sexta-feira, dezembro 31, 2004

As eleições e o Alentejo

Transcrevo das notícias de hoje:
"Em Beja, o PSD decidiu candidatar à frente da lista de deputados, a estreante Glória Marques da Costa, uma advogada de Lisboa, que se filiou no partido no congresso de Novembro.
Em Portalegre, avança o ministro da Agricultura, o açoriano Carlos Costa Neves, ex-líder do PSD-Açores e eurodeputado. A justificação é tratar-se de um "círculo essencialmente agrícola".
A ministra da Cultura, Maria João Bustorff, é a cabeça-de-lista por Évora - a justificação para a escolha é o facto de o Governo ter decidido deslocalizar para Évora a Secretaria de Estado dos Bens Culturais.
"
Está deste modo completo o elenco dos cabeças de lista do PSD pelos três círculos alentejanos nas próximas legislativas.
É demasiado esclarecedor para que sejam precisos comentários. O desprezo esmaga, e deixa-nos sem palavras.
O PS por seu lado já tinha anunciado os seus três primeiros candidatos nos mesmos distritos: Luís Pita Ameixa em Beja, José Carlos Zorrinho em Évora e Júlio Miranda Calha em Portalegre.
E o PCP já anunciou José Soeiro em Beja e Abílio Fernandes em Évora (não sei ainda quem será o cabeça de lista comunista em Portalegre, distrito onde aliás, dada a diminuição do número de deputados para dois, o PCP deixou de ter esperanças de eleger algum).
Tirando aquele pormenor algo humorístico das justificações (para Portalegre o açoriano Ministro das Pescas, porque o distrito é essencialmente piscatório, para Évora uma tia da Lapa, porque aqui existe uma Secretaria de Estado, para Beja uma advogada de Lisboa, porque sim) não se vislumbra nada de novo.
O PCP com o anúncio de Abílio Fernandes, respeitável septuagenário reformado, consolida a imagem transmitida pela escolha de José Soeiro: uma viagem no tempo, mas para trás - uma recriação voluntarista dos idos de 75.
E o PS avança com escolhas locais, mas diga-se já que apostando num equívoco. As escolhas apresentadas só são possiveis mediante um pacto de silêncio: os candidatos não podem dizer nada que clarifique o que pensam sobre o futuro quadro administrativo para o Alentejo. Acontece porém que dois deles já falaram, e muito, e os modelos defendidos são de todo antagónicos. Qual é o projecto do PS? O Alentejo dividido com que Luís Ameixa está publicamente comprometido ou o Alentejo único que Zorrinho sempre se comprometeu a defender?
Como é evidente, a experiência ensina, para estas legislativas a palavra de ordem será nada dizer que comprometa o partido, para o futuro, e faça surgir a polémica entre os candidatos, no presente.
Por outras palavras: - votai, votai, que depois logo se vê.
Meus queridos comprovincianos, não há volta a dar-lhe, nem ilusão possível: - estamos lixados!!(e fico-me pelo plebeu "lixados" para não dizer pior...)

