quarta-feira, março 31, 2004

Conversas à Direita?

Já que querem divulgação, então lá vai.
"Na próxima quinta-feira, dia 1 de Abril, pelas 21h, no Auditório da Biblioteca Municipal do Vale da Amoreira, Moita, terá início o ciclo de conferências "Conversas à Direita".
Patrocinadas pela Comissão Política Distrital do CDS-PP/Setúbal, e organizadas no local pelas respectivas Comissões Políticas Concelhias, estas conferências são abertas à população e procuram estimular o debate político entre militantes, simpatizantes e população em geral. Cada uma das conferências terá um orador convidado. Nesta primeira, será palestrante o Prof. Nuno Rogeiro e o tema não poderia ser mais actual: o terrorismo!
"
Pronto: ficam a saber. O terrorismo em debate no Vale da Amoreira! Está a parecer-me que aqui há Dantas...

Jacarandás

Por ter falado em jacarandás, ofereceu-me o BOS outro poema de Rodrigo Emílio inspirado na visão das nuvens lilazes que adornam o céu da sua rua natal (o poeta era um beirão nascido em Lisboa).
Vou já postá-lo, antes que outrem se antecipe... eu cá pelos meus leitores sou assim - dou tudo!

Ó crua
luz vegetal
da minha rua
natal...

Contemplo os jacarandás,
que me olham com apêgo...
(Que negro
carrego
traz,
às costas, esse mancebo...!

A flor dos jacarandás
cobre-o de paz
e sossego...)

Tudo o que fui, de rapaz
sem ter cura nem conserto,
de boémio, ferrabrás
e estoira-vergas faceto:

tudo o que fui, de rapaz,
aqui jaz,
quando aqui chego...

No meio deste lilás,
o Sol dá comigo em cego.

Que sossego
tu me dás,
túnel de jacarandás...!

Que véu de paz
e sossego!...


Rodrigo Emílio
(Lisboa, aos 19 dias do
mês de Júlio de 1997).

Afinal Le Pen tinha razão!

"Na história da V República Chirac ficará por certo como um dos presidentes mais desastrados e mais prejudiciais, não só para os interesses da França como para os interesses da construção europeia. A sua longa carreira política mostra que é um homem de imensa habilidade e nenhuns princípios. Pior: que encarna alguns dos piores hábitos do nepotismo à francesa, para não falar da mais crua corrupção. Olhando para o país e para o Mundo do alto do Palácio do Eliseu, como um "roi soleil» retardado e, sobretudo, enganado no tempo e no lugar, Chirac tem sido um Presidente errático nas políticas, incoerente no discurso, capaz da mais baixa política ou da arrogância mais brutal."
Esta descrição, que é sem tirar nem pôr aquilo que repetidamente tem sido dito e proclamado vezes sem conta por Jean Marie Le Pen, não foi desta vez feita por ele: quem a assina é o director do "Público", José Manuel Fernandes.
O artigo divertiu-me por vários motivos: desde logo porque o retrato, no que diz respeito a corrupção, nepotismo, habilidades, carreirismo, baixa política e métodos duvidosos, cai muito bem a Chirac mas também calha como uma luva a Mitterrand, o artista que em tempos até teve a arte suprema de encomendar um atentado contra a sua pessoa, e cuja camarilha ainda agora todos os dias surge envolvida em mais um escândalo; ou mesmo a Giscard, o presidente dos diamantes africanos. Não é portanto nada de novo naquela cadeira...
Mas o gozo maior é realmente recordar a campanha das presidenciais: toda a classe política francesa, e concretamente toda a esquerda, andou pelas ruas a berrar que antes queria um ladrão que um facho... "plutot un escroc qu'un facho..."
Era realmente esse o slogan! E assim foi: conseguiram que o eleitorado votasse em oitenta por cento no ladrão que lhe indicaram. O José Manuel Fernandes descobriu agora quem o homem é.

Mais Évora

Finalmente, o marasmo em que tinha caído a blogosfera eborense parece ter sofrido um valente abanão: o Manoelinho voltou à cidade!
Vejam e acompanhem o "Mais Évora", um novo blogue que se apresenta como um livro de reclamações, opiniões, sugestões, estórias, rumores e balelas - sempre com ÉVORA em fundo...
E cadê os outros? Vão ficar para aí parados a olhar?

A formatação de um país

Continuando no mesmo rumo, li também com atenção e com gosto o que escreve Teresa Martins de Carvalho, fiel à "Lusitana Antiga Liberdade".
Gosto das reflexões, gosto do estilo... e já agora, mesmo sem vir a propósito, confesso que também partilho um antigo fascínio por jacarandás. Ah, e não posso deixar passar a ligação a Gavião - folguei de saber que D. Teresa Martins de Carvalho é e continua a ser, afinal, uma alentejana do Gavião. Pese embora a sua vivência lisboeta... talqualmente acontecia com José Pequito Rebelo. É assim ou não é?
Já agora, para terminar, outra confissão: quando falo em Pequito Rebelo lembro-me logo do Eng. Vaz Pinto, que também já não está entre nós. E quando me vem à memória José Vaz Pinto, e o Gavião, lembro-me logo do orgulho com que ele gostava de evocar aquele episódio da Reforma Agrária que ocupou os noticiários durante uns dias - a saga do gado de Cujancas... Foi um momento que marcou uma viragem, um momento em que se sentiu de súbito que o PCP tinha perdido... Porque não escrever um dia a narrativa desses tempos? Tem a palavra quem os viveu mais de perto.

terça-feira, março 30, 2004

Em que consiste exactamente o perigo espanhol?

Estive a ler um artigo de Henrique Barrilaro Ruas. Como era marca do autor, notável de elevação, lucidez, cultura, inteligência e serenidade. Sobre o perigo que está em nós - a perdição ou a salvação vêm sempre de dentro.
Para ler e meditar - leiam aqui.

Edital do Poeta às portas da morte (a afixar em voz alta)

É preciso que se saiba por que morro
É preciso que se saiba quem me mata
É preciso que se saiba que, no forro
Desta angústia, é da Pátria tão-somente que se trata.

Se se trata de pedir-lhe algum socorro,
O seu socorro vem a estalos de chibata...
E não ata nem desata o nó-cego deste fogo,
Que tão à queima-roupa me arrebata,

A não ser com a forca a que recorro
- E que é barata...

(É preciso que se saiba por que morro,
Enforcado no nó d'uma gravata!)

Presídio deserto ou morro,
Baldio ou bairro-da-lata:
Não importa, lá ao certo, saber onde...
Andar à cata de data...

É preciso que se saiba por que morro,
No meio deste monte de sucata!...

É preciso que se saiba por que morro
- E que és Tu, Pátria ingrata, quem me mata!

João Tilly e as malhas do nosso destino

Estive a ler o João Tilly: numa blogosfera à semelhança do país, entretida a fazer flores, eis um relato impressionante sobre o que mais importa. Para quem não conhece aquela realidade - um arrepio; para quem conhece, a angústia que regressa. Porque a verdade é assim - é aquela retratada nas palavras de João Tilly. Moro em Évora e sei - o sentimento que domina quem precisa de recorrer ao Hospital é o medo. O pavor... O Hospital transformou-se no imaginário público num local onde só deve ir quem esteja de boa saúde - quem já esteja doente não sobrevive de certeza...
É tudo como está no João Tilly. Sei que de pouco lhe vale, mas digo-lhe daqui que ao lê-lo senti o seu sofrimento. Conheço-o. E tenho a certeza que muitos mais se reconhecem na experiência. Coragem, amigo.

segunda-feira, março 29, 2004

Há trinta e cinco anos!

Há trinta e cinco anos, mais uns meses, o meu amigo sulcava os mares, rumo ao Índico, levando nos olhos um cais de Lisboa. Natércia escreveu então:

"São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Via-os chegar, às tardes, comovidos,
nupciais e trementes
do enlace da vida com os sentidos.

Estiveram no meu colo, sonolentos,
Contei-lhes muitas lendas e poemas.
Ás vezes, perguntavam por algemas.
Respondia-lhes: mar, astros e ventos.

Alguns, os mais ousados, os mais loucos,
desejavam a luta, o caos, a guerra.
Outros sonhavam e acordavam roucos
de gritar contra os muros que há na Terra.

São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Nove meses de esperança, lua a lua.

Grandes barcos os levam, lentamente..."


A bordo, os olhos cheios de azul, o meu amigo escrevia:

"Onde esse lenço se casa,
No cais do ocaso, aos que vão,
Há, em suspenso, uma asa,
Há uma asa em cada mão.
E em bando, todas, à uma,
Acenando, em onda, aos seus,
Galgam, patéticas, a espuma,
Por entre a bruma e o adeus.

Imemorial sagração
D'horizontes azulados.
No cúmulo de um cântico de mágoas,
Portugal naval cristão:
Naus como arados
Sobre o túmulo atlântico das águas...

Do areal à embarcação,
Por sonhos não navegados,
Maioral da solidão,
O vento, a favor, dá recados...

- Perguntas, amor, quem são?
- Soldados, amor, soldados.

Sinal de sal, no suão,
A bússola do sol, pela costa,
À contracosta os conduz.
Vão em sombra. E às sombras dão
Uma resposta de luz!


Ontem apagou-se a luz que havia nos olhos do meu amigo. Vai a enterrar, esta terça-feira, em Parada de Gonta.

domingo, março 28, 2004

Rodrigo Emílio de Alarcão Ribeiro de Mello (18-02-1944/28-03-2004)

A dois dedos da madrugada
me adianto
para o camarada
morto - e canto, canto

como quem aponta a espada
ao espaço do próprio espanto!...

Fixar-lhe a face fechada
é agasalhá-lo no manto
do tempo que ele arrecada
e cujo tampo levanto

É calcorrear uma estrada
com memórias a cada canto
entoar a mais bela balada
do desencanto

E não há nada
que valha tanto!

A dois dedos da madrugada
- canto! canto...
Camarada:
Em pranto, canto!

Em Évora

A pensar em Florbela, e n' "a minha cidade, como eu soturna e triste".
"Estou hoje num dos meus dias cinzentos, como diz o nosso escritor; dia em que tudo é pesado e baço como a cinza, dia em que tudo tem a cor uniforme e nevoenta dela, dessa cinza em que eu às vezes sinto afundar o meu destino. Estou triste e vagamente parva, hoje, e no entanto estou na capital do Alentejo; aos meus ouvidos chega o ruído dos automóveis, o barulho cadenciado das patas dos cavalos de luxo, o pregão forte e sensual que é toda a alma de mulher do povo, e por cima disto tudo, a espalhar vida, luz, harmonia, sinto o sol, um sol de fogo, o sol do meu Alentejo forte e sensual como um árabe de vinte anos! Pois tudo me irrita! Que direito tem o sol para se rir hoje tanto? Donde vem o brilho que Deus pôs, como um dom do céu, nos olhos das costureirinhas que passam? Donde vem a névoa de mágoa que eu trago sempre nos meus?!"

Os outros como a nós mesmos

Fiel do culto clandestino da Pátria, deparo-me frequentemente com a patriofobia dos meus contemporâneos. Trago sempre pronta a réplica luminosa de Pinharanda Gomes - se é mandamento maior amar os outros como a nós mesmos, como amaremos os outros se de nós não gostarmos?

Para não esquecer

Porque vivemos enquanto a memória durar, eis as ligações para os sítios onde na rede se preserva o Ser, porque se cultiva a lembrança: o Forum Olivença, a campanha sobre Olivença na net (chamo a atenção para o material disponibilizado, algum dele raríssimo, como é o caso da revista "Olivença"), e o Grupo dos Amigos de Olivença. Enquanto Olivença nos estiver presente, é Portugal que vive em nós.

Somos todos de Olivença

Ah grande Alentejão! Neste Portugal perdido, perante o imenso continente espiritual e metafísico da Pátria, já somos todos de Olivença...

A Florbela

Uma bela página pessoal dedicada a Florbela Espanca, onde é possível encontrar a sua obra poética e muito mais...
Entrai na "Torre de Menagem" - vós, que chorais sem saber porquê...

