência da publicação neste meu blogue de citações de Vintila Horia, retiradas do livro “Viagem aos Centros da Terra”, perguntam-me sobre edições portuguesas de obras do escritor.
Vintila Horia (nascido em Segarcea, Roménia, em 1915, falecido em Madrid, em 1992), foi um escritor marcado pelo tema do exílio, em que viveu a maior parte da sua vida (primeiro em França e na Suíça, depois, e por muitos anos, em Espanha), bem como pela sua oposição ao regime comunista e ao sovietismo que dominava a sua terra natal – e dominava também a intelectualidade francesa, quando aí aportou, o que muitos amargos lhe causou.
Não tenho outra forma de responder à solicitação que não seja arriscando as imprecisões da memória. Se alguém puder corrigir os lapsos, agradeço que o faça, escrevendo do mesmo modo para o endereço que consta do blogue.
Julgo que as edições portuguesas de obras de Vintila Horia são hoje praticamente impossíveis de encontrar.
Existe edição portuguesa, muito antiga, da "Viagem aos Centros da Terra", de que tenho um exemplar.
Com uns anos menos, existe um livrinho de João Bigotte Chorão intitulado "Vintila Horia ou um camponês do Danúbio", que foi editado pelas "Edições do Templo" na altura em que Vintila Horia veio a Portugal.
Com efeito, Horia, que vivia em Madrid, esteve em Lisboa a convite da "Renovação" (não sei se o convite terá partido do Coronel Santos e Castro, se de José Valle de Figueiredo, que conhecia certamente o escritor visto ter vivido em Madrid, se foi mesmo de Chorão, dado que este era o que melhor conhecia, e conhece, a obra e o autor).
O certo é que Vintila andou por aí, deu entrevistas, proferiu uma conferência muito concorrida no “Sheraton”, e o apresentador e mestre de cerimónias foi sempre Bigotte Chorão.
Bastantes anos mais tarde saiu a "Introdução à Literatura do Século XX", para mim o trabalho mais importante de Vintila, sobretudo pelo seu lado ensaístico.
E é tudo o que me lembro de edições portuguesas de ou sobre Vintila Horia.
Curiosamente, não conheço tradução portuguesa de "Dieu est né en éxil”, romance que consagrou o exilado romeno, por em 1960 ter sido agraciado com o Prémio Goncourt – que aliás o autor recusou, em reacção à campanha política então desencadeada contra ele.
De igual modo não conheço traduções de “Journal d'un paysan du Danube” (1966) ou “Persécutez Boèce” (1987), obras marcantes no itinerário de Vintila.
Mas, como comecei por dizer, creio que as afirmações que deixo estarão eivadas de incorrecções involuntárias. Fico grato pelas emendas que generosamente surgirem.



De novo Manuel Bandeira

A minha particular disposição trouxe-me outra vez à mente o já falado Bandeira; o tal São João Baptista do modernismo brasileiro....
O seu poema mais famoso e conhecido fica muito bem aqui hoje. Isto está de fugir, meus meninos ...


VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira

terça-feira, outubro 21, 2003

Quando António Sérgio exaltava o fascismo

Naquele Ocidente dos anos Vinte, desfeitas pela I Grande Guerra as ilusões do velho liberalismo, desgovernados os países pelas classes partidocráticas que se debatiam na confusa podridão dos interesses particulares e das intérminas discussões inúteis, afloravam em toda a parte, com mais ou menos violência, os primeiros focos da subversão comunista. A Alemanha era então olhada, mais do que a Rússia, como o grande condutor da futura revolução marxista, cujo carácter fundamental ainda não fora necessário disfarçar em face das realidades que o contradiziam.
Daí resultaram as reacções do espírito nacional como facto comum a todos os países da Europa.
Em Portugal, onde a velha partidocracia tomara aspectos particularmente desordeiros, verificara-se a primeira reacção com Sidónio Pais, ainda antes do findar da guerra. Era, porém, uma reacção de tipo meramente pessoal. Isto é: tinha por conteúdo a esperança na acção de um só homem, excepcional é certo, mas um só homem, sem um corpo de ideias estruturado, nem uma organização dotada de um projecto de acção e de uma mística, dos quais ele tivesse apenas a alavanca do comando.
Com a morte de Sidónio sucedeu inevitavelmente ficar apenas o Sidonismo, ou seja a fidelidade saudosa dos amigos à memória de uma personalidade ímpar. Fora disso, havia no País forças com virtualidades de intervenção, como o Integralismo Lusitano, mas este ainda na fase de crescimento, com preocupações mais intelectuais de que realização política.
A grande expressão europeia contra a putrefacção da partidocracia e na tentativa de superar a revolução marxista foi o Fascismo italiano. Quando o comunismo afixou depois o epíteto de fascista em todas as escolas de pensamento ou vectores de acção política, económica, social, ou mesmo simplesmente filosóficas, que não fossem marxistas, embora se afastasse do rigor da expressão e da realidade dos factos, prestava homenagem ao vigoroso impulso nacionalista do partido de Mussolini.
Foram muitos, imensos, os que então o aplaudiram. Importa, porém, distinguir o fascismo dos primeiros tempos, no irromper do seu espírito heróico, do fascismo desesperado do fim, encurralado entre as delirantes ambições germânicas e as da coligação capitalista-sovietista dos anos Quarenta.
O insuspeito Edmond Dumesmil, com todo o seu republicanismo, escrevera ao Rapel de 12 de Setembro de 1923:
«Se as ideias democráticas parecem em decadência desde a guerra, é porque os povos experimentados pela dura escola das trincheiras já não se contentam com a carne podre da ideologia.
Os democratas, ou aqueles que tal se crêem, dão o exemplo funesto da inorganização do esforço, da desordem dos métodos, da anarquia das ideias. Eis porque os povos experimentados pela guerra, ou nascidos para a liberdade no seio da paz, e que sentem a necessidade vital de se refazerem ou de se constituir, procuram, por instinto, a ordem pela autoridade