UM VENCEDOR DA MORTE

Houve no século passado, em Portugal, um grupo de brilhantes escritores que a eles mesmos se chamaram os «vencidos da vida». Não resta dúvida que assinalaram um período áureo nas letras portuguesas. Mas o esplendor da forma, a riqueza de engenho, a capacidade descritiva, a penetração das análises psicológicas, o poder da imaginação criadora destes homens coincidia com o desfalecimento total da nação, que se precipitara nos abismos da decadência religiosa, moral, política e económica. Foi este espectáculo contristador que os levou ao desânimo, e alguns até mesmo ao desespero.
Eram com efeito vencidos da vida.
Nesse panorama, o suicídio de Antero de Quental não era de causar espanto. E o melhor que outros podiam fazer era procurar, como Oliveira Martins, nas glórias do passado lusitano um refúgio para esquecer as desgraças do presente. O autor do "Portugal Contemporâneo", páginas de amargura, era o idealizador dos heróis de outrora quando escrevia a "Vida de Nun'Álvares" e "Os Filhos de D. João I".
Olhando para a realidade dos seus dias, todos viam Portugal em ruínas, e não encontravam nenhuma saída. A ironia de Eça despejava-se como fel e Guerra Junqueiro era o poeta das maldições da Pátria.
Assim entraram pelos anos do novo século, vendo Portugal cada vez mais envelhecido e decrépito, sem energias para se levantar do marasmo em que caíra.
Foi quando um jovem ardoroso começou a compor versos de esperança. Na ânsia de renovar, formar, erguer os espíritos numa cruzada de recuperação, este jovem cavaleiro das letras falava uma linguagem diferente, a que não mais se estava acostumado. Tinha diante de si a Nação restaurada, quando ninguém mais acreditava na possibilidade de tirá-la das ruínas.
Por que desanimar ante o presente e quedar-se numa inerte atitude contemplativa em face das glórias do passado? Por que não retomar a caminhada histórica de Portugal, que se havia interrompido?
Foi o que tentou este poeta e pensador político, à frente de um pugilo de companheiros que desde logo conseguiu reunir em torno de sua personalidade vigorosa e atraente.
Portugal perecia pela falta de uma doutrina. Eis o que fazia ver o jovem, político e poeta, que arrancado à ilusão republicana dos seus primeiros anos vinha pregar corajosamente a restauração monárquica. Não porém a restauração da monarquia constitucional, que fora o primeiro passo para a ruína total da nação, consumada com a república. Era preciso tornar a descobrir o sentido da marcha histórica de Portugal, abandonada desde que, enfeudado economicamente à Inglaterra e ideologicamente à França de 89, o país perdera toda a autenticidade política. A doutrina que a podia salvar era uma doutrina fundada na tradição, na história, não como volta a um passado morto, mas como impulso de uma consciência secular desejosa de se renovar. A tradição — ensinava António Sardinha — é permanência na renovação, é a substância do viver colectivo, é a fonte do progresso autêntico.
Arrebatado deste mundo quando ainda na plenitude de suas forças, Sardinha deixava aos seus patrícios uma herança preciosíssima. Encontrara-se enfim a doutrina que levava Portugal a reencontrar-se consigo mesmo. Não era nenhuma elucubração meramente teórica, à maneira das abstracções do liberalismo. Não eram devaneios de saudosistas ou contemplações estéticas do passado. Era como que a intuição da própria essência nacional, era o fruto de uma rectificação histórica, valendo por uma contestação radical ao pessimismo dos vencidos da vida.
Sua pregação não foi vã. E quando os homens de bem do exército português resolveram limpar aquele fim de feira em que se transformara a república, a doutrina de Sardinha e seus companheiros forneceu aos estruturadores da nova ordem política os melhores elementos que puderam encontrar. Salazar restaurava a dignidade de Portugal no concerto das nações e saneava as suas finanças. Ao mesmo tempo, sinais de uma renovação mais auspiciosa se faziam sentir. A mensagem de Fátima irradiava-se por todo o país e espalhava-se depois pelo mundo. Era a ressurreição espiritual.
Entretanto, os herdeiros de Sardinha, fiéis ao pensamento do mestre e companheiro de lutas, continuaram a viver no exílio, ou na oposição. A restauração integral por que se batiam não chegara. E intransigentes, não pactuaram em nada com os desvios do Estado Novo português. Vinte e cinco anos após a morte do amigo dilecto e inesquecível, vinham de público homenageá-lo, em preito de saudade e de fidelidade, através de conferências que foram publicadas entre nós por "Reconquista". Dirigiam-se também à nação portuguesa fazendo ver qual a restauração, ou melhor, a instauração completa que propugnam, em manifesto subscrito por Hipólito Raposo, Alberto Monsaraz, Luís de Almeida Braga e Pequito Rebelo. Os quatro companheiros de António Sardinha, os seus companheiros da primeira hora, em meio às hesitações do presente reafirmavam a sua confiança na vocação de Portugal.
O telégrafo traz-nos agora laconicamente a notícia da morte de Hipólito Raposo.
Sua pregação chegara até ao Brasil. Quer pelas colunas dos "Diários Associados", quer pela colaboração dada a "Reconquista", este veterano da campanha iniciada por Sardinha fazia chegar até nós a sua palavra cálida e deleitava-nos com a sua maneira transparente, translúcida de escrever.
Mas aquela coluna partida do seu ex-libris — com os dizeres Ludibria vitae — estava a nos transmitir também as suas decepções, os seus cansaços. Quando o visitei, na mansão da rua São Ciro, há quatro anos, pareceu-me um leão alquebrado pelos anos, as lutas, os desenganos, um leão recolhido à sua caverna, como a pressentir a morte próxima, conservando porém no olhar aquela bravura indómita do rei das selvas. Alegrava-se vendo que no mundo luso das outras bandas do Atlântico encontravam repercussão as suas pregações, as pregações de António Sardinha. E como político experimentado, prevenia-me para que eu não viesse a sofrer desilusões neste trabalho insano e quase quixotesco, dos que desejamos reatar o elo histórico da vida de nossos povos.
Tenho diante de mim um de seus derradeiros artigos, «A crise das crises», escrito para "Reconquista". E aí leio:
«Há vinte séculos que se luta, pois desde a semana da Paixão os cristãos sempre viveram a resistir à perseguição e à adversidade.
Mas a grande crise do Ocidente nasceu com a Heresia Luterana, revigorou-se com os orgulhosos egotistas de Seiscentos e explodiu ruidosamente na Revolução Francesa. Ainda estamos colhendo os frutos de tão gafadas e venenosas sementes. Se é lei do cristão o sacrifício pelo Bem e pela Verdade sempre haverá razão de acusar e de bradar, só um que seja contra todos, pois a razão humana não é escrava do império do número.
Se não valer aos homens uma especial intervenção celeste, o cataclismo social poderá desencadear-se, como outros ruíram nos passados séculos, até extinguir de todo as civilizações, como a assíria, a egípcia, a grega ou a romana.
Essas civilizações morreram e não podiam remanescer, porque viviam de si e para si mesmas. Só a Igreja pôde salvar das ruínas o que em algumas havia de valores constantes: o Pensamento, o Direito, as Artes, as Letras, vitalizando a herança com as luzes da verdadeira espiritualidade. Também a Civilização Cristã pode sucumbir, eclipsar-se, escravizando-se os povos, assassinando os sacerdotes, incendiando as igrejas, exterminando gerações de crentes.
Mas a Igreja Católica mede-se em duração com própria eternidade, e qualquer poder humano ou satânico, destruidor dos ramos, das flores e dos frutos desta Àrvore da Redenção será sempre incapaz de prevalecer contra as eternas verdades que Cristo-Deus lhe deu para raízes
».
A fé e confiança inabalável na Igreja Católica fortaleciam o seu espírito. E a vista de Portugal, onde em Fátima se fizera sentir «uma especial intervenção celeste», reanimava o seu espírito combalido. Por isso nunca chegou a ser pessimista, jamais foi um desalentado. Morreu, sob o peso dos anos e das amarguras, mas sem ter perdido jamais a esperança.
Era este renovador das letras e do pensamento político de sua pátria que um dia, procurado por Eduardo Ortigão Burnay, neto de Ramalho Ortigão, recebia do autor das "Farpas" uma solicitação feita com insistência. Ramalho desejava avistar-se com Hipólito Raposo ou alguns dos outros redactores da "Nação Portuguesa", onde Sardinha e seus companheiros haviam desfraldado a sua bandeira.
Conta-nos Hipólito, em páginas reunidas no volume "Oferenda", o que foi este encontro de duas gerações. Pela boca de Ramalho Ortigão, em tom de penitência, falava a geração dos vencidos da vida. Referindo-se às desgraças, violências e crimes da república, acusava os homens do seu tempo, tendo para os novos uma palavra de esperança :
« — Fomos demolidores, negativos e dissolventes. Nada respeitámos, nada soubemos salvar; e as ruínas que hoje deploramos, ao desvario mental, aos erros dos homens do meu tempo devem ser atribuídos. Vejo agora aberto o caminho da salvação nacional: sigam por ele, para o bem da Pátria cega e martirizada. Neste exame de consciência, sinto remorsos com grande pena de não vos acompanhar. Cheguei tarde, só a tempo de vos deitar a bênção para a jornada...»
Quase ao findar dos seus dias de vida terrena, Ramalho Ortigão tornava a encontrar a esperança que perdera. Remanescente das épocas dos vencidos da vida, deixava a sua benção para esses vencedores da morte, sim — para os que faziam a Nação Portuguesa ressurgir de um entorpecimento mortal e iniciavam a grande campanha do resgate.
Hipólito Raposo foi um desses vencedores.
Hoje somos nós, no mundo luso destas plagas americanas, que precisamos de uma doutrina de salvação nacional, fundada na história e na consciência da nossa própria vocação, do nosso ser autêntico.
A democracia anglo-saxónica, em fórmulas importadas, o comunismo invasor, os socialismos desnacionalizadores, aí estão.
E o Brasil onde estará?
Saibamos redescobri-lo, como Sardinha redescobriu Portugal.
Peçamos a Hipólito Raposo uma bênção paternal, como a que ele recebeu de Ramalho Ortigão, uma bênção propiciadora da intervenção celeste que nos há-de salvar.
São Paulo (Brasil), Setembro de 1953.
J. P. Galvão de Sousa
(In «Gil Vicente», n.º 9/10, Setembro/Outubro de 1953, vol. 4, págs. 171/174)