Mais sobre arte pública e negócios privados

O meu postal anterior teve eco: saliento a atenção do Manuelinho de Évora, e a gentileza da Whiteball, que fez saber que também em Mangualde "numa das principais rotundas se pode ver uma estátua que é uma espécie de homem com mamas e ao mesmo tempo uma mulher com uma bunda enorme mas de peito liso à mistura com uma perna fora de sítio".
Realmente já há muitos anos que não passo em Mangualde...
Mas já agora, e dado o interesse público da questão, desafio os leitores a olharem à volta e descobrirem as obras de arte pública que vão surgindo a embelezar os espaços das nossas cidades. E depois apontem quem encomendou e a quem...
Não precisa de ser sempre a relação binária Câmara PS-João Cutileiro.... se encontrarem outras digam na mesma!

sábado, março 27, 2004

Belas Artes & Malas Artes

Em Évora, na vasta rotunda da Porta do Raimundo, até agora plana de forma a deixar a descoberto e a realçar os elementos mais nobres da muralha e da velha porta da cerca antiga, erguem-se ameaçadoras obras de edificação que dizem ser de um conjunto escultórico. Do que já é possível ver não subsistem dúvidas sobre a agressividade visual da construção, a impor-se e a esmagar o vetusto perfil das muralhas medievais e de uma das portas tradicionais da cidade - qual novo cartão de visita para quem chegue proveniente de Lisboa ou Montemor.
Em Torres Novas, na nova rotunda em construção junto à Ponte do Raro, no ponto em que se uniu a antiga avenida com o novo viaduto, levanta-se altiva escultura que, segundo os responsáveis, visa homenagear o operário torrejano. De acordo com muitas opiniões locais, também aí a localização e a volumetria da estátua agridem e ocultam os perfis tradicionais da cidade - sem lhe acrescentar beleza que conforte.
Há anos atrás, o equilíbrio das linhas simples mas majestosas e elegantes da plataforma que coroava o alto do Parque Eduardo VII, em Lisboa, foi ocupado por um amontoado de pedras, uma espécie de pirilau anémico e disforme, que lá ficou a desfear o local em homenagem, ao que dizem, ao vinte e cinco de abril.
O que liga entre si todos estes infaustos acontecimentos? Pois meus amigos, há umas coincidências sem importância. Em qualquer dos casos a obra foi encomendada por executivos camarários do Partido Socialista, por decisão que apanhou de surpresa até o pessoal mais chegado das respectivas câmaras. Em qualquer dos casos a encomenda foi tratada directamente com o mesmo empreiteiro-artista, que fixou o preço e embolsou a massa - perante a estupefacção de muita gente, pela generosidade dos municípios, habitualmente falidos, e a ausência de qualquer concurso anterior.
Em todos os casos o artista chama-se João Cutileiro. Em todas as campanhas eleitorais, seja legislativas, autárquicas, até presidenciais, este artista desde há muito aparece sempre em lugar de honra a apadrinhar as candidaturas patrocinadas pelo Partido Socialista.
E que prova isto, direis vós? Nada, meus amigos, nada. Longe de mim pensar que isto indicia algo de errado. Prova apenas que o João Cutileiro é um grande artista.

O Inverno demográfico

Para documentar a importância das questões que são objecto da luta da APFN pareceu-me justificar-se a transcrição do Manifesto divulgado a propósito do congresso referido no postal anterior.
Na sua singeleza, o Manifesto diz tudo - assim o queira entender quem o leia. Aqui vai.
"O envelhecimento da população europeia em geral, e portuguesa em particular, é uma realidade cada vez mais preocupante, não só por pôr em causa a sustentabilidade do sistema de segurança social como, mesmo, a necessária sobrevivência económica e política.
Este fenómeno, popularmente designado por "inverno demográfico", é, sobretudo, fruto de uma redução bastante grande da taxa de natalidade, muito abaixo dos 2.1 filhos por casal necessários para a renovação das gerações.
A fim de fazer face a esta situação, torna-se imperioso uma Política de Família adequada, no sentido de permitir que os casais não sejam penalizados, como são, ao terem mais do que um a dois filhos.
A APFN, no dia 27 de Março de 2004, primeiro sábado da Primavera do X Aniversário do Ano Internacional da Família, convida as famílias, associações e políticos europeus a reflectirem com o apoio de especialistas no assunto, no II Congresso Europeu de Famílias Numerosas sob o sugestivo lema "Famílias Numerosas - Primavera numa Europa Envelhecida".

Família, filhos e impostos

Neste sábado 27 de Março decorre em Lisboa o II Congresso Europeu de Famílias Numerosas, por mérito da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas.
Nunca é demais salientar a forma como esta associação tem batalhado para chamar a atenção de todos, e sobretudo de quem nos governa, para problemas cruciais para o nosso futuro colectivo. Designadamente as questões relativas à demografia, à família, à fiscalidade - e aos pontos em que tudo isso se entreliga. Todos os portugueses têm bem presente a realidade - são mais os velhos que os novos, mais os que morrem que os que nascem. Mas o país político parece alheado desse drama e das consequências sociais e conómicas que implicará a breve prazo.
Falando à margem do congresso, o Ministro da Segurança Social e do Trabalho, Bagão Félix, declarou que o nosso problema demográfico não se resolve por via fiscal. Triste escapadela para fugir às reivindicações mais que razoáveis referentes exactamente a matéria fiscal.
O problema demográfico não se resolve só por via fiscal? Pois não, ó Bagão - mas também não oferece dúvida que a sobrecarga fiscal não ajuda nada. O que se pretende ao dificultar a vida dos pais que sejam casados, face aos que sejam solteiros? O que se procura ao onerar mais e mais as famílias com mais filhos? Será proteger a família? Será incentivar os nascimentos?
A política fiscal só por si não resolverá o problema, isso é seguro. Mas já seria bom que não contribuísse para o agravar. E nem me atrevo a pedir que fosse usada como um instrumento de protecção à família e de encorajamento à natalidade...

Coincidências

Os frequentadores do Bairro Alto quando a zona entrou em súbita moda, e passou a ser o BA, lembram-se certamente da Guida Gorda, que barrava a entrada do "Frágil".
Pois a anafada criatura, com a idade, encontrou abono de família mais rendoso e menos trabalhoso do que ser porteira de discoteca: criou uma associação de nome "Abraço", que ao que se diz tem sido para ela verdadeiramente gratificante. A Guida Gorda transformou-se mesmo num dos porta-vozes mais destacados do social-chic políticamente correcto. E arranjou monte no Alentejo.
Fiel às consignas do milieu, surgiu agora a atirar-se ao Refúgio Aboim Ascensão e ao seu Director, Luís Villas-Boas. Segundo a volumosa megera, as regras de admissão de crianças definidas pela instituição representam "um crime público" que deveria levar o Estado a eliminar o Refúgio da lista de instituições "sérias e credíveis".
Claro que esta ofensiva não tem nada a haver com recentes declarações de Villas-Boas sobre a adopção de crianças por parelhas de homossexuais, e contra essa aberração - não senhor, nada a haver com tal assunto.
O motivo é outro, só outro: o regulamento da instituição. Com efeito, o Refúgio Aboim Ascensão, um dos principais centros de acolhimento de crianças em risco em Portugal, tem um regulamento próprio que tem em conta as suas capacidades: não é um estabelecimento para crianças deficientes e com doenças infecto-contagiosas; estas exigem cuidados especiais de que a casa não dispõe.
Trata-se de uma instituição dirigida apenas a crianças até aos seis anos, não portadoras de doenças infecciosas, e não portadoras de deficiências. "É para isso que estamos capacitados", explicou o Director.
E sempre foi assim. Todavia, a casa que até há pouco era apontada como um exemplo no campo da solidariedade e no apoio à infância passou a ser agora um alvo da indignação convergente e selectiva de todos os sectores habituados a ditar as regras em matéria de patrulhamento de ideias - as polícias da correcção política.
Nenhuma a relação entre uma coisa e outra. Pois claro. Nem pensar.

Geografismos & Matura Idade

Tenho continuado a seguir a mais dinâmica e prometedora realidade da blogosfera eborense: o "Geografismos" e a sua comunidade de blogues escolares, protagonizada pelos alunos da Escola de Santa Clara.
O meu entusiasmo, e porque não dizer a minha ternura, nasce de várias fontes. Desde logo essa afinidade de base que é ter sido aluno da escola durante dois anos, e curiosamente companheiro de turma de vários progenitores de alguns dos blogueiros agora lançados no projecto do "Geografismos". Foi há muitos anos, mas o passado nunca deixa de estar presente, como diz o poema de T. S. Elliot que deu o título de uma revista que por vezes aqui tenho citado - o "Tempo Presente".
Depois a circunstância de, passados anos, bem longe daqui, ter sido professor - sete anos da minha vida, sete... e ainda hoje sinto que nada do que fiz me encheu a alma como essa experiência diária, cheia de alegrias e frustrações, em que uma pessoa se dá inteira para aprender com outras, que nos olham na ilusão e na esperança de sermos nós a ensinar-lhes qualquer coisa; expectativa a que temos que responder, envergonhadamente...
Não falo da convicção racional de que o ensino é hoje o principal terreno da guerra que temos de travar, se queremos ter a sociedade e o país que sonhamos ter. Mas isso vem por acréscimo - nunca consigo afastar-me do ensino.
Finalmente, confesso a sensação afectuosa e divertida de vê-los crescer, crescer... sinceramente, nem a revelação crua do tempo que passou se sobrepõe a essa alegria; um homem passa, mas a vida infinitamente se renova.
Já tinha ironizado aqui sobre essa impressão, quando descobri o blogue do filho do Jaime. Não seria capaz de o reconhecer, evidentemente, mas sorri ao lembrar o rapazinho que o Jaime Nogueira Pinto me apresentou, há tantos anos, lá no Campo Grande, ainda a Zézinha era só dona de casa.
E agora, nestes "Geografismos" eborenses, encontrar um blogue do João Roma traz-me à lembrança outro tempo ainda mais antigo, quando a pequenada jogava à bola no jardim do Largo de São Mamede, ali bem perto da Rua da Mouraria (o pai Roma era então muito mais dedicado ao futebol do que às Finanças)... e a Patrícia - ai de mim! - os pais dela são muito mais novos do que eu...

O espelho da vergonha

Na minha ronda de blogues desembarquei no "Portugal Profundo". Estive a ler. Tenho que estar informado sobre o processo Casa Pia. Sinto repulsa, mas é assim: tem que se olhar de frente o que por todos os motivos nos leva a querer olhar para o lado.
Eu sei que todos estão fartos desta saga, que ninguém mais quer ouvir falar nesse assunto. E compreendo porquê: aquilo mete medo. Angustia. Qualquer um gostaria de fugir e não pensar no caso.
Se aquilo é tudo mentira? De facto é difícil acreditar que seja verdade. Mas então o que pensar deste mar de lama que há tanto tempo inundou as instituições, as polícias, a Justiça, as televisões, os jornais, a opinião pública, a vida nacional? Como pensar um país em que tão incomensurável embuste invade tudo e tudo domina - sem que um reflexo de sanidade o afaste?
E se aquilo é tudo verdade? Com efeito, é já difícil acreditar que seja tudo mentira. Mas então como encarar esta classe política, estes poderosos, esta gente que víamos todos os dias sob as luzes brilhantes da ribalta - e nos intervalos se entretinha às ocultas refocilando na abjecção?
É demasiado aterrador. Dói pensar nisto. É repugnante. Um nojo e um vómito. Não dá para ver sem um arrepio.
Por tudo isso seria confortável poder fingir que não é nada. Mas o lixo é demasiado para simplesmente ser varrido para debaixo do tapete.

sexta-feira, março 26, 2004

Teoremas de Filosofia

Trouxeram-me finalmente a revista "Teoremas de Filosofia" - caderno semestral de filosofia portuguesa - que procurava já nem sei há quanto tempo. Estão já publicados oito números!
Sob a direcção de Joaquim Domingues e Pedro Sinde, esta realização é actualmente a única voz com impressão regular da escola de pensamento que ficou conhecida exactamente pela defesa da existência de uma filosofia portuguesa - pelo menos desde o livro de Álvaro Ribeiro, em 1943.
Centrada no Porto, como a vida e a obra de Sampaio Bruno e de Leonardo Coimbra, tem no entanto a administração mais a Norte: quem desejar a revista tem que escrever para a Rua do Areal de Cima, n.º 91, 4710-346, Braga, ao cuidado de Joaquim Domingues.
Para quem pressinta a essencialidade da autonomia de pensamento para a autonomia de Portugal, é hoje ainda mais decisiva do que ontem a problemática da filosofia portuguesa.