Foi por aquela mesma época que António Sérgio escreveu no diário A Pátria, de Nuno Simões, um artigo que veio a ser esquecido, tanto por ele próprio - que esqueceu, coitado, tanta coisa! - como pelos seus companheiros de antifascismo.
Nesse artigo, intitulado Fascismo e Primo-de-Riverismo, comentava ele o golpe de Estado de Primo de Rivera, que pouco antes sacudira a Espanha, estabelecendo uma ditadura que durou mais de seis anos. Era um mau exemplo para a turbulenta democracia portuguesa. Falava-se já muito, entre nós, na necessidade de uma ditadura militar, e o grupo da Seara Nova, alarmado, publicaria em Novembro daquele ano uma carta aberta ao Presidente da República, Teixeira Gomes, recentemente eleito, na qual denunciava o perigo desta ditadura. Um mês depois, diga-se de passagem, António Sérgio era nomeado ministro da Instrucção, lugar onde não conseguiu por sinal aguentar-se mais de dois meses.
Mas voltemos ao artigo de Sérgio, que é do teor seguinte:
"Na Espanha a revolução, uma vez senhora do Estado, decreta a criação do somaten nacional; na Itália, um somaten nacional, espontaneamente organizado nas entranhas do país, faz a revolução; na Itália a revolução tem por símbolo um feixe de varas, que um vínculo uniu, colocando-lhe ao meio a machadinha; na Espanha não houve varas, nem o vínculo para as unir; tão-só o machado, que por sinal é uma espada; na Itália vemos uma árvore que saiu de um germe na terra mãe, onde criou suas raízes, para depois subir, subir, subir, até dar um dia como fruto o governo de Mussolini; na Espanha surge repentinamente um fruto artificial, espetado numa espada, que depois procura lançar para a terra as raízes que não teve; o fruto dita, por decreto, a criação das suas raízes.
Está nisto, supomos nós, a diferença essencial dos dois movimentos, e a imensa inferioridade do espanhol em relação ao italiano.
Em Itália, o movimento foi moral, social, nacional, criado com espírito, com coração, com generosidade, com esto, com fraterna elevação de ideias; houve clara inteligência e sentimento fervorosíssimo. E em Espanha?
Em Itália (por outras palavras) há verdadeira religiosidade, larguíssima nobreza de pensamento. Eis aqui a jura dos 15.000 fascistas de Placença:
"Pelo sangue dos nossos 2.000 mártires, que invocamos como testemunhas e juizes dos nossos actos, nós, os Camisas Negras de Placença, juramos que durante um ano não usaremos em nossas pessoas nenhum oiro, prata, ou quaisquer metais ou pedras preciosas. Trabalharemos fervorosamente sem salário pelo bem da nossa Pátria. Daremos todos os nossos ornamentos supérfluos para um fundo destinado a custear obras que tenham por objecto a bondade, a civilização, a beleza, o melhoramento cívico."
Ideias positivas, clara e concretamente concebidas, atmosfera de generoso e religioso sentimento: tais são as condições de uma reforma criadora. Tudo se facilita quando o movimento político sai das ideias positivas claramente concebidas e dos sentimentos positivos religiosamente generosos; tudo se dificulta se o movimento, ao contrário, começa por ser político, na acepção estreita dessa palavra, feita por políticos profissionais (ou por militares) e ainda mais se é vago nas ideias, e principalmente negativista.
A situação de Primo de Rivera, portanto, é muito menos nítida que a de Mussolini. O movimento de Mussolini sai de um movimento nacional; Primo de Rivera tem de criar, encarrapitado no poder, o movimento donde devia ter saído. Mussolini, tendo sido um socialista, tem a noção dos problemas sociais; Primo de Rivera, um puro militar, anda à procura de quem o ensine.
Por enquanto a tarefa é fácil, à altura da inteligência de um contínuo: verificar se todos os funcionários comparecem; se os há em excesso, substituir vereações por comissões, acusar os políticos de imoralidade, etc.: coisas que exigem coragem, tesoura, força, mas que se podem realizar sem inteligência e sem saber. Em suma: a parte negativa da obra. Útil e louvável, sem dúvida nenhuma, mas fácil e negativa. Ora isto não basta; o pior é que não basta. A Espanha necessita de uma obra positiva e criadora. O problema é se Primo de Rivera, quando a parte negativa estiver pronta, terá já reunido em torno de si aquela porção de pensamento claro, de ideias positivas, de competências técnicas, de sentimento religioso com que contou e com que conta o ditador italiano. Os gentiles de Espanha, por enquanto, parece que não são dos riveristas. Aí vejo eu a dificuldade.
Se volvermos de Espanha os nossos olhos para o problema cá da casa, verificaremos que Primo de Rivera (se me não engano, o que é possível e até provável) se parece com Sidónio Pais, estando arriscado, portanto, a cair no charco de incompetência em que foi resvalando, desde princípio, o Rivera português: Mussolini, porém, não se parece absolutamente nada com o que tem aparecido em Portugal - não dizemos pela sua pessoa, o que para o caso menos importa, mas no movimento de que brotou. Existe (dizem) quem queira fazer por cá o que se fez na Itália e se fez na Espanha. Distingamos. O que se fez na Espanha, creio eu, seria possível em Portugal, afora os óbices acidentais; o que se fez na Itália, não. Por outras palavras: em Portugal há pessoas como Primo de Rivera, e acaso também como Mussolini (concedamo-lo); há generais, capitães e soldados, como os de Espanha; mas nada que se pareça, por enquanto, com os Camisas Negras do italiano.
That is the question."