quinta-feira, dezembro 30, 2004

Um candidato natural

Com as aflições em que vejo os grandes partidos para comporem airosamente as suas listas para as próximas eleições é inevitável que o olhar perscrute o horizonte à procura dos vultos representativos da actualidade que vivemos.
Quem, para representar a nossa gente e o nosso tempo? Quem, para arrastar o entusiasmo das multidões e alcançar enfim a identidade profunda entre representados e representante?
E o olhar detém-se, preso como por íman irresistível, na figura que entre todas se impõe entre os nossos contemporâneos.
Obviamente. O candidato natural é o Zé Vieira, aliás José Castelo Branco, aliás Tatiana Romanova, aliás “o Conde”, aliás White Castle, aliás o WC.
Este é o português do nosso tempo: náufrago de Moçambique, prostituto do Parque, travesti do Trumps, chulo bem sucedido, marchand sem nada para vender, sotaque pedante e pontapés na gramática, vedeta das revistas cor-de-rosa, borboleta tonta das luzes, das festas, do glamour das riquezas reais ou sonhadas, lição espantosa do fura-vidas que faz a nossa época.
Ele sim, é um documento vivo sobre o Portugal contemporâneo, um monumento ao desenrascanço e à vertigem destes dias de plástico, néons e lantejoulas.
Ele sim, para representar os valores, a sensibilidade, a civilização, a moral de um tempo.
Não esquecendo a menina Dulce Ferreira, já aqui assinalada, este sim, é realmente incontornável: Castelo Branco ao Parlamento!