É hoje, é hoje!

Os antigos alunos do Liceu Nacional de Évora realizam hoje dia 26 de Março o já habitual Jantar da Primavera.
Muitos, particularmente os que residem na área da Grande Lisboa, vão voltar a reunir-se em confraternização no ex-hotel Penta, hoje MARRIOTT.
Não estarei presente - mas aqui da cidade que foi de Sertório e de Giraldo envio o meu abraço de amizade, e de infinita saudade.

"Sobre tudo e para todos"

Ando eu sempre à cata de blogues alentejanos, e na imensidão da planície sempre me escapam alguns: não querem lá ver que em Arraiolos, aqui tão perto, fazem um blogue dedicado especialmente ao desporto da região, com o nome "Sobre tudo e para todos"?
Não sabiam - nem eu, que o descobri hoje. Por mim, embora já não vá em futebóis, apoio estes rapazes arraiolenses e desportistas, e chamo a atenção de todos os compadres - especialmente aquele do VIVAZ, que é pessoa dessa especialidade - para o labor do blogue. Agora vejam lá se não faltam aos treinos nem desistem do campeonato!

Todo o mundo é composto de mudanças

Na sua visita a Tripoli, o primeiro-ministro britânico Tony Blair proclamou urbi et orbi o que já se desconfiava: o Coronel Kadhafy, esse democrata exemplar, é um parceiro na luta contra o terrorismo. Não é nada do outro mundo: Osama Bin Laden também já foi, e Saddam Hussein também já ocupou essa honrosa cadeira. Por seu lado o famoso Coronel já foi a encarnação do Mal, o sponsor de todo o terrorismo internacional. Houve tempo em que Reagan mandou bombardear a Líbia, defensivamente é claro, e os atentados como Lockerbie chocavam a consciência universal - que erguia o dedo acusador contra Kadhafy, não sei se espontaneamente ou porque as forças do Bem lhe comandavam o braço.
Seja como for, não devemos estranhar. Camões escreveu que todo o mundo é composto de mudanças; um ilustre filósofo português proclamou que nada no mundo é eterno a não ser o próprio mundo; e nós sabemos com saber de experiência feito que nenhuma aliança é definitiva - elas fazem-se e desfazem-se a toda a hora ao sabor das conveniências e das jogadas do xadrez da política internacional.
Como acontece no futebol doméstico, o que hoje é verdade amanhã é mentira. Só os tolos não vêem isso.

quinta-feira, março 25, 2004

Lembrando Manuel Laranjeira

Para usar linguagem actual, o poeta Manuel Laranjeira era um ganda maluco, de vida breve e intensa, natural da terra do buliçoso rapaz da “Nova Frente”.
Teve o seu tempo de notoriedade, na nossa pequena república das letras, pela sua obra literária e sobretudo pela projecção que Miguel de Unamuno deu à sua vida e à sua obra – e à sua morte.
Hoje creio que estará de todo esquecido. Todavia, quando em 1977 passou o primeiro centenário do seu nascimento, publicou o Rodrigo Emílio, que não sendo santo nenhum é muito da devoção do “Nova Frente”, um artigo evocativo que, já agora, fica aqui para leitura e proveito dos amantes das belas letras. Para o BOS, claro.

NO CENTENÁRIO DE MANUEL LARANJEIRA

Aquela soturnidade e toda aquela melancolia que - mormente ao anoitecer - se apoderavam do espírito de Cesário, e que nele despertavam "um desejo absurdo de sofrer"; esse "vago sofrer do fim do dia", a que já tão sensível se tinha mostrado Camilo Pessanha, na sua CLÉPSIDRA, experimentou-os Manuel Laranjeira, com redobrada intensidade, enquanto andou a Penar por este mundo. E ninguém (entre nós, pelo menos) terá sabido apreender e exprimir, até hoje, tão supremamente como ele, e em base de tão derrancada autenticidade, todo o amaríssimo travo dessa nevrose, de tónus poentino e de feição crepuscular, que o trabalhou por dentro a vida inteira; que lhe macerou as horas todas da sua abreviada e patética existência; que jamais o poupou ou lhe deu tréguas; que o mortificou, implacavelmente, até à morte!
Laranjeira vem a padecer, essencialmente, de uma sorte de "outonalidade" espiritual de fim-de-século, extremamente doentia e mórbida, que se propaga a tudo aquilo que o circunda, e que em tudo projecta colorações pressagas de bruma e adeus; que a tudo transmite, em suma, um clima de indizível desolação e uma sempre deprimente tonalidade ambiental: "Anda uma luz de cinza pelo espaço"; "(...) Uma luz espessa, húmida, suja, parda como lama. Há uma tristeza tediosa que se exala do céu e da terra e se infiltra nas cousas e na alma. A terra, as nuvens parecem uma grande esponja cor de cinza, embebida em lama, em luz viscosa, em tristeza, e sobretudo em aborrecimento".
Antes de mais nada, há, em Laranjeira, um desapego mortal de tudo e de todos; todo um trágico indiferentismo! Glosando Gedeão, dir-se-ia que, a seus olhos, "Tudo morre em tédio e em nada,/ Tudo maça. Tudo enfada./ Tudo pesa. Tudo cansa". Clama Laranjeira: "Só me lembra dizer aquilo do Herculano - isto dá vontade de morrer. Sinto que tudo é aborrecido; se me dissessem que o mundo ia desabar, encolhia os ombros. Estou como aqueles que, não tendo nada que perder, não se importam que tudo se perca".
Entretanto, na sua vida, seriam sempre seis horas da tarde: "A tarde lenta cai. E cai também/ Uma melancolia venenosa,/ (...) que se não sabe de onde vem ...// E vem como uma sombra vagarosa/ Que chovesse dum céu crepuscular.../ Vem subindo da terra dolorosa/ Como um grande dilúvio de pesar,/ Como um olhar de dor silenciosa/ Que tentasse subir para as estrelas/ E ficasse disperso pelo ar..,/ E vem do fundo de alma... Perscrutasse/ a gente o coração p’ra sentir bem/ Que é lá no fundo de alma que a dor nasce/ E é de lá sobretudo que ela vem...
Sim. Provêm sempre d'além alma os suores frios desta angústia. Fortes razões há-de ter tido Unamuno para, de resto, asseverar- "Fué Laranjeira quien me enseñó a ver el alma trágica de Portugal y (...) no pocos rincones de los abismos tenebrosos del alma humana".
A juntar a tudo mais, acusa o poeta, sensivelmente, a falta de Deus: "(...) o Deus que eu pretendera/ destronar, nunca existira:/ era uma louca quimera/ uma orgulhosa mentira". E, à falta de Deus e do resto, assalta-o, a cada passo, “o desejo de chorar/ Baixinho, docemente, / Sobre o peito de alguém... que não existe".
Um dia, não pode mais, - e vá de alojar em si a bala libertadora!
"Em Portugal" – escrevera Laranjeira a Miguel de Unamuno uns tempos antes -- "chegou-se a este princípio de filosofia desesperada - o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção moral. Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa.
Chegámos a isto, amigo. O nosso mal é uma espécie de cansaço moral, de tédio moral, o cansaço e o tédio de todos os que se fartaram - de "crer".
Crer...! Em Portugal, a única crença ainda digna de respeito é a crença - na morte libertadora.
É horrível, mas é assim
".
Assim continua a ser, a estas horas...
Quanto a ele: "Matou-o a Vida. E, ao matar-se, deu vida à morte”, há-de dizer, ao depois, Miguel de Unamuno, na hora da sua morte.
Uma última vontade exprimiu Laranjeira, apelando in extremis para a mãe:
"Mãe - é um desejo esquisito este meu: plante uma roseira sobre a minha sepultura. Depois, quando me quiser falar, vá lá beber o perfume das rosas: que esse perfume é a minha alma."
E, aqui, pergunto eu, a terminar - é ou não é verdade que "esta pequena maravilha" poderia ter saído, nas calmas, do punho de Almada Negreiros, e mormente das páginas d' "A Invenção do Dia Claro"?....
Passe-se, portanto um atestado de plena sobrevivência literária, e de inteira modernidade estética, ao autor de COMIGO. Tomara muito coevo estar assim tão vivo como ele!... O que quer dizer que a obra poética de Manuel Laranjeira goza, a título póstumo, de uma saúde de ferro!

RODRIGO EMÍLIO

Do poeta João Maia

Em atenção àquele rapaz do "Nova Frente", que me enche de amabilidades, complemento aqui um recente postal dele a evocar a figura de João Maia com um poema do referido autor, datado já de 1977... é uma curiosidade e uma surpresa para muitos, mesmo dos que conheciam a actividade intelectual do Padre Maia, sobretudo na "Brotéria", e associam sempre o seu nome à imagem do crítico e comentador literário, que ele também foi. E façam favor de não sair daí, que ainda vou postar outra prenda dedicado ao mesmo rapaz, que é uma jóia de moço, não desfazendo em Vocelências.

Triste ma non tropo

O dolorido pulsar do transitório
sobre o meu prostrado anelo
a noite fresca
a manhã como espuma
e a tarde consumada

Recolhe-se ao interior do fruto
difícil de roer e de provar
o sabor do eterno
e há quem entristeça a senti-lo
por marginar quem o sente

Dividido e queixoso
tiro à fruta do Dia (se possível)
este travo amargoso quase imperceptível...


JOÃO MAIA

Sobressalto

Receava eu às vezes padecer de pessimismo exagerado, e afinal pode ser que ainda enferme de optimismo em demasia...
Foi o pensamento que me assaltou a ler o "Nova Frente".... andava eu aqui desde há quase oito meses a insistir com os direitinhas que era necesssário escrever, escrever, e vem de lá o "Nova Frente" a alertar-me que se torna indispensável primeiro que eles leiam, leiam, leiam... Porca miséria!

Temperamentos

Santo Alberto Magno classificava os temperamentos humanos em quatro grandes categorias, a que chamava o colérico, o melancólico, o fleumático e o sanguíneo.
Segundo alguns, a distinção coincide com a dos modernos endocrinologistas que descreveram quatro temperamentos humanos — o hipertiroideu, o hipo-supra-renálico, o hipotiroideu, e o hiper-supra-renálico.
Dando por certa a sabedoria medieval do santo, avalizada agora pela ciência positiva dos modernos, dei por mim a matutar onde me encaixaria a minha natureza.
Ignorando de todo o que dirão os laboratórios do funcionamento das minhas glândulas, resta-me a auto-observação.
Olhando para dentro e para fora, para o que sinto e para o que faço, para as sensações e para as reacções, só comigo ou só perante os outros, permaneço em insuperável dúvida. Muito difícil é classificar-se um homem!
Mas arrisco: no pressuposto de que tais classificações admitem e prevêem os tipos mistos, sendo raros os casos de temperamentos puramente redutíveis a um dos tipos, devo ser essencialmente um melancólico com traços coléricos... a neura e a pouca paciência marcam-me, geralmente uma, ocasionalmente a outra.
Mas não sei. O melhor será requisitar as análises à tiróide e à suprarenal.