Barradas de Oliveira A Rua», n.º 220, pág. 19, 28.08.1980)

"L’homme cet inconnu"

Alexis Carrel foi Prémio Nobel da Medicina em 1912.
A Academia Sueca honrou com isso os trabalhos do ilustre professor francês (também com nacionalidade americana, o que é menos conhecido), nomeadamente sobre a sutura dos vasos sanguíneos e a recolha de tecidos, que fazem dele um pioneiro de toda a cirurgia, e sobretudo das técnicas de transplante de órgãos.
Mais tarde, no ano de 1935, Alexis Carrel publicou um livro que gozou logo de grande notoriedade, e ao longo das décadas seguintes teve edições sucessivas, tornando célebre o autor.
O livro em causa, “O Homem esse desconhecido”, desenvolvia as sua reflexões sobre o homem, a ecologia, a hereditariedade biológica, a ideia de selecção, além do mais.
Passados os tempos, o livro caiu no esquecimento.
Entretanto, o cientista e professor de Medicina, que foi também um dos mais famosos convertidos ao catolicismo numa época de conversões célebres, ficou com o seu nome em quarenta ruas e hospitais de múltiplas cidades francesas, em pública homenagem ao seu trabalho de cientista, de professor, e de médico nos hospitais franceses.
Há uns tempos, os comissários políticos da esquerda bem pensante descobriram o livro outrora famoso e depois esquecido. E as concepções sociológicas e antropológicas de Carrel mereceram severa reprovação – não são nada correctas, politicamente falando.
Daí nasceu uma frenética campanha de apagamento da memória, com manifestações, comissões, petições, abaixo-assinados, e toda a costumeira parafernália das encenadas indignações: o nome de Alexis Carrel tem que desaparecer das ruas e hospitais franceses, e o autor deve ser para sempre sepultado no esquecimento.
Estabelecida a lista e fixada a agenda, a depuração avança. Tremendo perante as imposições do politicamente correcto, as instituições foram cedendo uma a uma.
Naquele afã tão característico de reescrever os nomes das coisas, até agora vinte e duas cidades desbatizaram ruas e hospitais, retirando o nome de Alexis Carrel. A mais recente limpeza foi o nome do Hospital de Compiégne, onde Carrel foi director e onde a sua acção durante a guerra salvou milhares de vidas.
Conto isto para o caso de algum leitor encontrar por aí algum exemplar do livro maldito, ou saber de alguma biblioteca que o tenha: tire fotocópias, guarde, esconda, não diga a ninguém. Big Brother está atento e vigilante.


segunda-feira, outubro 20, 2003

Inspirada inspiração

Senhoras e senhores, caríssimos amigos: é bem verdade! Em cada português habita um poeta! E, inopinadamente, também eu fui tocado pelas musas.
Aqui fica à apreciação geral o fermoso fruito da minha inspiração.

O projecto

Chego agora à conclusão
Que neste mercado blogal
O meu blogue pobrezinho
Não é concorrencial.

Sem uma remodelação
Para mudar a fachada
Não passa da cepa torta
Não ganha prémios nem nada.

Já tenho um projecto porreiro
Aqui em cima da mesa
O que não tenho é dinheiro
Para enfrentar a despesa.

Mas não desisto no caminho,
E nem fico atrapalhado,
Que eu até tenho um padrinho
Muitíssimo bem situado.

E o tal projecto a final
Irá merecer, não duvido,
Após aprovação estatal,
Subsídio a fundo perdido.

E o meu blogue renovado
Enfim moderno e actual
Vai dominar o mercado
Na nossa aldeia blogal.

Vai ser um defensor certo
Dos princípios liberais
Mercado livre e aberto
Sem distorções desleais.