A menina Dulce e o tsunami

A SIC Notícias transmitia uma reportagem onde eram entrevistados portugueses que partiam agora para a Tailândia, mantendo as importantissimas férias que tinham marcado antes da tragédia.
Todos manifestavam as suas boas esperanças nas almejadas férias, apesar dos manifestos contratempos que parecem resultar das notícias.
A dada altura ocupa o écran a Dulce, uma jovem desempoeirada, fresca e de ar espevitado, bonitinha até, a quem a repórter endereçou as mesmas perguntas.
Explicou a menina com a franqueza própria deste tempo que já tinha as férias marcadas, que não tinha ficado nada preocupada com o que tinha acontecido, porque os pais, que lá estavam, tinham enviado uma mensagem a dizer que tinha havido uns tsunamis, e umas coisas, mas estavam bem.
Nada de grave, portanto.
Vai daí a jornalista pergunta-lhe se estava triste com toda a situação, e com a mesma sinceridade a menina Dulce atira cá para fora esta pérola: "sim, claro, agora já não vou ter todas as condições de férias que iria ter se por acaso não tivesse acontecido nada disto, por outro lado, estou contente, porque vejo as coisas mais ao natural, como elas são."
Uma maravilha. E lá foi a menina Dulce, gozar as merecidas férias de sonho na Tailândia, agora "mais ao natural".
O que querem vocês que vos diga...

quarta-feira, dezembro 29, 2004

Alguns votam com os pés

Como alguns leitores estarão lembrados, José António Barreiros e Torquato da Luz já ocuparam a primeira linha na imprensa portuguesa. Se não estou em erro, Torquato chegou a ser director do "Jornal Novo" e Barreiros director de "O Diabo".
Em ambos os casos, pode adiantar-se que foram isso e bastante mais, antes disso.
Hoje se queremos ler algumas linhas da autoria deles poderemos encontrá-las na Revolta das Palavras e no Dia a Dia. Só na blogosfera.
O facto parece-me a mim cheio de significado(s). Mas isso deve ser dos meus olhos, sempre com um olhar sombrio sobre as nossas mais ridentes realidades.
Como se sabe, o nosso jornalismo é hoje libérrimo, e pujante, e de elevadíssima craveira - sente-se lá bem até o mais exigente.