Desculpas

Dizia Luís António Verney, no “Verdadeiro Método de Estudar”, que não podia sofrer um poeta que ao começar um poema logo invocasse as Musas e Apolo para lhe inspirarem os pensamentos, ou que não passasse sem mandar Mercúrio com algum despacho de importância, ou convocasse Minerva a exercer funções de conselheira, ou chamasse Plutão a vir lá do Inferno para agitar alguma discórdia ou inimizade, ou que não visse tempestade em que não pusesse Éolo a fazer das suas.
E concluía que um furioso vento pode fazer o mesmo espalhafato em uma armada que Éolo com todas as suas Fúrias, e para dar razão de uma batalha perdida é mais natural e verdadeiro recorrer à pólvora, às balas e à prudência do general do que ao Destino ou ao Fado, que são palavras sem significado.
Queria ele dizer-nos, fundamentalmente, para além da necessidade de ultrapassar essa carga excessiva de Antiguidade Clássica que pesava ainda sobre a literatura da sua época, que para explicar as coisas nada melhor do que a luz crua da realidade, tal como a vivemos e experimentamos. “O poeta mostraria mais engenho se ele fizesse os seus versos, do que pedindo a Apolo que lhos inspire”.
Serve isto à maravilha para embelezar a minha explicação sobre a ausência de ontem. Com efeito, e usando de sinceridade completa, não tive tempo para me lembrar de nada que pudesse escrever e publicar aqui para regalo dos meus fiéis leitores; e quando tive o tempo também nada me veio à lembrança que pudesse suprir o esquecimento. Esforçar eu esforcei-me, mas fiquei sempre assim, exausto e estéril, incapaz de alinhavar uma ideia que seja.
Mea culpa, mea maxima culpa. O certo é que, falho de tempo e de inspiração, ou tão só de inspiração, nada escrevi e nada publiquei. Alguém terá perdido alguma coisa com isso? Certamente eu, que já estava habituado a este conforto familiar do desabafo com os amigos. Afinal sempre existe calor na frieza cibernética da rede.
E queira a Fortuna que a manhã enfim me traga esperança de algum contentamento.... Que por ora estou como Frei Agostinho da Cruz: “os dias mais fermosos amanhecem,/ Não para mim, que sou quem dantes era.// Espanta-me o porvir, temo o passado; /A mágoa choro de um, de outro a lembrança,/ Sem ter já que esperar, nem que perder.// Mal se pode mudar tam triste estado; / Pois para bem não pode haver mudança, / E para maior mal não pode ser".

terça-feira, março 23, 2004

Política Internacional

A América atingiu a sua fase de Império. E pelas contingências da História tornou-se a única superpotência. Tudo leva a crer que essa situação se irá manter, por tempo que não é possível calcular – o que se constata é que os outros rivais hipotéticos, os que possuem “massa crítica” (nomeadamente em termos de território e população) para aspirar a esse lugar, estão muito longe de reunir condições para assumir de imediato esse estatuto.
Não têm poder económico que se assemelhe ao americano, continuando muito atrás em termos de desenvolvimento, e consequentemente não podem pensar em ter poder militar que se lhe compare. Este raciocínio aplica-se à China, à Índia, à Rússia. E não se aplica à Europa porque esta, para além de não ter poder militar, nem sequer tem ou se mostra que possa ter uma direcção política própria.
Sendo a única superpotência, a América cada vez mais tenderá a unificar contra si todos os ódios do mundo. Os fracos, os pobres, os deserdados, os oprimidos, os descontentes, todos os que têm razões e todos os que julgam tê-las, terão a tendência para exigir contas à América, para culpar a América, para se revoltar contra a América, que é rica e poderosa como nunca houve outra neste mundo.
E de facto contra a sua força não é possível combater de igual para igual, nenhuma batalha é possível seguindo as regras que são as do mundo onde a América domina. Os revoltados, portanto, ou se acomodam ou levam a revolta até às últimas consequências: num cenário destes o perigo das explosões terroristas estará sempre mais presente.
E o que há de novo neste terrorismo é o seu carácter global e universal. O inimigo é único, facilmente identificável, a existência do alvo comum e bem definido unifica a acção. Estaremos pois perante um fenómeno que não precisa de ser coordenado para estar coordenado. A guerrilha universal, como já lhe chamaram alguns teóricos, prescindirá de grandes organizações, de direcção centralizada, de articulação planeada ou de ligações institucionalizadas. Na verdade, dados os meios de vigilância que o Império possui, terá mesmo que prescindir dessas características sob pena de ser facilmente detectável e combatida. Ao contrário, tratando-se exclusivamente de pequenos grupos isolados e sem relação entre si, dotados apenas de uma vontade que não conhece limites e espalhados por todos os pontos do globo, constituirá uma força quase invencível.
Esmagado um núcleo outros subsistirão, por vezes onde menos se esperaria.
Perante isto, o que podemos prever? Deixando de lado o que só por artes de adivinho poderá ser previsto, pode dizer-se desde já muito claramente que neste panorama, em que a permanente ameaça do terrorismo e a obsessão securitária do Império tenderão a apertar-nos cada vez mais em movimento de tenaz, existirá cada vez menos espaço para o indivíduo, para qualquer ilusão de liberdade, privacidade ou autonomia, das pessoas ou dos colectivos. As belas ilusões como as codificações de Direitos do Homem, o Direito Internacional, o Direito da Guerra, todas as ideias e instituições que foram criadas para afirmar que há um direito para lá do que nasce da força, foram as primeiras vítimas do novo estado de coisas.
A realização prática da sociedade totalmente vigiada e onde a vontade do poder não terá qualquer limite jurídico encontrou o seu terreno ideal.
Poderá o futuro próximo ser diferente? Não creio. Como disse ao princípio, a América atingiu a sua fase de Império. Ora um Império perante qualquer desafio ou avança ou recua. Não há terceira hipótese. Qualquer contemporização, qualquer adiamento, serão sempre recuo mesmo que isso não seja notório de imediato. Com efeito, num combate em que uma das partes é infinitamente mais fraca se a mais forte concede tempo só a primeira pode ganhar com isso: o tempo que passar dá-lhe a possibilidade de subsistir, quem sabe de reforçar-se, de preparar-se, de agigantar-se.
Deste modo a direcção política da América oscilará sempre entre a tentação de avançar, utilizando de imediato todos os meios da sua força bruta para esmagar o desafio emergente, ou de procurar outra via de repor equilíbrios – mas nesse caso estará insensivelmente a recuar.
E não faltará nunca quem astutamente e por todos os meios lhe irá forçando a mão, aqui e acolá instigando os desafios e as revoltas, ou criando as condições para isso, e logo depois capitalizando a seu favor o conflito despoletado. O centro, como é sina também nos impérios, estará frequentemente a travar guerras em benefício de terceiros.

Por Santiago!

Mais um blogue alentejano, este dedicado ao litoral. Fico contente, quantos mais melhor. Chama-se "Por Santiago", clama pelo desenvolvimento e pelo progresso, e centra-se na cidade de Santiago do Cacém.
Afixa notório alinhamento partidário, o que também merece atenção. Será que os socialistas, que não chegaram primeiro, serão no entanto os que melhor compreenderam as potencialidades da blogosfera? Seja lá o que for, eles aí estão... já formam um bloco avantajado. E se os outros não os acompanharem, pior para eles!

Progresso e Regressão

«A civilização moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia: de todas as que conhecemos, ela é a única que se desenvolveu num sentido puramente material, a única também que não se apoia em nenhum princípio de ordem superior. Este desenvolvimento material que se desenrola há vários séculos, e que se acelera cada vez mais, foi acompanhado de uma regressão intelectual que ele é incapaz de compensar. Trata-se, bem entendido, da verdadeira e pura intelectualidade, que também poderiamos chamar de espiritualidade, sendo que nos recusamos a dar este nome àquilo que os modernos se têm sobretudo aplicado: a cultura das ciências experimentais, com vista a aplicações práticas às quais elas são susceptíveis de dar lugar. Um só exemplo poderia permitir medir a extensão desta regressão: a "Summa Theologica" de S. Tomás de Aquino era, no seu tempo, um manual para o uso de estudantes; onde estão hoje os estudantes que seriam capazes de a aprofundar e de a assimilar?»
René Guénon

segunda-feira, março 22, 2004

E as nossas eleições?

Olhando as estrangeiras, temos andado esquecidos das nossas eleições. E no entanto estas europeias são decisivas para os equilíbrios políticos internos. Repare-se que a coligação governamental se apresenta pela primeira vez como tal a umas eleições. Um desastre teria certamente consequências radicais - com tudo o que isso implica (provávelmente legislativas a curto prazo). Os socialistas apresentam-se divididos entre a esperança de capitalizar o habitual efeito do meio-mandado e o receio de vir a pagar estes dois anos de via sacra. Um descalabro seria o fim da equipa de Ferro. Um bom resultado dar-lhe-ia novo fôlego.
Nisto que fica dito está bem clara a importância dos resultados para a sobrevivência política do Governo, e de Portas, e de Barroso, e também de Ferro Rodrigues e dos seus.
Curiosamente, na sondagem divulgada há poucos dias estes protagonistas surgem numa situação que acabaria por satisfazer os dois: o PSD/CDS estava um pouco à frente, o PS um pouco atrás. Caso se confirmasse este cenário ambos os lados surgiriam na noite das eleições a proclamarem a sua satisfação. Uns diriam que atendendo ao desgaste da governação a circunstância de mesmo a meio do mandado ter sido possível ficar em primeiro e alcançar o número de lugares em vista representa uma vitória. E os outros diriam que perante a vaga de azares que se têm abatido sobre o PS ter conseguido ficar a um passo do primeiro e garantir também o número de lugares em causa já representa uma vitória. Ambos respirariam de alívio por terem conseguido evitar o pior, e seguiriam em frente.
E os demais intervenientes? O PCP entra sempre com o objectivo de não perder mais. E por fatalidade biológica perde sempre mais a cada novo acto eleitoral. Segundo a sondagem em questão assim continuará a suceder: perderá um deputado. E este será ganho pelo Bloco de Esquerda, que deste modo surgiria como o grande ganhador da noite eleitoral. Sublinho que esta perspectiva não se afasta daquilo que intuitivamente é sentido pelos observadores: o Bloco foi alargando o seu espaço, mordendo nas franjas mais jovens do eleitorado urbano da esquerda, que foge do PCP e está descontente com o PS, e por esse caminho será natural a sua consagração como o terceiro partido da esquerda.
Só assim não acontecerá se os próprios tratarem de dar tiros nos pés e cometerem tantos erros que acabem por comprometer esse objectivo, que têm ao alcance da mão - o que também não é impossível.
Finalmente, ainda tendo em conta a mesma sondagem, a Nova Democracia praticamente não aparece. Este dado é relevante: apesar do facto objectivo que é a coligação PSD/CDS, que representa o cenário aparentemente mais favorável, e apesar do empenho de Manuel Monteiro nestas eleições, que constituem verdadeira prova de vida para o partido, este não há meio de descolar. A confirmarem-se os resultados da sondagem, seria dado como o grande derrotado no rescaldo eleitoral.
E os outros? Não sei se os responsáveis da sondagem incluiram outros. Designadamente o PNR e o nóvel Movimento Pelo Doente. Como é evidente, qualquer dos dois, se estiverem presentes como anunciaram, terão nesta ocasião o verdadeiro teste para sua existência política. Conseguirão criar a surpresa? Para já, a sondagem realizada parece corresponder com bastante realismo ao que se pode esperar - sem surpresas. E se assim for tudo ficará mais ou menos na mesma - os combates políticos essenciais ficarão adiados para próxima oportunidade.

Estados de alma

Hoje este blogue está em maré baixa. Não sei se será da entrada da Primavera, em que todas as alergias cirandam no ar, mas a parte psíquica queixa-se da parte física e esta ressente-se da primeira. Não tenho humor para blogações, nem forças.
A somar-se a tudo, sinto que uma estranha atmosfera de loucura faz proliferar a insanidade na blogosfera, em pujante floração de asneiras - e isso deprime-me.
O que é mais curioso para mim é observar que a cegueira fanática, o radicalismo e o extremismo mais insensível e primário, dominam hoje o discurso de guerra de muitos que eu conheci ao serviço de outra causa, que acreditavam então representar uma inevitabilidade histórica - e que serviam com igual atitude mental.
Eles mudaram de posição, mas não mudaram de mente. Quem andou de grilheta sempre arrasta a perna...