E, palpita-me o coração,
De cabeça feita aos louros,
Conquista a consagração
Dos prémios do Mata Mouros!

domingo, outubro 19, 2003

Afinal em que ficamos?

Peço mil perdões pela ordinarice, mas hoje excepcionalmente o meu blogue vai baixar o nível – até ao socialismo vulgar.
Isto por força do caso tão falado de terem vindo a público as gravações das conversas em que o chefe máximo dos socialistas proclamou, solene e enfático, “tou-me cagando para o segredo de justiça”.
Na sequência dessa divulgação, emitiu o Partido Socialista um comunicado indignado onde reclama contra a violação do segredo de justiça e apela ao rigoroso respeito por este.
Naturalmente que fiquei com dúvidas quanto à verdadeira posição dos socialistas sobre o segredo de justiça.
Afinal cagam ou não cagam?
E se eles cagam ... porque não hão-de cagar os outros? Ou há moralidade ou cagam todos!
Ou será que querem cagar sozinhos? Eles cagam ... e os outros ... respeitam?!!
Ou ainda, derradeira hipótese, cagam ... mas não queriam que se soubesse?

Vinícius de Moraes

Como bem lembrou o “Nova Frente”, o poeta Vinitius de Moraes (foi batizado com t e não com c) nasceu a 19 de Outubro de 1913.
Faria portanto 90 anos no dia de hoje, se não tivesse partido num dia já remoto do Verão de 1980.
Vinicius, como escolheu chamar-se, alcançou a fama universal com a bossa nova – quantas voltas ao mundo terá dado a sua “Garota de Ipanema”!
Mas para além das glórias musicais foi realmente um extraordinário cultor da arte poética, dedicando-se especialmente à difícil arte do soneto – na senda de Camões, de Bocage, de Florbela e de Sardinha, exímios sonetistas.
Para não ficar atrás do “Nova Frente” assinalo este dia como um soneto de Vinicius, creio que um dos mais perfeitos, e mais conhecidos.
O “Soneto da Fidelidade”, que o poeta fez para sua primeira mulher, Tati (depois teria muitas outras, pois também nisso se esmerou até ao exagero).


De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa (me) dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

sábado, outubro 18, 2003

Missa de Domingo

Retribuindo a vénia ao “Católico e de Direita”, publicito também aqui o horário das missas de rito tradicional latino-gregoriano marcadas para este Domingo, 19 de Outubro:

Em Lisboa: às 11 horas, no Priorado São Pio X
Estrada de Chelas, 29-31 (junto à Avenida D: Afonso III)

Em Perolivas, Reguengos de Monsaraz: às 18. 30 horas, na Capela de São José
Rua do Forno, n.º 25, em Perolivas

Nuno Rogeiro

Tendo falado outro dia de “A Rua”, outras lembranças inevitavelmente me acudiram. Na mesma altura em que comecei a frequentar o jornal e conheci pessoalmente Múrias, como já contei, conheci também Nuno Rogeiro.
Este por tríplices razões: uma era a Faculdade de Direito de Lisboa, outra era o jornal, outra o Movimento Nacionalista.
O Nuno, transbordante de talento e de energia irreverente, não era já propriamente um adolescente; mas não sei porquê sempre que me recordo dele vem-me à ideia a descrição que outro escreveu para José António: “um adolescente luminoso”.
Na Faculdade de Direito era ele a estrela incontestável do diversificado universo nacionalista; e não se pense que era a única! Tenho eu aqui à mão um exemplar de uma lista de candidatos à Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa bem demonstrativa disso.
A lista N, lista dos estudantes nacionalistas e independentes (“ontem como hoje, pelo Portugal de sempre!”), tinha como candidato a Presidente o mencionado Nuno Rogeiro (que então era já membro da assembleia de representantes da escola) e como candidatos à Direcção os estudantes Vítor Luís (o único que abandonaria o curso de Direito), Henrique Ferreira Mendes, José Filipe Nogueira, Duarte Oliveira Rocha, Teresa Amorim Girão (a maravilha fatal da nossa idade...), Paulo Teixeira Pinto, Pedro Romano Martinez, e Clemente Rogeiro.
Para outros cargos (Mesa da Assembleia Geral e Conselho Fiscal) eram ainda indicados José Lúcio, Pedro Coelho, Sérgio Sodré de Castro, Rui Oliva Neves da Silva, Armindo Real Nunes, Pedro Schiappa Ferreira.
Como apoiantes, sem integrar a lista, havia ainda Carlos Blanco de Morais, João Gabriel Gonçalves Ferreira, José Vilela, Nuno Portela, Armando Costa e Silva, Pedro Taborda Nunes de Oliveira, João Carlos Rocha ...
O itinerário pessoal do Nuno iria levá-lo para uma intensa actividade jornalística, que é por demais pública, iniciada então nas páginas de “A Rua”, depois em “O Dia”, mais tarde, e muito, em “O Diabo”, finalmente, anos depois, em “O Independente”. Para além do estatuto de comentador vedeta da nossa televisão, alcançado por alturas da guerra do Golfo, e que nunca mais perdeu.
No suplemento do semanário “O Independente” já o Nuno escreveu há anos a sua pessoal evocação das memórias da FDL, desde a altura da entrada, no pesado ambiente de vermelho carregado onde só havia lugar para a disputa entre o PCP e o MRPP, até à iniciativa libertadora do Movimento Independente de Direito e posteriormente à estruturação das juventudes partidárias, com a consequente entrada em cena do Movimento Nacionalista juntamente com o que restava do MID.
Paralelamente tem o Nuno mantido também actividade docente, em diversas escolas superiores, e frutuoso labor ensaístico, de que resultaram já diversos livros publicados.
Dos princípios jornalísticos recordo bem o apreço de Manuel Múrias. Irritava-se este com um tique do Nuno de então (com o tempo desapareceu!), que antecedia cada texto seu de epígrafes e citações, antes de entrar propriamente a dizer ao que vinha. O senhor Director lia, e logo rabujava impaciente: “já viu isto? Só metade do artigo é que é dele!”
Mas logo acrescentava que ficava irritado porque nada daquilo era preciso: dizia ele sempre que o Rogeiro era um dos homens mais inteligentes da novíssima geração. Muitos anos depois, nas nossas conversas do Chiado, o Múrias desempregado e abatido dos anos do fim fazia-me a mesma apreciação. A separação de rumos, que a vida impusera, não o tinha feito mudar de opinião, como o azedume tantas vezes faz.