Mais do mesmo

Começam a surgir as novidades para as próximas eleições.
Qualquer observador dirá que não são novidades, apenas mais do mesmo, o contínuo resvalar na mesma rampa inclinada, a descer não se sabe até onde.
Ainda assim, não deixo de me espantar.
O PS anuncia como cabeça de lista nos Açores o Dr. Ricardo Rodrigues.
Quem quererá tramar o PS, infiltrado na respectiva direcção? Ou é apenas autismo, que provoca uma absoluta insensibilidade às questões relacionadas com os escândalos sexuais e da pedofilia? Será que a direcção do PS ignora que colocar o Dr. Ricardo a encabeçar a lista de Ponta Delgada tem no local o mesmo impacto que teria o anúncio de Paulo Pedroso a chefiar a lista de Lisboa? (Consta aliás que este nome chegou a ser considerado como candidato! Trata-se mesmo de autismo - o PS está isolado do mundo exterior).
Em Coimbra o PS anuncia como cabeça de lista a estimável senhora D. Matilde Sousa Franco. Lembra-me aqui há uns anos quando o PSD nomeou Fernanda Mota Pinto para um cobiçado cargo, na Misericórdia de Lisboa, e apareceu logo um artigo de Paulo Portas intitulado "O tacho da viúva". Que critério é este? Ainda se trata de política? Ou já é outra coisa?
E largo por agora o PS, embora muito mais pudesse dizer.
E vamos ao PSD. Este decidiu incluir o fadista Câmara Pereira (para alargar a sua base de apoio?!!), e avançou sem se deter para outros abismos.
Em Bragança o cabeça de lista será Duarte Lima. Até poderá ter um bom resultado - mas garanto que lá no distrito toda a gente sabe alguma coisa do processo de enriquecimento desse filho da terra de Miranda. O conhecimento não se fica por aqueles que tiveram lícita ou ilícitamente acesso às páginas dos processos judiciais, ou das investigações policiais. Podem ganhar as eleições - mas a alma?!! Não digo mais - mas garanto que estamos perante um dos casos mais representativos da degradação dos costumes, da corrupção entranhada nos hábitos profundos desta república. Mais que Isaltino, mais que António Preto, mais que Valentim, mais que Fátima Felgueiras - porque se situa mais ainda do que esses no núcleo e na essência do poder político actual.
Outra notícia que me perturba: o Alentejo perdeu mais um deputado, devido à fatalidade demográfica. Passaremos a estar representados tão só por três deputados por Beja, três deputados por Évora e dois deputados por Portalegre. Somos mais de um terço do país - e estamos a extinguir-nos, sem que isso estremeça o marasmo e a indiferença de quem governa.
Mesmo assim a cobiça por tais lugares, e a fraqueza das estruturas políticas locais, vai trazer-nos de novo a situação já vivida antes: a colonização dos lugares elegíveis por notáveis de Lisboa que só cá virão na altura da campanha eleitoral. O PSD já disse que a cabeça de lista por Évora será a Ministra da Cultura, Maria João Bustorff. Embora acredite que a senhora já tenha estado em Évora, para almoçar no "Fialho" ou avistar o templo romano, por mim acho desoladora a escolha. Qual a ligação profunda que a dita senhora pode invocar com esta terra e estas gentes para que amanhã vá discursar a dizer que nos representa? (Supondo que a sua eleição visa ocupar o lugar, o que não é certo, ou só o será se o partido perder as eleições).
Apetecia-me continuar os comentários, mas torna-se desnecessário consolidar a reputação deste blogue com respeito a textos longos, amargos e chatos.
Faço apenas um reparo para o PCP, que assombrosamente parece ter optado por ressuscitar uma encenação épica daquelas prodigiosas óperas soviéticas ou chinesas dedicadas à glória das grandes lutas do proletariado. Todos unidos, olhos ao alto, bandeiras vermelhas ondulantes ao vento do palco, cantemos a glória do Partido!!
Só de punho erguido a canção terá sentido!....
O quadro é sem dúvida empolgante para os devotos, mas tem um sabor revivalista que nos transporta para outros tempos e outros lugares.
O cabeça de lista de Beja será José Soeiro! O secretário-geral é agora Jerónimo Sousa! O cabeça de lista por Portalegre será o saudoso José Luís de Avis?
Enfim, parece-me que pelo lado do PCP teve o PS muita sorte para estas eleições. Se as perder, com as condições que tem à partida, tudo na mão desde a comunicação social à presidência, só pode ser por culpa própria, única e exclusivamente.
Mas parece-me bem capaz disso.

Soneto da visitação

Vinde, adorai! Criados e parentes,
Tenho o presépio em nossa casa armado,
Vinde adorar o meu Menino amado,
Honrá-lo com carinhos, com presentes!

Muito quietinho, nas roupinhas quentes,
O infante dorme, dorme aconchegado.
É lindo, pois não é? O meu morgado?
Que tu, Senhor, em graça mo aviventes!

E, de joelhos, com um ar de boda,
Adora e pasma-se a assistência toda,
Como diante de um festivo altar.

“Que perfeição! Que enlevo de criança!”
— E pedem num louvor que não descansa
Que Deus nos dê saúde p’ra o criar!