O mundo está perigoso!

Os noticiários de hoje são dominados pelos resultados das eleições francesas e pelo assassinato do Xeque Ahmad Yassine. Realmente são dois acontecimentos que dão que pensar - a quem queira pensar, naturalmente.
Mas é quase certo que continuaremos a ser bombardeados por exercícios de não-pensar.
Que a história tinha chegado ao fim, diziam os crentes...

domingo, março 21, 2004

Mais reflexões sobre o Iraque

Faz parte do sistema de crenças das ideologias dominantes, as quais, à imagem de Obélix com a poção mágica, foram mergulhadas quando nasceram no caldeirão do optimismo, a fé ingénua em que tudo tem uma solução.
Todavia, na realidade e na vida, acontece frequentemente que há problemas sem solução. Pelo menos uma solução airosa, que é do que estamos a falar.
Ocorreu-me este pensamento a propósito da situação no Iraque, muito em foco agora pela passagem do primeiro aniversário da invasão.
A mim, por mais que pense no imbroglio, parece-me claro o prognóstico para os tempos mais próximos. A situação vai piorar.
Se as forças de ocupação permanecerem no terreno, ainda que reforçadas, e com cada vez maior dispêndio de recursos humanos e materiais, parece-me claro: a situação irá piorar.
Se as tropas ocupantes retirarem agora, também não tenho dúvidas: a situação irá de imediato piorar.
É assim. Exactamente como já se sabia antes da guerra.
Nisto redundou a política de Bush: meteu os Estados Unidos num buraco onde nem é possível continuar, senão com pesadíssimos custos na frente interna e externa, nem está à vista o momento em que seja possível retirar, sem que isso signifique um desastre.
Daqui vai resultar no curto prazo um aumento de pressões de toda a ordem para que outros acedam a envolver-se no terreno, de modo a partilhar o mal pelas aldeias, pelo maior número possível de aldeias.

Angústias de um bloguista de província

Não há dúvida: o meu blogue enferma de um problema de definição. Certamente que tem mais, mas agora saltou-me esse à vista. Definição, identidade, situação. As pessoas gostam disso, de ver o rótulo e ficar a saber tudo.
Ora dá-se o caso de aqui na província o infeliz ser olhado com suspeita; dizendo melhor, os que são daqui têm sempre a desconfiança de este não ser de cá. Entretém-se muito pelos longes, por vezes paira no ar e não se sabe onde poisa. Não cabe no grémio dos blogues regionais, ou localistas, seja lá o que for que isso signifique.
Mas para os outros, os que bebem do fino nas escolhidas tertúlias político-jornalístico-literário-blogueiras, isso nem se discute: é um mísero blogue provinciano. Também não entra no clube.
E se isto é assim na problemática geografia blogueira, então na geografia política nem sei que vos diga; não há cartel que lhe passe cartão.
Não há dúvida: sofro de um problema marxista (tendência Groucho). Não aceito fazer parte de nenhum clube que me aceite como sócio. E os outros não me querem lá.

O Souselense

Nem só de misérias é feita esta viagem pela rede: encontrei um blogue desconhecido, "O Souselense" - dedicado às "notícias de Sousel e do Mundo"... (eu aconselharia a que se preocupasse sobretudo com Sousel, que com o mundo já anda muita gente ocupada).
Alentejano fundamentalista e primário, como é geralmente reconhecido, a minha alma alvorota-se sempre que depara com um conterrâneo na imensidão do espaço blogosférico. E fica igualmente desgostada quando constata que muitos aparecem para desaparecer, entram em letargia e morrem pouco depois do prometedor arranque. Caramba, a paciência e a persistência sempre foram virtudes alentejanas!
Bom, mas por agora aqui ficam as boas vindas aos compadres d'O Souselense. Que venham para ficar!

Pelo menos 200.000 portugueses passam fome

Das notícias: “Há pelo menos 200 mil pessoas a passar fome em Portugal. O número, coincidem investigadores e pessoas que trabalham no terreno, poderá ser muito superior e chegar a um milhão, mas, à falta de estatísticas, cruzam-se dados para poder tirar conclusões sobre a realidade.
A cifra de 200 mil pessoas com fome é avançada por Alfredo Bruto da Costa, presidente do Conselho Económico e Social (CES) e co-autor, com a economista Manuela Silva, do primeiro estudo sobre a pobreza em Portugal, publicado em 1986 (ed. Cáritas Portuguesa).
Nestas contas entram realidades de pessoas apoiadas por instituições como os bancos alimentares, a Misericórdia de Lisboa, os valores das pensões de reforma ou o número de sem-abrigo, entre outros.
Anos depois de uma investigação sobre as causas da pobreza em Portugal, produzida no âmbito da sua tese de doutoramento, Bruto da Costa mantém: "Em dois milhões de pobres em Portugal (valor que corresponde também ao estimado pelo Eurostat), há 200 mil pessoas que têm fome. Os números da pobreza, aliás, têm-se mantido praticamente constantes desde a primeira investigação sobre o tema."

Em breve resumo: de acordo com os estudos citados pelos jornais, há pelo menos duzentos mil portugueses que passam fome; e somando a esses os que pelos seus rendimentos estão em constante risco de cair nessa situação conclui-se que entre a fome e a pobreza extrema situam-se cerca de dois milhões, ou seja uns vinte por cento - um quinto da nossa população.
Como consolo, e para além da proliferação dos telemóveis que já mencionei, há também a multiplicação dos estádios: haverá outro país com mais estádios de futebol ultramodernos? A lógica da governação parece obedecer ao famoso princípio “pão e circo”, mas com prioridade para o circo: como não há dinheiro para tudo poupa-se no pão para que não falte o circo.

The gang that couldn't shoot straight

"A former White House anti-terrorism advisor says the Bush administration considered bombing Iraq in retaliation after Sept. 11, 2001 even though it was clear al Qaeda had carried out the attacks on the World Trade Center and the Pentagon.
Richard Clarke said he was briefing President Bush and Secretary of Defense Donald Rumsfeld among other top officials in the aftermath of the devastating attacks.
"Rumsfeld was saying we needed to bomb Iraq. ... We all said, 'but no, no. Al Qaeda is in Afghanistan," recounts Clarke, "and Rumsfeld said, 'There aren't any good targets in Afghanistan and there are lots of good targets in Iraq."'
[Reuters, 3/19/04] --- BUSH LIES...

sábado, março 20, 2004

"A vida é o mal. A expressão última da vida terrestre é a vida humana, e a vida dos homens cifra-se numa batalha inexorável de apetites, num tumulto desordenado de egoísmos, que se entrechocam, rasgam, dilaceram. O Progresso, marca-o a distância que vai do salto do tigre, que é de dez metros, ao curso da bala, que é de vinte quilómetros. A fera, a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro léguas, enche-nos de terror. O homem é a fera dilatada."
Guerra Junqueiro

Um milhão de portugueses não tem água canalizada

Das notícias: "Quase um milhão de pessoas em Portugal vive sem abastecimento de água em casa, segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE).
Em vésperas do Dia Mundial da Água, que se assinala segunda-feira, as autoridades prometem ter pronto até Junho um inventário nacional de sistemas de abastecimento de água que permita definir as carências da população.
"
Palavras para quê? Em compensação somos dos países do mundo com mais elevado índice de telemóveis/habitante...
Nem comento.

Arquivos da memória

Por ter falado lá mais para trás em Rodrigo Emílio, não resisto em mencionar aqui uma estória – e que estória! – que apesar de bem conhecida em certos círculos restritos costuma ser convenientemente esquecida – tal é o incómodo que provoca ainda hoje.
Na verdade, dificilmente existirá igual nos anais da canalhice e da desvergonha. Foi o caso nunca visto da oportuníssima marcha atrás feita pelos responsáveis da nossa mais celebrada academia quanto à atribuição do Prémio Nacional de Poesia em Abril de 1974 – marcha atrás ainda por cima com apagamento das marcas, como vimos fazer aos índios em certos filmes do oeste.
O caso foi que o ilustríssimo júri, composto por não menos ilustres personalidades, que foram de destaque no mundinho das belas letras, tanto antes como depois de Abril, reuniu e decidiu atribuir o Prémio Nacional de Poesia à obra poética de Rodrigo Emílio. A obra em causa está reunida no volume “Serenata a Meus Umbrais”, e quem encontrar o livro pode formar a sua convicção sobre o mau ou o bom fundamento da deliberação.
O certo é que o prémio em questão, o Prémio General Casimiro Dantas, foi concedido a Rodrigo Emílio por deliberação do tal júri, e a coisa foi conhecida. Circulou nos meios literários da época. Chegou às redacções. Como é da praxe, foi até anunciada no lugar próprio, lá na Academia das Ciências de Lisboa (ai de mim, sempre tinha julgado excessivos os sarcasmos de Bocage contra a então recente instituição– e afinal ele é que tinha razão, que a jovem nasceu já com tiques de velha meretriz!).
Deu-se então o prodígio de que falo: no espaço de poucos dias a deliberação deixou de existir. O anúncio desapareceu, desapareceram todas as provas materiais. Não que houvesse nova deliberação, a retirar o prémio, ou a dar o dito por não dito: simplesmente toda a gente passou a fingir que não se tinha passado nada. Nunca houve nenhuma explicação, nenhuma palavra sobre o assunto. Apenas o silêncio, impenetrável, o recomeçar da vidinha a partir do momento anterior à tal deliberação, como se o ocorrido nunca tivesse existido – o apagamento do passo em falso, com corrector e tinta branca.
O que acontecera? Na poesia do autor nada mudara, e era suposto ter sido esta a premiada. No posicionamento político dele também nada se alterara – e era bem conhecido dos membros do júri, pois que ele faz questão de o escarrapachar em tudo o que publica. No carácter dos mesmíssimos jurados e dos responsáveis da Academia também é de supor que nada se tenha alterado – tudo leva a crer que já não tinham nenhum antes do dia 25 desse mês e assim continuaram depois.
A resposta é evidentemente só uma, e já os digníssimos leitores entenderam. Entre um momento e o outro dera-se a abrilada, e os implicados nesta torpeza entraram em pânico com a negra perspectiva de virem a ser acusados de dar prémios a um tenebroso fascista...

Partir

Continuando na senda poética, tenho aqui à mão um poema de Daniel Filipe, poeta de que poucos estarão lembrados. Sobre o drama humano da emigração, que é de todos os tempos e umas vezes mais outras menos nos pode tocar a todos. Hei-lo.

Romance de Tomasinho Cara-Feia

Farto de sol e de areia,
que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-Feia
vai prà pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortunata, a mãe,
que é velha e não tem ninguém,
chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-Feia,
(outro nome quem lho dá?)
farto de sol e de areia,
foi prà pesca da baleia.

- E nunca mais voltará.


Daniel Filipe

sexta-feira, março 19, 2004

Liberdades poéticas

Quando falo de Guerra Junqueiro vem-me logo à cabeça a marca de polémica que o acompanhou durante toda a sua vida e mesmo bem depois da sua morte. Desde que surgiu na arena poética, ainda em Coimbra, logo se manifestou esse sinal que havia de estar ligado à sua pessoa e à sua obra para sempre: uma viva divisão, a feroz oposição entre a idolatria de uns e a aversão radical de outros.
Para alguns dos admiradores mais entusiastas Junqueiro era uma expressão tão elevada da poesia do seu tempo que logo o apresentaram como o novo Camões. Para outros, mais ligados a outras formas estéticas e mais afastados do revolucionarismo republicano, o jovem vate era pouco mais que uma imposturice.
Foi nessa fase que surgiu publicada uma versalhada que procurava pôr a ridículo, em quadras jocosas, a figura do exaltado ídolo. Saiu ao que penso em revista dirigida pelo poeta minhoto João Penha e da responsabilidade deste.
Daquilo que me lembro é da apresentação sarcástica do alvo:

Em Freixo-de-Espada-à-Cinta
Nasceu o novo Camões
Sua mãe, Dona Jacinta,
Negociava em melões!