Intelectuais

"Um intelectual maneja conceitos que não lhe pertencem, vive das ideias dos criadores; é o que é o técnico no mundo da ciência. E ele é que domina num mundo em que deviam ser os criadores a dominar" (Vintila Horia, in Viagem aos Centros da Terra).

As guerras da droga

Em 2002, a produção mundial de ópio, utilizado para o fabrico de heroína, esteve concentrada no Afeganistão, segundo um relatório das Nações Unidas sobre as tendências do comércio de drogas publicado, sexta-feira, em Dublin.
A produção mundial de ópio diminuiu globalmente perto de 25 por cento, sendo setenta e seis por cento do total produzidos no Afeganistão, segundo o relatório da ONU.
O documento salienta uma queda na Europa ocidental, relativa aos últimos anos, mas um crescimento acentuado no Afeganistão, o que conduziu à expansão da venda de heroína no Cáucaso, Ásia Central, Rússia e Europa do Leste.
O relatório das Nações Unidas foi publicado a propósito de uma conferência de dois dias na capital irlandesa, uma iniciativa do Grupo de luta contra o tráfico de droga do Conselho da Europa.
De 1998 a 2002, a produção de ópio decaiu 40 por cento na Birmânia e no Laos, uma tendência que se confirmou em 2003, de acordo com o mesmo texto.
O Afeganistão tinha-se tornado o primeiro fornecedor de ópio ilícito do mundo nos anos 90, então com cerca de 70 por cento da produção mundial, ficando à frente da Birmânia, com 22 por cento, e de Laos, com três por cento. Em 1999 e 2000 a produção local teve o seu auge, com 4600 e 3300 toneladas respectivamente.
No entanto, a colheita de 2001 foi impedida pelos talibans, então no poder, que resolveram irradicar a cultura, proibindo-a e queimando os campos de papoilas, tendo em consequência a produção afegã caído então para 185 toneladas.
Devido a essa actuação, a colheita mundial de ópio passou de 5764 toneladas em 1999 e 4691 toneladas em 2000 para 1626 em 2001, o que levou à subida em flecha dos preços no Afeganistão.
Derrubados os talibans, logo no ano de 2002 o Afeganistão voltou a ser o primeiro produtor mundial de ópio. A sua produção está estimada entre 3200 a 3600 toneladas, numa superfície cultivada de 74 mil hectares, segundo um estudo da Comissão das Nações Unidas para o Controlo da Droga e Repressão do Crime.
Muito se fala em petróleo para explicar opções políticas e estratégicas; mas não seria descabido analisar a importância do factor assim sumariamente referido nas evoluções políticas destes últimos anos naquela região do mundo.

sexta-feira, outubro 17, 2003

Desaforos

A comunicação social embirra visivelmente com o Senhor Presidente da Câmara de Ourique. Mal se aproxima um fim de semana e não há rádio ou televisão que não se ponha a falar na "bicha do IP 2".