António Sardinha

terça-feira, dezembro 28, 2004

ANTÓNIO SARDINHA — DOUTRINADOR DE DOUTRINADORES

Triste efeméride, a que vou recordar: — trata-se da morte de António Sardinha ocorrida no dia 10 de Janeiro de 1925, data sobre a qual são passados cinquenta e seis longos anos, num século caracterizado pela revolução permanente. Falecido na cidade de Elvas, próximo da Vila de Monforte onde nascera ao findar o século XIX, António Sardinha, alentejano até à medula, quis permanecer no Alentejo e morrer no Alentejo, legando à sua terra natal os restos mortais dum Português de lei, cuja memória veneramos neste ano de 1981.
«No Alentejo de Nun`Álvares e Beatriz da Silva, de António Sardinha e Pequito Rebelo, na grande província do misticismo rural, por onde passam e revoam a disciplina das Ordens monástico-militares e a força criadora dos lavradores e dos camponeses, fica desde agora a repousar o corpo do Rei da minha mocidade, sinal visível e oculto da vocação portuguesa. Do Aquém para o Além».
Assim se expressou o Dr. Henrique Barrilaro Ruas, nas páginas de "O Dia", quando em 29/12/1976 publicava um trabalho de que destaquei este parágrafo. O Autor recordava-nos o Senhor Duque de Bragança, após a morte de Sua Alteza, recentemente ocorrida, e encimava a sua habitual coluna (de então) com o título: «Dom Duarte Nuno».
No Alentejo onde vivo, naquele Alentejo que a Revolução de Abril escolheu como vítima — ou, mais do que isso, como mártir — dos seus loucos desígnios, é ainda «a força criadora dos lavradores e dos camponeses» que me dá alento e alguma inspiração para evocar as grandes figuras duma história ímpar que se chama: História de Portugal.
Pelo interesse que me suscitou na altura, e porque ainda hoje se revela como excelente introdução ao tema que me proponho desenvolver, aqui fica arquivado não só o referido parágrafo do Dr. Barrilaro Ruas mas também a minha homenagem a todos os Portugueses — mortos e vivos — que muito honraram o Alentejo e dos quais destacarei Santa Beatriz da Silva, recentemente canonizada, e o digno descendente dos Reis de Portugal, Senhor Dom Duarte Nuno de Bragança. D. Nuno Álvares Pereira é uma figura nacional que alia, no seu misticismo, a alma do herói e o espírito do religioso nato — António Sardinha e Pequito Rebelo ocupam no meu coração o lugar que reservo aos grandes de Portugal.
***
O Dr. Rodrigues Cavalheiro traçou-nos, com a sua incontestada autoridade, «o perfil de António Sardinha», em tantas páginas das suas obras evocativas do grande doutrinador, mas não posso esquecer uma Conferência proferida no Centro de Cultura Popular, no dia 10 de Janeiro de 1974, quando começava a ouvir-se (ao longe...) o dobre de finados da Nação Portuguesa, tal como era então constituída.
Nesse dia do fatídico ano de 1974 um dos mais destacados seguidores de António Sardinha na obra portentosa de dignificar a Cultura portuguesa sentiu como dever pincelar-nos o termo glorioso dessa vida, plena de vida, quando expirava, em Elvas e na sua Quinta do Bispo, «naquela noite frigidíssima de Janeiro de 1925», o Poeta de "A Epopeia da Planície", o criador de algo que sintetiza, neste século de decadência, os nobres princípios do mais puro Nacionalismo sob a fórmula dum perfeito entendimento entre a Nação que somos e o Rei que a soubesse amar em toda a plenitude. E depois?
Depois — sigo ainda o Dr. Rodrigues Carvalheiro — «foi o trágico e imponente cortejo, com os sinos de todos os povoados a badalar o seu funéreo adeus, ao longo de trinta quilómetros como jamais havia visto aquela planura heróica que ele soubera cantar como ninguém; a lenta jornada para Monforte, onde se chegou ao anoitecer, numa procissão de sabor medieval — como Afonso Lopes Vieira a definiu — por entre a boa gente alentejana, após um dia «inundado de um sol radioso» — recorda Pedro Theotónio Pereira — já quando a nascença do trigo novo começava a reverdecer a terra ».
Depois «um grande senhor rural e uma das derradeiras encarnações das autoridades sociais de outros séculos», homem que «pela inteligência, pelo exemplo e pela bondade», se tornara, muito mais do que alentejano, figura nacional; o integralista, «que havia sido mestre sempre escutado e chefe por direito natural», recolheu à sua origem, à nascente donde brotara o génio iluminado e a inteligência fulgurante do intelectual que tornou famosa a vila de Monforte no seu querido Alentejo. Depois «a espantosa entrada no cemitoriozinho da sua terra natal no regresso ao berço donde proviera» foi como que a síntese de uma vida que se repartiu por Portugal e (quantas vezes) pelo exílio, mas que acabou por unir Elvas a Monforte num amplexo de ternura popular e num sentido pungente de dor que só a morte sabe e pode provocar.
Em suma: «tudo acabara — mas tudo ia, no entanto, recomeçar». São ainda as palavras do Dr. Rodrigues Cavalheiro as que acabei de transcrever: elas sintetizam o pensamento de quem as pronunciou; exprimem as faculdades que o Mestre sabia inculcar nos seus discípulos e companheiros de jornada. É que — ao contrário do que imaginam os coriféus da desnacionalização a todo o preço — para um integralista o combate, o Bom Combate nunca acaba! E, acabando, teria que recomeçar, necessariamente...