Claro que nem a mãe de Junqueiro se chamava Jacinta nem tinha comércio de frutas. São liberdades poéticas e exigências de rima. Mas o poema gozão correu célere e fez bom sucesso.
E agora me lembro que essa tendência para os superlativos deve ser uma mania da esquerda coimbrã, que ciclicamente se repete: por meados da década de sessenta do século passado foi corrente por lá erguer pomposo pedestal e proclamar, coroa de louros na mão, o Manuel Alegre como "o Camões lírico do século XX". Estou daqui a ver quem de certeza que se lembra...

Mais do Abílio

Insisto na poesia do velho Abílio Guerra Junqueiro, agora para trazer um dos seus mais comovidos e sentidos poemas.
Repare-se na nostalgia dolorida que assombra o poeta na hora de completar o círculo, voltar ao porto onde iniciara a peregrinação, regressar a Ítaca e olhar o futuro mirando o passado. Mas para o futuro nada mais se alcança que não a certeza do fim, e do passado já nada resta senão a imensa nostalgia do que se perdeu.
Dizia António José Saraiva com ironia que Junqueiro era "um grande poeta menor" - um poeta menor, sim, como entendem os críticos vulgares, mas um grande poeta menor...
Aqui fica a beleza dos mais belos versos do poeta de Freixo-de-Espada-à-Cinta.

REGRESSO AO LAR

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...

Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas manso, muito manso...
tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar!

Guerra Junqueiro

Africanina

Reincidindo no delito poético, dou a público um poema de Rodrigo Emílio, poeta que oficialmente não existe (e mesmo a academia quando premeia vai a correr arrancar o edital e escondê-lo, não vá saber-se da coisa...)


PROTESTO INADIÁVEL

As catraias africanas,
que eu vi ainda há instantes,
porque razão já não trazem capulanas
e turbantes?...

Por que vestem camisola
e usam saias remendadas
e andam a pedir esmola
e habitam águas-furtadas,
as raparigas de Angola
que se dizem "retornadas”?...

(Oriundos doutra luz,
os seus corpos estuantes
reclamam panos crus;
querem ver-se como dantes:
-seminus
e semelhantes
a bambus
bamboleantes!)

Que vertigem geográfica
animou fardas perjuras
a deixarem toda a África
às escuras ... às escuras?!...

Cem mil moças em desfile,
como corças acossadas...
-Glória aos capitães d’Abril!
-Vivam as Forças Armadas!

... As moçoilas angolanas
da Rua dos Navegantes
já não trazem, como dantes, capulanas
e turbantes...


RODRIGO EMÍLIO

Espelho meu

E neste reflexo narcísico viro-me para um poema de Manuel Bandeira, que também se lastimava com ironia de nunca ter deixado de ser um provinciano. Calculo que não lhe faltasse a hostilidade do pessoal cosmopolita e civilizado lá da terra dele.

Auto-retrato

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;

Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crónicas
Ficou cronista de província;

Arquitecto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,

Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.


Manuel Bandeira

Regresso às musas

A opinião que se publica parece-me embalada em demências consensuais. Acontece com frequência. Para fugir da praia (não se combate a maré, espera-se que passe) volto à poesia, de onde tenho andado afastado. Com Guerra Junqueiro, que nunca cometeu o pecado de ser consensual.

PORTUGAL

Maior do que nós, simples mortais, este gigante
foi da glória dum povo o semideus radiante.
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,
seu torrão dilatou, inóspito montado,
numa pátria... E que pátria! A mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!
Campos claros de milho moço e trigo loiro;
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;
gados nédios; colinas brancas olorosas;
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:
e entre a harmonia virgiliana um povo rude,
um povo montanhês e heróico à beira-mar,
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.
Cada vila um castelo. As cidades defesas
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;
e, a dar fé, a dar vigor, a dar o alento,
grimpas de catedrais, zimbórios de convento,
campanários de igreja humilde, erguendo à luz,
num abraço infinito, os dois braços da cruz!
E ele, o herói imortal duma empresa tamanha,
em seu tuguriozinho alegre na montanha
simples vivia – paz grandiosa, augusta e mansa! -,
sob o burel o arnês, junto do arado a lança.
Ao pálido esplendor do ocaso na arribana,
di-lo-íeis, sentado à porta da choupana,
ermitão misterioso, extático vidente,
olhos no mar, a olhar sonambolicamente...
«Águas sem fim! Ondas sem fim! Que mundos novos
de estranhas plantas e animais, de estranhos povos,
ilhas verdes além... para além dessa bruma,
diademadas de aurora, embaladas de espuma!
Oh, quem fora, através de ventos e procelas,
numa barca ligeira, ao vento abrindo as velas,
a demandar as ilhas de oiro fulgurantes,
onde sonham anões, onde vivem gigantes,
onde há topázios e esmeraldas a granel,
noites de Olimpo e beijos de âmbar e de mel!»
E cismava, e cismava... As nuvens eram frotas,
navegando em silêncio a paragens ignotas...
– «Ir com elas...Fugir...Fugir!...» Ûa manhã,
louco, machado em punho, a golpes de titã,
abateu, impiedoso, o roble familiar,
há mil anos guardando o colmo do seu lar.
Fez do tronco num dia uma barca veleira,
um anjo à proa, a cruz de Cristo na bandeira...
Manhã de heróis... levantou ferro... e, visionário,
sobre as águas de Deus foi cumprir seu fadário.
Multidões acudindo ululavam de espanto.
Velhos de barbas centenárias, rosto em pranto,
braços hirtos de dor, chamavam-no... Jamais!
Não voltaria mais! Oh! Jamais! Nunca mais!
E a barquinha, galgando a vastidão imensa,
ia como encantada e levada suspensa
para a quimera astral, a músicas de Orfeus:
o seu rumo era a luz; seu piloto era Deus!
Anos depois, volvia à mesma praia enfim
uma galera de oiro e ébano e marfim,
atulhando, a estoirar, o profundo porão
diamantes de Golconda e rubins de Ceilão!


GUERRA JUNQUEIRO

Jorge Brum do Canto

O primeiro filme da semana luso-espanhola foi o “Chaimite”, de Jorge Brum do Canto. Passou na segunda-feira dia 12 de Maio de 1980, pelas 18 horas, no “Nimas”. A apresentação esteve a cargo de Luís de Pina, e esteve presente o próprio realizador. Apetecendo-me agora dizer mais sobre essa grande figura do nosso meio cinéfilo que foi o Luís Andrade de Pina, que veio entretanto a falecer ainda muito novo, vou no entanto, para não me dispersar, recordar um pouco do cineasta de “Chaimite”, concretamente alguns aspectos curiosos da sua vida.
Jorge Brum do Canto, o homem de Porto Santo, tinha uma personalidade um tanto original, alguns diriam excêntrica. Segundo os que o conheciam, teve toda a vida, e que se soubesse, dois amores a concorrer com o cinema: a gastronomia, ou mais exactamente a culinária, e a pesca.
Da primeira paixão deixou-nos um legado impressionante: o monumental “Livro de Pantagruel”, vastíssimo repositório de receitas, ainda hoje sem rival em língua portuguesa no que respeita ao tamanho – com mais de 35.000 receitas permite bem que cada um execute uma diferente para cada refeição sem correr o risco de a repetir no que lhe restar de vida. O “Livro de Pantagruel” foi a obra da vida da sua iniciadora, a mãe de Brum do Canto, Berta Rosa Limpo, e dela tomou ele esse entusiasmo, passando as sucessivas edições a aparecer como co-autoria.
Da sua paixão pela pesca desportiva (contam que trocava tudo por uma boa pescaria) também nos ficou pelo menos um legado que surpreenderá até mesmo muitos entusiastas da modalidade: são os achigãs. Esta espécie piscícola é americana de origem: mas aconteceu que Brum do Canto numa das suas surtidas piscatórias teve a ideia de trazer exemplares para Portugal, por se lhe afigurar que valia a pena tentar a sua introdução, pelo potencial que apresentavam para a pesca e para a gastronomia.
E aconteceu que os achigãs deram-se por cá como ... peixe na água! Espalharam-se rapidamente pelas nossas albufeiras, rios e barragens e aí estão a enriquecer a nossa fauna piscícola – para gáudio dos pescadores, e dos outros, os que só comem.
A acrescer a tais paixões, Brum do Canto foi ainda um homem do cinema durante toda a sua vida, e também nesse campo nos deixou obra que vale a nossa atenção.
Mas termino por hoje, sem chegar a falar de cinema, para não me acusarem de fazer textos excessivamente longos. Mas ainda falarei do “Chaimite”. E também devia falar de Luís de Pina, e da Cinemateca Portuguesa, de que ele foi o segundo director, e também do Dr. Félix Ribeiro, o ilustre pai-fundador da instituição e seu primeiro director – que era alentejano de Estremoz, para além de todas as restantes qualidades. Mas estou a ver que não me chegava o blogue.

quinta-feira, março 18, 2004

Viver pelo espírito

Visto o êxito do anterior pensamento de Fernando Pessoa, esse desconhecido (Pessoa atingiu aquele patamar de consagração para além do qual os escritores deixam de ser lidos, como Camões), repito a graça reproduzindo aqui mais um pequeno excerto das suas reflexões, um trecho que em tempos já foi uma citação vulgar e repetida - mas creio que já não é.

"Por vitalidade de urna nação não se pode entender nem a sua força militar, nem a sua prosperidade comercial, coisas secundárias e por assim dizer fisícas nas nações; tem de se entender a sua exuberância de alma, isto é, a sua capacidade de criar, não já simples ciência, o que é restrito e mecânico, mas novos moldes, novas ideias gerais, para o movimento civilizacional a que pertence. É por isso que ninguém compara a grandeza ruidosa de Roma à super-grandeza da Grécia. A Grécia criou uma civilização, que Roma simplesmente espalhou, distribuiu. Temos ruínas romanas e ideias gregas. Roma é, salvo o que sobremorre nas fórmulas invitais dos códigos, uma memória de uma glória; a Grécia sobrevive-se nos nossos ideais e nos nossos sentimentos."

O cérebro de Bush

Afinal existe! Quem o afirma são uns jornalistas americanos, que lançaram a semana passada um livro com o título "Bush's Brain" e um filme com o mesmo título.
Segundo os descobridores, o cérebro em questão, até agora nunca localizado e cuja existência era frequentemente posta em dúvida, chama-se Karl Rove, e mantém-se inteiramente desconhecido.
Tomei conhecimento do extraordinário achado através da CNN, e verifiquei que o rumor já chegou ao "Fascismo em Rede".

Pessoa e o provincianismo

Sendo este um obscuro blogue de província, justificadamente encarado com superior desprezo pela gente civilizadíssima que anima os eventos (happenings...) que fazem a actualidade, encontrou hoje ânimo na leitura de um conhecido trecho de Fernando Pessoa, que lhe soube a maná dos deuses.
Com a sua perspicácia analítica Pessoa traçou o retrato implacável dos nossos cosmopolitas de ontem e de hoje. Ora façam o favor de ler, e depois digam-me se não os reconheceram logo.

"Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num sindroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. 0 facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.
0 provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela - em segui-la pois miméticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.
0 síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes:
o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração plo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Se há característica que imediatamente distinga o provincianismo, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas .
(....) 0 amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. "

Evocação de Perdigão Queiroga

A lembrança da Semana Luso-Espanhola de Cinema falada no postal anterior ficou para mim sempre associada ao desaparecimento de Perdigão Queiroga. Eu conto.
O António Lopes Ribeiro tinha programado para a sessão de terça-feira dia 13 de Maio de 1980 a apresentação de “Fado”, o filme mais representativo da obra de realizador de Perdigão Queiroga. E planeara com a afectividade que também o caracterizava homenageá-lo nessa ocasião, festejando-o pelo filme e pelo aniversário – tinha reparado que ele faria anos na segunda-feira dia 12 de Maio.
Mas Perdigão Queiroga já não completou 65 anos. Foi a enterrar no sábado, 10 de Maio, após missa de corpo presente em São João de Deus, em cerimónia oficiada pelo saudoso Padre Teodoro. Tinha falecido num violentíssimo acidente de automóvel, na estrada de Alcoentre.
A exibição do “Fado”, poucos dias depois, decorreu assim no sentimento doloroso daquela ausência imprevista, bem presente nas palavras comovidas de António Lopes Ribeiro. Recordo bem a emoção sincera, a mágoa profunda do António perante aquela brutalidade do destino. Era uma amizade de 45 anos!
Falemos então de José Manuel Perdigão Queiroga. Nasceu em Évora a 12 de Maio de 1916 - era alentejano dos quatro costados. Posteriormente a sua vida iria decorrer longe do Alentejo, como também acontece à maioria dos alentejanos.
O seu primeiro trabalho no cinema foi como ajudante de operador de Isy Goldberger na filmagem da “Revolução de Maio”, de Lopes Ribeiro, em 1936. Continuaria depois a trabalhar nas “Produções A.L.R.”, colaborando em inúmeros filmes, documentários e de ficção, bem como reportagens, em Portugal e no estrangeiro, com realização ou produção de ALR. Seria essa a base da sua aprendizagem. Mas o propósito de aperfeiçoamento técnico levou-o aos Estados Unidos, onde trabalhou como operador e montador na “Pathé News” e na “March of Time”, decorria então a Segunda Guerra Mundial.
Após regressar a Portugal viria a ter a sua consagração como realizador ao dirigir em 1947, para a “Lisboa Filme”, o célebre “Fado, História de uma Cantadeira”, com Amália Rodrigues, Virgílio Teixeira e Vasco Santana. Esta permanecerá para sempre a sua obra máxima, e um marco do cinema português, quanto mais não fosse pela importância que teve na carreira de Amália (e também de Virgílio Teixeira, já agora). Foi um sucesso a nível de popularidade, e ainda hoje contém alguns dos momentos marcantes do cinema português (a interpretação de “Barco Negro”, ali estreado, é arrepiante de beleza, aquela beleza que só Amália podia transmitir – contaram-me que a cena da casa de fados, onde o público adere arrebatado perante aquela canção nova e estranha, não precisou de ser representada: as pessoas que estavam ali para a representar espontaneamente reagiram assim).
Depois do êxito de “Fado”, Perdigão Queiroga criou nos anos cinquenta a sua própria empresa, e o seu próprio estúdio. Viria a dedicar-se durante anos à realização de documentários e reportagens. Entre 1958 e 1961, substituindo Lopes Ribeiro, dirigiu as actualidades cinematográficas do Secretariado Nacional de Informação, denominadas “Imagens de Portugal”.
Entretanto tinha continuado a marcar a sua presença na longa metragem de ficção, embora nunca voltasse a atingir o êxito do primeiro filme. Foi o realizador de “Madragoa”, em 1950, “Sonhar é Fácil”, em 1951, “Os Três da Vida Airada”, em 1952, e “Planície Heróica”, em 1953 (repare-se na continuidade, quatro filmes em quatro anos, que julgo caso único entre os cineastas portugueses). Depois realizaria uma versão de “As Pupilas do Senhor Reitor” (1960), e ainda “O Milionário” (1962), e “O Parque das Ilusões” (1963).
Ao todo, realizou no género documental, desde "Caparica, Praia de Sol", em 1938, até "Os Lobos", em 1978, um total que atinge dezenas de títulos. Fundou e dirigiu também um semanário cinematográfico, o “Visor”, nascido em 1961.
Mas posteriormente a 1963 não voltou à ficção: a crise era geral. Passou os anos que se seguiram a produzir exclusivamente documentários, actualidades, filmes publicitários, no âmbito da sua actividade empresarial. E na sua empresa viria a ser apanhado pela demência revolucionária, sendo tal como outros expulso do que era seu por alguns que tudo lhe deviam – porque era o patrão... E na sequência disso a empresa se afundou, em ruinosa gestão dos novos patrões.
Foi na luta para reconstruir a sua vida, trabalhando com denodo, que viria a morrer ao volante do seu automóvel, esmagado por um camião, nessa fatídica noite de 8 para 9 de Maio de 1980.
Perdigão Queiroga permanece sem a consagração e o reconhecimento que merece, sobretudo na sua terra. Onde tantas nulidades são nome de rua.

quarta-feira, março 17, 2004

Lembranças do tempo das fitas

Em Maio de 1980, com decisiva ajuda do pai deste rapaz, realizou-se em Lisboa uma Semana Luso-Espanhola de Cinema, organizada com entusiasmo por António Lopes Ribeiro.
Decorreu no Cinema Nimas, entre os dias 12 e 18 de Maio, em sete sessões consecutivas, todas às 18 horas. Foram exibidos quatro filmes portugueses: “Chaimite”, de Jorge Brum do Canto, “Fado”, de Perdigão Queiroga, “Frei Luís de Sousa”, de António Lopes Ribeiro, e "Camões”, de Leitão de Barros. E três filmes espanhóis, “Sin novedad en el Alcázar”, de Augusto Genina, “Raza” e “Franco, ese Hombre”, ambos de José Luís Saenz de Herédia.
A Semana anunciava-se como o lançamento do CIF, Centro Ibérico de Filmologia, uma velha ambição de António Lopes Ribeiro. A filmologia, explicava ele, “é uma disciplina de carácter científico que tem por objectivo próprio o estudo sistemático e exaustivo dos fenómenos estruturais e implicações extrínsecas do cinema, encarado este como “universo paralelo”, estrutural e formalmente autónomo” (a “galáxia Lumière”, no dizer do António).
A finalidade primária da filmologia é a de incentivar didacticamente a cinefilia, despertar o sentido crítico, a sensibilidade ética e estética, alargar o conhecimento histórico do fenómeno cinematográfico em todas as suas determinantes e implicações”. Nem mais, nem menos.
A tal filmologia já tivera os seus tempos de glória, pelos idos de quarenta, e ALR orgulhava-se (ele era vaidoso ...) de ter sido eleito membro do Bureau Internacional de Filmologia já no I Congresso de Filmologia realizado na Sorbonne em 1949.
Porém, o nosso Centro Ibérico de Filmologia deve ter nascido um tanto malfadado, e a sorte foi-lhe madrasta. Nada mais realizou efectivamente do que esta primeira e única semana luso-espanhola de cinema. Nas reuniões com vista à constituição de uma pomposa comissão organizadora do CIF, nesse remoto mês de Maio, estiveram, convocados pelo vigor do António, os espanhóis Ana Mariscal, José Luís Saenz de Herédia e Ricardo Alba, e os portugueses Félix da Costa, Domingos Mascarenhas, Luís de Pina, Matos Cruz e Orlando Vitorino – além do próprio António Lopes Ribeiro e eventualmente mais alguém de que me tenha esquecido.
Mas nada mais saiu dali do que umas agradáveis sessões de tertúlia e cavaqueira (discutir os estatutos do centro, em linguagem oficial).
Como este vosso amigo esteve então presente nessas tardes no Nimas e acompanhou com interesse a tal semana tem ainda em arquivo umas recordações que não quer deixar de partilhar em próxima continuação deste postal.

terça-feira, março 16, 2004

O País das Maravilhas

Confesso que ainda não estou em mim com a supreendente prova de capacidade de renovação que a nossa bem-amada classe política entendeu fazer nas eleições europeias.
Uma corrida entre Sousa Franco e Deus Pinheiro! Mas que vigoroso renovamento!Quem se lembraria destas jovens promessas?
E os demais? Nem consigo falar. A senhora Ilda é tão imprevisível como o saudoso camarada Cunhal. E o jovem Monteiro, então - uma surpresa total!
Não há dúvida: será bom que não morra depressa porque o mundo ainda me reserva muita coisa para ver.
Entretanto descobri um blogue novo (e de gente nova, ao que explicam eles). É o "Viriato & Maquiavel".
Saúdo daqui os dois. Muito precisados andamos do heroísmo de um, da sabedoria e lucidez do outro, e da irreverência de ambos.

Haja Deus!

Uns jornais de hoje anunciam que já foi escolhida a cabeça da lista PSD/CDS às próximas europeias. Será o Prof. João de Deus Pinheiro.
Se fosse primeiro de Abril, eu julgava que estavam a caçoar comigo. Mas não; por mais que custe a acreditar, tenho que admitir que poderá ser verdade.
O ínclito varão tem andado, como todos saberão, ocupadíssimo na reforma da administração pública, num cargo criado para ele pelo seu ex-Secretário de Estado e ex-inimigo, Durão Barroso. Agora que a administração está reformada e o homem está exausto, eis o merecido prémio (de reconciliação, dirão alguns mal intencionados - mas não, é só merecimento).
Aliás, cumpre recordar que pela Europa já ele andou, deixando por lá obra nunca vista (espero que também não interpretem mal). Só não deixou a manta (cala-te boca!).
E por cá, o que aí vai de extraordinárias realizações? Como Ministro da Educação, um portento. Como Ministro dos Estrangeiros, um espanto. Como Reitor da Universidade do Minho, um prodígio. Como Reitor da Universidade Moderna, o cúmulo dos prodígios ...
Não há que estranhar a distinção: em tudo o que tocou ele imprimiu a marca da sua capacidade de realização e do seu talento. E já esteve em praticamente toda a parte ... Enfim: um quase Deus!....
Não há que duvidar que o País vai estar dignamente representado por esses areópagos europeus. E em todos os torneios de golfe do continente. Podia lá mandar-se para a Europa um sujeito que nem soubesse jogar golfe!
E andava eu a rir-me com a escolha do PS.... Começo a desconfiar que afinal ainda não vi tudo neste mundo.

segunda-feira, março 15, 2004

O Eduardo tem um blogue!

Um homem sente mesmo que está velho quando está muito distraído a admirar uma moça espectacular e ela de repente corre para ele e lhe chama tio ...
Às vezes também dá um certo desconforto encontrar um blogue como este, do Eduardo; quantos anos terá já o Eduardo... acho que deve ter feito os trinta! Valha-me Deus!