Festival de Cinema em Portel

Portel recebe, durante toda a próxima semana, de 20 a 25 de Outubro, o I Festival de Cinema «O Castelo em Imagens», certame que conta com a direcção de Lauro António.
A edição de 2004, segundo admitiu o cineasta, poderá contar com inéditos a concurso.
De acordo com Lauro António, que apresentou o festival no final do seminário realizado em Portel para assinalar o «Dia dos Castelos», o festival contará com uma programação (quatro filmes diários) para todos os públicos.
As manhãs serão dedicadas ao cinema de animação, sendo que as sessões são abertas às escolas do Concelho.
A programação do festival inclui produções recentes, como «Matar o Rei», realizado por Mike Barker (2003), mas também Nosferatu, de F. W. Murnau (1922).
«O cinema tem abordado o castelo sobre todos os aspectos, dos mais concretos, em rigorosas reconstruções históricas, aos mais utópicos devaneios de quimeras apenas sonhadas. Por isso se pensou, e se começa agora a concretizar, a ideia (utópica) de um festival de cinema dedicado ao castelo, numa das terras portuguesas onde o castelo domina a paisagem. Recuperar o castelo como passado e projectá-lo como futuro, repensar a ideia de castelo como aventura e mito, eis o projecto. Nele cabem todas as utopias. Aqui fica um primeiro ensaio, onde o castelo se vislumbra nos contos infantis, onde se ergue como elemento essencial da aventura humana, onde se prolonga por várias avenidas da nossa existência, ou onde se perfila como presságio nocturno de maldições indizíveis. Entrem no castelo. Conquistem estas ameias que agora se abrem aos vossos desejos. Venham visitar esta torre de menagem que é o próprio cinema, fábrica de sonhos e pesadelos, conscientes e inconscientes», escreve Lauro António na nota introdutória do festival.

Modas

Querermos ser do nosso tempo é estarmos já ultrapassados (Eugéne Ionesco).

Francisco Bugalho, o poeta de Castelo de Vide

Poeta e lavrador, exerceu durante anos também as funções de conservador do registo predial de Castelo de Vide. Natural do Porto, adoptou como suas a terra e as gentes em que viveu a maior parte da sua vida.
Foi pai de outro poeta hoje esquecido, Cristóvam Pavia (de seu nome de baptismo também Francisco Bugalho), de pendor expressionista, que a seu tempo teve o apreço das tertúlias literárias lisboetas e que tal como o pai veio a falecer muito novo.
Três foram os livros que publicou em vida - Margens (1931), Canções de Entre Céu e Terra (1940) e Paisagem (1947) - que constituem, dentro da produção poética do grupo da revista “Presença”, a que pertenceu, alguns dos espécimes em que melhor se alia um equilibrado sentido de modernidade a uma profunda apreensão de múltiplos valores do nosso lirismo tradicional.
Faleceu em Castelo de Vide, em 1949, com apenas quarenta e quatro anos de idade. Os três livros que publicou em vida foram postumamente, em 1960, reunidos num único volume, intitulado Poesia.
Nessa obra, com prefácio de José Régio, constam ainda alguns poemas inéditos e outros até então dispersos.
Na sua poesia estão presentes as várias actividades da vida agrícola e as diversas figuras típicas do microcosmo rural alentejano - carreiros, vaqueiros, mateiros, azeitoneiras, ceifeiras, corticeiros.
Eis uma amostra.


GANHÃO

Minha junta vai puxando
Morosa, lenta, cansada;
Que a leiva que vai virando,
vai ficando bem virada

Passam dois corvos grasnando.
E à minha volta mais nada ...

A relha que rasga a terra
Rasga e beija docemente.
- Breve se acaba esta guerra
Só de sonhar a semente

Nos vales de terra molhada
Piam abibes em bando

E a leiva sobe na aiveca
E vai ficando tombada,
Ao seu feitio moldada,
Sobre outra leiva já seca.

Minha junta vai puxando
Pesada, lenta, cansada ...

Ao fundo, no horizonte
Só um sobreiro pasmado;
Nem um ruído de fonte,
Nem um chocalho de gado ...

Nem algum cantar perdido
De certas horas felizes.
Só canta no meu ouvido
Este estalar das raízes.

A leiva que vou virando
Vai ficando bem virada ...

quinta-feira, outubro 16, 2003

Digressão

Percorre-se a blogosfera passo a passo, e há momentos em que parece que estamos numa excursão à Bulgária: só encontramos bulgaridades.

Manuel Bandeira

Sempre achei inspirada e saborosa a designação de Manuel Bandeira como “o São João Baptista do modernismo brasileiro”. Na verdade, anuncia o que há-de vir, sem o ser ainda; tão próximo no tempo de Olavo Bilac, que até ao fim apura a forma e esculpe a frase, elevando à perfeição o parnasianismo que em tempos desposara, Bandeira opta por se libertar dos espartilhos das formas e parte à descoberta de novos ritmos, novos sons e novas cores.
Deixou-nos muito para agradecer, este Bandeira bandeirante; a poesia que o seguiu, como um estandarte; e o seu afecto, que nunca se afastou das origens lusitanas.

Portugal, meu avôzinho

Como foi que temperaste,
Portugal, meu avôzinho,
Esse gosto misturado
De saudade e de carinho?

Esse gosto misturado
De pele branca e trigueira
- Gosto de África e de Europa,
Que é o da gente brasileira?

Gosto de samba e de fado,
Portugal, meu avôzinho,
Ai Portugal que ensinaste
Ao Brasil o teu carinho!

Tu de um lado, e do outro lado
Nós... No meio o mar profundo...
Mas, por mais fundo que seja,
Somos os dois de um só mundo

Grande mundo de ternura,
Feito de três continentes
Ai, mundo de Portugal,
Gente mãe de tantas gentes!