Eis a razão porque — passado mais de meio século sobre «uma das mais sombrias datas da nossa história contemporânea» (frase atribuída a Maurras, relativamente à morte de Barrès e citada pelo conferente do Centro de Cultura Popular, de que agora me sirvo para atestar um dia fúnebre da nossa história), nesse mesmo Alentejo onde o clima mediterrâneo, na sua característica amplitude térmica, consegue em Janeiro (em pleno Janeiro de 1925, como no Janeiro de 1981) conciliar uma «noite frigidíssima» com «um dia inundado de um sol radioso» — a esperança de redenção, que não é apenas derivada da «força criadora dos lavradores e dos camponeses», mas «sinal visível e oculto da vocação portuguesa», leva-me à evocação de António Sardinha, cujas cinzas repousam na Província Portuguesa onde, também, ficou, «a repousar o corpo do Rei» que o Dr. Henrique Barrilaro Ruas considera como «o Rei» da sua «mocidade».
A Monarquia Portuguesa, ferida de morte em 1820 e sucumbindo na Rotunda às mãos da Carbonária, em 5 de Outubro de 1910, teve no Integralismo Lusitano — e em António Sardinha, o Mestre dessa plêiade brilhante de intelectuais que no nosso século revigoraram o Pensamento à luz do mais sadio Tradicionalismo — uma razão histórica para se poder afirmar como a única alternativa institucional perante o jogo macabro das várias repúblicas a digladiarem-se ferozmente!
Deve-se ao Integralismo Lusitano o estudo histórico de todas as nossas potencialidades feito sob directrizes intensamente patrióticas, à luz de uma doutrina que vem dos séculos e que pelos séculos fora se há-de consumar! As colunas de "A Monarquia", as páginas da "Nação Portuguesa" são o testemunho fiel de que penetrámos novamente na profundidade da História quando reconciliámos a origem secular da Monarquia Portuguesa com o Espírito da Igreja Católica Apostólica Romana, que àquela passou a certidão de nascimento. E que não só lhe assistiu ao nascer, como depois a amparou pelos séculos fora: — os Soberanos da Casa Real bem compreenderam que Portugal só era Portugal porque fora sempre cristão e católico, tradicionalista. Em suma, monárquico... Quando deixou de o ser afundou-se em contradições dogmáticas filhas de ideias alheias à sua vivência nacional...
Estudar o Movimento Integralista, seguir atentamente a evolução do pensamento de António Sardinha significa estarmos de acordo com o Passado naquilo em que ele nos pode servir de lição para o Futuro; significa ainda respeitarmos o Presente enquanto este souber constituir a ponte de passagem das gerações que passaram para as gerações vindouras. Compreender António Sardinha na sua luta de gigante contra a Democracia Liberal e a Maçonaria — que soube adoptar toda essa proliferação de repúblicas para impedir os povos de irem ao encontro da História buscar razões para melhor se entenderem entre si ou internamente, tanto no respeito das suas instituições tradicionais como na procura de formas de governo consentâneas com a estabilidade que, acima de tudo, deve aceitar o primado da Igreja — será igual a ter compreensão por esse Portugal (nobre mas decadente) que nos legaram, e nós nem sequer mantivemos na sua unidade secular.
Hoje, como ontem, é ainda possível a ressurreição — hoje, como ontem, porém, só se afirmam as nações que, próximas da sua tonalidade histórica, saibam compreendê-la e respeitá-la. Ora essa não é, decerto, a situação (revolucionária) do presente? É caso para pensarmos que, continuando o estádio de negação que se prolonga desde 74, não temos bases sólidas para reconstruir a nossa Pátria.
Num século profundamente internacionalista como o nosso, em que o universalismo católico foi soberanamente negado pelos arautos dum certo tipo de mundialismo maçónico apoiado no capitalismo liberal e seu filho dilecto, o comunismo marxista, não temos que reprovar a atitude de homens que foram autênticos heróis no começo dessa escalada contra a Civilização, que havia de prosseguir ou desenvolver-se ao longo de muitas décadas e sob imensos disfarces.
Foi o Integralismo Lusitano que desencadeou em Portugal o movimento renovador da Cultura; que produziu uma doutrina sempre actual, quando a saibamos estudar profundamente, ou adaptá-la de modo que o pensamento integralista siga as coordenadas históricas e enfrente os mais ingentes problemas sem abdicar da raiz que mantém o Estado apoiado na Pátria e esta expressa na Nação. Que é o cimento espalhado pelo Mundo a constituir argamassa de um Povo, por excelência, civilizado e civilizador!
António Sardinha, Escritor, Poeta e grande doutrinador é, para além de tudo, o pensador profundo da Lusitanidade e do Tradicionalismo, sabendo conjugá-los de forma que o ensaísta e o historiógrafo dêem por vezes lugar ao genialismo do polemista que revolucionou os métodos de crítica das ideias, ao ponto de ser considerado como «revolucionário da Contra-Revolução". A sua mentalidade renovadora e o seu espantoso poder criativo levaram o homem de acção a tomar atitudes que nunca o pensador se envergonhou de subscrever...
Legou-nos uma obra imensa pelo número das suas produções, especialmente pelo valor intrínseco dessa obra: dispersa por tantos volumes, e muitos deles só publicados a título póstumo já que a sua vida foi ceifada quando, em pleno vigor intelectual, traçava as linhas do combate por um Portugal monárquico e católico.