Aditamento e esclarecimento ao postal antecedente

Contrariamente ao que tem sido dito e vulgarmente aceite, não creio que Aznar tenha perdido as eleições em consequência do massacre de quinta-feira.
Na verdade tinha começado a perdê-las em momento muito anterior. O erro capital foi realmente a escolha do seguidismo cego e incondicional perante a política de Bush para o Médio Oriente. Aznar agarrou-se a essa opção como a um passaporte para a imortalidade, a oportunidade de deixar a sua marca na História. Acreditou que daí só lhe viriam vantagens, e com baixo custo. Era fácil, era barato, e daria lucros aos milhões. E teimou nessa ronha de merceeiro guloso, quando tudo aconselhava prudência.
Recordemos os factos: na época o envolvimento da Espanha na guerra tinha contra ela a oposição da opinião pública, numa proporção que todos os estudos indicavam ser de oitenta ou noventa por cento. Aznar, mesmo assim, teimou. Pode-se fazer isto ao mandato popular? Ao povo soberano? Poder pode - mas tem os seus perigos: a gentinha compreensivelmente não gosta. Aznar teimou, arrogante. Tudo correria bem, e “eles” acabariam por vir comer-lhe à mão. A multidão gosta dos vencedores.
O facto é que com essa atitude criou internamente um problema que não tinha, uma frente de combate contra os seus concidadãos que não conseguiam sentir essa guerra como coisa sua, nem ver nela nenhum interesse próprio para Espanha.
Passado tempo tudo começou a correr mal. Proveito não colheu nenhum, que apresentasse orgulhoso aos seus concidadãos. E chegaram os corpos das dezenas de soldados mortos no Iraque. Aznar teimou ainda – nada se tinha alterado, nada tinha para alterar. E o povinho pasmou, chocado perante tamanha insensibilidade. Firmou-se aquela certeza de que “a guerra é deles, os mortos são nossos”. Consolidou-se definitivamente a cisão entre o sentimento popular e o governo.
Este comportamentos, um tanto autistas e com frequência aldrabões, parece que eram afinal a manifestação de uma tendência governativa, e não factos isolados. Basta lembrar os tristes episódios relacionados com o petroleiro “Prestige”, a gestão desonesta e trapalhona que então o governo fez de tal problema, quer tentando empurrar o lixo para os outros, quer tentando manipular a informação – tudo em similitude completa com o que se verificou agora com a crise despoletada pela tragédia de quinta-feira.
Os espanhóis foram votar no domingo fartos de um poder que se tinha voluntariamente afastado deles, que tinha feito nascer entre eles mais divisões e antagonismos, que sentiam que lhes mentia e não estava disposto a ouvi-los. O crime e aquilo que se seguiu, a mal disfarçada tentativa de capitalizar as mortes, com despudor entre o ingénuo e o desavergonhado, acabou com a paciência que ainda existisse.
Aznar quis colar o seu destino ao de Bush, vendo aí a escada para a glória, a consagração como estadista. Colheu daí a perdição.
Repare-se que não estou a afirmar que não teria existido o atentado de quinta-feira se não fosse o apoio de Aznar a Bush. Isso não posso eu dizê-lo – se nada sei sobre quem foram os autores ou as suas motivações muito menos posso tecer hipóteses sobre os seus comportamentos passados ou futuros.
Mas algumas certezas me parecem evidentes. Desde logo, não fora essa política irresponsável e aventureira e não teriam ocorrido as mortes dos soldados espanhóis no Iraque. Já não é pouco. E não fora esse apoio não se teria radicado no povo espanhol aquela convicção amarga, que se ouve e sente, de que Aznar é muito mais amigo dos americanos do que dos espanhóis (quando afinal só o tinham eleito para defender os interesses espanhóis).
Tivesse ele optado por uma posição estritamente nacional, marcando bem a distância entre a Espanha e as políticas americanas, e acontecendo a tragédia que aconteceu quinta-feira a reacção popular perante ela teria sido bem oposta ao que se verificou: Aznar teria então os espanhóis unidos a seu lado no repúdio unânime do crime, em vez de os ter virados contra si a apontarem-lhe o dedo como culpado.
O facto é que em vez da saída pela porta grande cabe-lhe agora a retirada de rabo enrolado.
Da sua mão veio este milagre: a vitória de um Sapateiro que ainda há dois anos caracolava em todas as sondagens, e era apontado unanimemente como fadado para a derrota.
Por ironia, Aznar ainda conseguiu oferecer a Bush uma derrota bem desagradável. Este tornou-se num vencido das eleições espanholas, tanto como Aznar, e o seu silêncio embaraçado bem o revela.
Será que o desastre das eleições espanholas terá consequências nas eleições americanas?

domingo, março 14, 2004

Eleições em Espanha

Triste legado político, o de José Maria Aznar. Fosse por mérito próprio ou por acasos do destino, ou pela conjugação dos dois factores, chegou a ter a Espanha na mão; chegou a ter a oportunidade histórica de deixar uma Espanha mais unida, mais próspera, mais presente e prestigiada internacionalmente, dotada de condições de governabilidade estável através de um partido claramente maioritário, quase hegemónico dado o esgotamento visível do socialismo, o afundamento do comunismo, a estagnação e contenção dos separatismos.
O seu maquiavelismo pequenino e de vistas curtas acabou por deitar tudo a perder. Deu nova força ao socialismo, ressuscitou o comunismo, forneceu novo alento a todos os separatismos, dividiu dramaticamente os espanhóis.
Sem em troca ter obtido nada daquilo que os seus cálculos mesquinhos julgaram conseguir como apoteose para a posteridade. Imaginou ele que fazendo de figurante principal em empreendimento que sempre lhe foi estranho nem corria risco de maior (invadir e dominar um Iraque esgotado e desarmado por anos e anos de isolamento seria uma brincadeira para os mais poderosos exércitos do mundo) e poderia alcançar sucessos que a diplomacia espanhola há décadas perseguia como sonhos inatingíveis. Os americanos e os ingleses, mestres na hipocrisia, usaram-no para as suas próprias conveniências, deixando-o figurar na fotografia entre os grandes, como se fosse grande também. Mas depois não lhe cederam um milímetro na questão de Gibraltar, nem acederam a colaborar no desmantelamento da ETA (que não poderia sobreviver caso os serviços secretos de quem pode resolvessem fechar-lhe a loja), nem lhe deram apoio decisivo nos litígios com Marrocos, antes forçando a conciliação contrafeita.
Entretanto, o pior aconteceu - de forma violenta e inesperada, contra todas as previsões. Só que governar, como dizia o outro, é prever. Ou, como dizia um dos nossos, não se pode louvar governante que diga "não cuidei".
Agora, José Maria Aznar vai retirar-se envegonhadamente, deixando nas mãos do pobre sucessor que indigitou para o PP, um tal Rajoy só conhecido por ser homossexual e medíocre, uma tarefa que visivelmente excede as suas capacidades.
O mais fidedigno retrato do legado político de Aznar está na descrição que faziam hoje as agências da votação dele e da mulher. Desceram ambos do automóvel, de rostos crispados. Assim que os presentes os viram começaram as manifestações, uns a gritar-lhe apoio outros insultando o casal durante todo o tempo que demoraram a votar e a regressar ao carro. E lá partiram os dois, ele de gravata preta e cenho carregado, ela lavada em lágrimas.
Segundo as notícias, Ana Botella chorou o tempo todo desde que desceu até que reentrou no automóvel.
Quando eles se afastaram, os circunstantes, opostos e inimistados em tudo, continuaram a confrontar-se em violentas trocas de palavras, aqui e além acalmadas pela polícia.
Magnífico quadro da situação política espanhola. Que Deus ajude a Espanha.

Fantastique!

Afinal não anda longe do tema do "Sexo dos Anjos" a curiosidade pelo fantástico, pelo misterioso, pela ficção científica, por mitos e lendas, por outras criaturas e outros universos.
E como aqui tem sido norma a partilha, em verdadeiro serviço público, desafio hoje os leitores curiosos e aventureiros a explorar esses vastos mundos. Conheçam "Le Fantastique" e também "L'Annuaire du Fantastique et de la Science Fiction". Explorem bem os sítios e sobretudo experimentem as ligações. Há sempre mais para descobrir!

Um olhar católico sobre "A Paixão"

Finalmente, temos uma análise do filme de Mel Gibson de um ponto de vista católico. Na "Casa de Sarto", que é orientação firme e segura, já está escrito o parecer.
Como eu disse mais atrás, é preciso não esquecer que aquilo é cinema, e nessa medida o filme tem que ser visto e analisado como qualquer outra obra de arte cinematográfica. Bom é que se lembre tal facto, até para fugir a desvarios insensatos.
Mas também é verdade que, dado o tema em causa, a obra se reveste de especial sensibilidade para os crentes, e inevitavelmente será vista e sentida pelos católicos à luz da sua Fé.
Quando a Arte e a Fé se encontram, erguem-se catedrais. Mas eu ainda não vi ...

sábado, março 13, 2004

A natureza e os homens

Em certa passagem Jean Jacques Rousseau descreve o seu êxtase perante a natureza. Como é belo passear pelos campos, diz ele, observar as perdizes a voar graciosamente, pousando de árvore em árvore ...
Como sabe quem já viu, as perdizes não pousam nas árvores, e pouco voam. Na verdade são aves nada dotadas para o voo, deslocam-se normalmente andando, pé no chão, e só levantam voo quando acossadas por alguma ameaça; e mesmo nessa altura não são capazes senão de um voo desengraçado e de curto alcance, voltando a pousar no chão um espaço mais adiante.
Rousseau não podia saber isso, porque certamente nunca viu perdizes a não ser no prato, onde a ave em causa sempre gozou de justo prestígio. E saiu-lhe essa tirada porque provavelmente conhecia das suas utilizações decorativas as penas de perdiz, desde há muito apreciadas pela sua beleza pelos pintores e pelos chapeleiros.
O filósofo genebrino, como acontecia com os demais filósofos da moda seus contemporâneos, era um elegante de salão, e teria horror em passear-se efectivamente pela natureza bruta. O seu conhecimento da natureza ficava-se pelos jardins bem tratados da aristocracia - onde tudo se lhe apresentava racional e harmonioso.
Todavia, nunca a filosofia exaltou tanto a lição da natureza, invocou tanto os ditames da natureza, e combateu tanto o que proclamou como anti-natural, como com Rousseau e seus confrades. Tudo na filosofia do século das luzes procura apoio no que chama de natural. Assim, a sua visão do homem era justa e boa, porque era conforme à natureza humana; e as demais concepções más e injustas porque anti-naturais. As suas visões sobre a sociedade eram as que a natureza das coisas impunha, e as outras eram tributárias das fontes de infelicidade que as instituições, contra a natureza, tinham trazido às sociedades humanas.
A família, a propriedade, o Estado, a Igreja - tudo fontes da desgraça - eram imposições com que a sociedade manchara a liberdade, a igualdade, a bondade e a fraternidade que marca a natureza dos homens.
Analisando agora friamente essas proposições, é fácil observar que a pretensa "naturalidade" de tais convicções não passava de um conjunto artificioso de suposições, de mera construção intelectual baseada num profundo desconhecimento da natureza e dos homens. Rousseau descreve admirativamente o "bom selvagem" e as suas virtudes porque nunca viu nenhum. Exactamente como nunca observou nenhuma perdiz em natureza.
Todavia, as certezas transmitidas por esses filósofos impregnaram de tal modo a cultura do Ocidente que se tornaram omnipresentes, como axioma assente e indiscutível, em todos os discursos oficiais, ainda hoje aceites e correntes.
O pensamento comum deixou de as questionar, e tornou-se heresia pôr em dúvida verdades tão basilares.
Assim, os homens nascem naturalmente livres. Os homens são por natureza iguais. Os homens são naturalmente bons, como o demonstram os que se mantiveram no estado selvagem.
Libertados das cadeias sociais, que adulteram e corrompem essa sua natureza de seres livres e iguais, os homens manifestam a sua bondade natural e espontânea, em sociedades caracterizadas pela fraternidade geral.
Eliminando todas as desigualdades, todos os limites à plena manifestação da liberdade individual, obtém-se como fruto a livre associação dos indivíduos em comunidades onde cada um perseguirá o seu quinhão de felicidade, para felicidade de todos. Liberdade, igualdade, fraternidade. Ámen.

Almas Ardentes

Em "Wagon Master", o filme de 1950 que segundo John Ford é aquele que chegou mais perto do que ele pretendeu realizar ("came closest to being what I had wanted to achieve"), há uma sentença memorável, daquelas que se gravam no mármore da nossa alma para não mais se apagar.
A dado passo, Travis (Ben Johnson), um dos homens chave dessa narrativa fordiana, interpela Elder Wiggs (Ward Bond), o chefe dos mórmons que marcham em busca da terra prometida, ironizando com a sua Fé inabalável, a sua confiança ilimitada na Providência. Observa-lhe em tom brincalhão que Deus e ele parecem pensar sempre o mesmo ...
E o velho obstinado responde-lhe de imediato: " - Not always, son - sometimes He takes a little persuading").
Compreenderemos depois no desenvolvimento da história a importância dessa afirmação. É a Fé indomável que permite vencer todos os obstáculos. Deus ajuda os que se ajudam. Na impressionante sequência culminante da fita, quando a caravana dos mórmons, em fila paralela à montanha, vai escalando a muralha e a ultrapassa no final, alcançando o esplendor da terra prometida no vale que se oferece perante eles, ecoa a resposta de Elder Wiggs.
Assim é sempre, em todas as obras humanas que pela sua grandeza manifestam a protecção do Céu. Deus ajudou. Mas foi preciso convencê-lo. "Yes Sir".