Ai Portugal de Camões,
Do bom trigo e do bom vinho
Que nos deste, ai avôzinho
Esse gosto misturado,
Que é saudade e que é carinho

Manuel Bandeira

Pensamento

Pensar contra o nosso tempo é um acto de heroísmo. Mas dizê-lo é um acto de loucura.
(Eugéne Ionesco)

quarta-feira, outubro 15, 2003

Ein Wort...

Traduzir é trair? Não penso tal; mas quase sempre é recriar. Traduzir mesmo, não existe. Cada língua tem uma dimensão onde é única, uma alma que só a ela pertence, e aí não tem equivalente em qualquer outra.
Em poesia muito mais ainda. Quem já experimentou sabe do que falo.
Veja-se o seguinte poema de Gottfried Benn, em duas versões portuguesas feitas uma por Jorge de Sena e outra pela escritora brasileira Viviane de Santana Paulo. Ambas notáveis. E numa e noutra, em apenas oito versos, a forte marca pessoal do poeta que reescreveu.

Ein Wort, ein Satz -: aus Chiffern steigen
erkanntes Leben, jäher Sinn,
die Sonne steht, die Sphären schweigen
und alles ballt sich zu ihm hin.

Ein Wort - ein Glanz, ein Flug, ein Feuer,
ein Flammenwurf, ein Sternenstrich -
und wieder Dunkel, ungeheuer,
im leeren Raum um Welt und Ich

*
Uma palavra vem - dos signos brota
apercebida vida, abrupto senso,
o sol detém-se, esferas são silentes,
e tudo se concentra à sua volta

Uma palavra - brilho, voo, fogo,
língua de chama, estrela cadente
- e a treva monstruosa que regressa
no vácuo espaço entre mim e o mundo.

(Tradução de Jorge de Sena)

*
Uma palavra, uma frase - jorra dos signos
vida reconhecida, abrupto sentido,
o sol nasce, esferas em silêncio
e tudo choca-se nisso.

Uma palavra, um brilho, asa e fogo,
uma faísca em chama, uma estrela no breu -
e de novo o escuro, monstruoso,
no espaço vazio entre o mundo e eu.

(Tradução de Viviane de Santana Paulo)

LÁPIDE

Luís Vaz de Camões.
Poeta infortunado e tutelar.
Fez o milagre de ressuscitar
A Pátria em que nasceu.
Quando, vidente, a viu
A caminho da negra sepultura,
Num poema de amor e de aventura
Deu-lhe a vida
Perdida.
E agora,
Nesta segunda hora
De vil tristeza,
Imortal,
É ele ainda a única certeza
De Portugal.

Miguel Torga (Coimbra, 11 de Janeiro de 1980)

terça-feira, outubro 14, 2003

Os barbos da Foz do Sabor

Por ter falado, no postal anterior, em Francisco José Viegas - vejam só os mistérios da mente! - vieram-me à boca umas sensações gustativas que vêm das profundezas da memória.
Explica-se a coisa por aqui há uns anos, quando eu ainda comprava jornais, ao Domingo, ter deparado com uma crónica em que o dito Viegas dissertava, com a alma cheia, sobre umas petiscadas in situ.
Fiquei preso ao papel, saboreando a experiência. E revivendo. Pois saibam que nunca mais me passou a recordação dessa crónica.
A Foz do Sabor é um desses locais mágicos, entre a terra e o céu, em que a marca da Criação se sente a cada olhar.
Ali o riozinho que atravessa as penedias do planalto espraia-se e espreguiça-se, descansando antes de se entregar nos braços do gigante.
O local é frequentado essencialmente por pescadores, caçadores, e outros amantes da petisqueira. Entretanto nasceu amesendamento para tal.
Dominam, porém, esmagadores, o silêncio e a paisagem.
Quando li o artigo tinha eu já em arquivo de vida umas valentes soalheiras que passei por ali, cismando na má sina que por insondável desígnio levava os peixinhos a fugir de mim, tanto mais quanto eu teimava em lançar-lhes isco e engodo.
Os barbos e os escalos eram teimosos, fosse lá por embirrarem comigo ou por lhes terem dito que eu era alentejano, e refugiavam-se todos lampeiros no anzol prestimoso do senhor Leitão, meu inestimável companheiro, enchendo-lhe o bornal, perante o meu olhar perplexo e ciumento.
Mas o final compensava: fritinhos, marchando ao ritmo de um vinhito fresco e saltitante, com uma saladinha a condizer, e sentia-me que nem o Jacinto em Tormes.
Era isso também o que dizia, com muitíssimo mais talento, o Francisco José Viegas, na tal crónica que não guardei mas que me ficou guardada.
O que ele nunca papou foi um butelo com cascas que me foi dado a comer certa vez em Peredo de Bemposta – porque aí até a prosa mais refinada não pode dar senão um cheirinho.

Domingos Monteiro

O vale do Douro, para além de bons vinhos, também produz com frequência grandes escritores.
Mesmo agora, temos aí vivos, activos e pujantes, António Barreto e Francisco José Viegas, que bem podem apresentar-se como frutos do Douro.
Mas quem suba o rio pode evocar Teixeira de Pascoaes, Amândio César, João de Araújo Correia, Miguel Torga ... sei lá eu!
Mesmo lá nos confins do Alto Douro ainda pode recordar-se Guerra Junqueiro, Campos Monteiro, Trindade Coelho, já que o Freixo, Moncorvo ou Mogadouro são também paisagens dominadas pela presença esmagadora do grande rio.
Ora vem esta conversa por em 6 de Novembro de 1903 ter nascido em Barqueiros um extraordinário cultor da portuguesa língua, o contista, novelista, romancista, dramaturgo e poeta Domingos Monteiro (curiosamente também exemplo do hospital de letras que a Medicina portuguesa tanta vez parece: era médico, tal como Torga, Namora, Lobo Antunes, Júlio Dinis, Taborda de Vasconcelos, e tantos outros).
Estamos portanto em pleno centenário do autor de “O Mal e o Bem”, “Contos do Dia e da Noite”, “A Traição Inverosímil”, “ O Caminho para Lá”, “ Histórias Castelhanas”, “Histórias deste Mundo e do Outro”, “Enfermaria, Prisão e Casa Mortuária”, “O Primeiro Crime de Simão Bolandas”, “O Sobreiro dos Enforcados”, e um larguíssimo et caetera.
Ao que parece a Câmara Municipal de Mesão Frio não esqueceu o acontecimento. O meu amigo António Cândido Franco também não. Mas, quiçá pelo meu isolamento, não me tenho dado conta de outros sinais.
Fosse o homem um ignoto húngaro, neo-zelandês ou boer, a escrever em inglês de vulgata, e a nossa estupidentzia até salivava como o cachorro de Pavlov, ao sentir o centenário.


Língua portuguesa

Minha adorada língua portuguesa,
Tão rica em si mesma e tão fecunda,
Pão sem fermento com que como à mesa
E alegria vital que ainda me inunda,

Desde o bárbaro latim, que vou seguindo
Teu caminho de som, abrindo às almas
Uma nova harmonia singular,
Tão doce e pura ao mesmo tempo que eu
Por ti desço ao inferno e subo ao céu
Pela graça de ouvir e de falar.

Sigo-te, sim, mesmo através da História,
A que só tu pudeste dar sentido,
Porque só tu conservas a memória
Do que já foi e ainda há-de ser vivido.

Tu que abriste em flor nos cancioneiros
Nas queixas doces dos cantares de amigo,
Inventaste essa porta enfeitiçada
Que separa ou une os corações
E que deste os teus frutos verdadeiros
Com Gil Vicente e os versos de Camões,

Língua de blasfémias, de ameaças,
De musicais hipérboles sentidas,
Que rasto singular por onde passas
E que estranho sinal deixas nas vidas!

Tu que atravessaste os desertos
E os mares bravios nunca navegados,
Com palavras que são braços abertos
E que nas bocas rudes e agressivas,
Feitas para gritar e p'ra morder,
Puseste o enxame das palavras vivas
Com que te falam e amam sem saber.

Domingos Monteiro

segunda-feira, outubro 13, 2003

Casticismos

Sempre oportuno e actual, o “Nova Frente” defende que se adoptem os termos “blogue” e “postal” para substituir os ingleses “blog” e “post”.
Também me parece acertado, visto que, como ele explica, uma língua é um organismo vivo e evolutivo, que em cada dia se confronta com a necessidade de adaptação a novas realidades, umas vezes criando outras importando.
E melhor é a adaptação criteriosa que a resistência escusada.
Ponto é que haja bom senso e bom gosto.
Aqui há uns anos a academia espanhola decretou que era de usar "vikingo" em vez de "viking"; sei disso porque num dos seus livros Jorge Luís Borges comenta o facto com ironia ácida, dizendo que não consegue imaginar-se a ler romances de Kiplingo ...
E a propósito ocorre-me uma recordação pessoal.
António Lopes Ribeiro adorava analisar e discutir estas coisas das palavras, a etimologia, a grafia, a semântica, os estrangeirismos ...
Uma noite, com o seu proverbial bom humor, surgiu com uma mão cheia de alterações ao português corrente, de cuja bondade pacientemente tentou convencer os presentes.
Confesso que já não me lembro das novidades que propunha para substituir uma data de estrangeirismos que trazia elencados; fixei, não sei porquê, que ele não gostava da palavra “pisca-pisca” (que nem é estrangeirismo) e pugnava pela sua substituição por “tremeluzim”, termo que encontrara não sei onde e que achava lindo; e acima de tudo fixei a discussão final, quando se chegou à horrorosa palavra francesa “soutien”, que ab initio todos concordavam que era imperioso banir.
Mas a teimosa resistiu; a certa altura houve um consenso que apontava para a palavra “parapeito”, que se afigurou apropriada; mas ... hélas! a dita cuja está definitivamente comprometida com outras significações.
E “suporte”, ou “sustento”, com maior proximidade literal, também não podiam ser mobilizadas para este efeito.
Perante o fracasso, ainda houve quem alvitrasse “pára-bolas”. Mas, embora desconsoladamente, foi impossível deixar de reparar que não era de muito bom gosto.
E lá ficou “soutien”.