Figura controversa duma época em que a decadência dos costumes e a corrupção dos povos assentaram arraiais terá sido um exemplo moral para a sua geração e para as gerações vindouras. O Dr. Rodrigues Cavalheiro, na célebre conferência do Centro de Cultura Popular, chamava ao seu «apostolado contra-revolucionário» o melhor meio de manter permanente a doutrina integralista perfilhada ou renovada «por um escol magnífico de velhos admiradores e de jovens discípulos a que poderemos chamar póstumos» do Mestre, cujo «ideário» persiste «em imprimir directrizes à marcha do nosso tempo».
***
Alguns dos críticos do Integralismo não pensam, porém, que valha a pena cultivar a doutrina que serviu de base ao Movimento fecundo e vivificante que sustentou algumas décadas do século. É o caso por exemplo do articulista que, sob as iniciais E. V., publicou, no semanário "O País", uma ferroadas no Integralismo, considerando-o: «guarda-avançada, em Portugal, de certos e nocivos movimentos nacionalistas». Com o título, «Monárquicos no Governo da República», o referido articulista chega a esta conclusão: «os resquícios que, eventualmente, possa ter deixado como filosofia política estão de há muito ultrapassados e nem sequer podem considerar-se significativos».
Esta forma de análise sobre os pretensos resultados do Integralismo representa um estado de espírito muito propício à aceitação daquilo que na realidade o Integralismo sempre combateu — ou seja o «monarquismo sem monárquicos»! Como análise política (na sua profundidade...) chega ao impasse: — termina com um parágrafo que é (todo ele) a prova mais do que provada que os monárquicos, para serem verdadeiramente monárquicos, deveriam repudiar o Integralismo alinhando pelas hostes republicanas! Vejamos:
«Como quer que seja, os monárquicos dispõem-se a servir o País e, consequentemente, a república que nele se instalou há 70 anos. Só é de esperar que o façam com a honestidade de Canto e Castro cujo exemplo poderão seguir, sem se lembrarem de Paiva Couceiro. São os votos que formulamos neste começo de 1981».
Ora se o senhor E. V. formula esses votos não temos que o contestar — desejamos-lhe as maiores felicidades republicanas, ideário de Paiva Couceiro... Simplesmente há que recordar a E. V. que o Integralismo é uma «Doutrina Viva» e, como escreveu o prof. Jacinto Ferreira, no seu livro "No Debate das Ideias", é muito certo pensarmos antes desta forma:
«Para nós, monárquicos, que não cultivamos a demagogia nem a arte de iludir as massas, a doutrinação assume um papel primacial, pois entendemos que é da adesão das consciências, mais do que das inclinações sentimentais, que resultará a profunda transformação política que preconizamos e consideramos indispensável para bem de Portugal e dos portugueses».
Pese embora aos monárquicos republicanos, ou aos súbditos da República que vêem na Monarquia o perigo a esconjurar, há uma doutrina que perdura e que deve ao Integralismo Lusitano a sua expansão. O prof. Jacinto Ferreira, no seu trabalho citado, afirma: «a doutrina nunca poderá ser, porém, imutável e intolerável nas suas disposições e concepções» porque, «como coisa viva que é, está sujeita a toda a evolução e adaptação». Isto pensa também um discípulo póstumo de António Sardinha, que respeita integralmente as linhas de continuidade intelectual da Doutrina e que busca na prática a aplicação de princípios que eram ontem, e ainda são hoje, razão de perenidade pátria num exemplo de combatividade nacionalista que nada pede emprestado às repúblicas, e nada lhes fica a dever no combate que desenvolve.
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A luta política cega muitas vezes o espírito dos homens! E nem sempre permanece neles aquela isenção crítica que levou, por exemplo, um Gilberto Freyre a escrever, na sua obra "Aventura e Rotina", em relação a António Sardinha, palavras que vale a pena registar neste pequeno apontamento, quando visitava a sua Viúva, na Quinta do Bispo, da cidade de Elvas, e afirmava:
«Diante da sua mesa de trabalho, vem-me à lembrança a amizade que me ligou a este português de Elvas que não cheguei a conhecer senão através de cartas». E o homem do mundo, Gilberto Freyre, diz ainda, em referência a António Sardinha: «nele aconteceu o transbordamento em homem de letras de uma personalidade marcada pelo fervor combativo ou pela maneira pessoal de reagir contra convenções a seu ver desnacionalizantes ou desispanizantes do português; e a favor de tradições, no seu entender, essenciais à conservação do espírito nacional e do espírito hispânico, na gente portuguesa».
Esta forma de criticar o pensamento de Mestre António Sardinha, partindo da opinião de alguém que sempre se situou num quadrante de ideias nada confluentes com o Nacionalismo Integralista, é concludentemente a apreciação de um grande espírito sobre outro grande espírito. E significa que, melhor do que os nossos anti-integralistas e muitos puritanos do moderno patriotismo, compreendeu quanto representava de nacionalista o pensamento de António Sardinha no seu ideal hispânico.
Em "Aliança Peninsular" — obra tão controversa que, desde a sua publicação aos nossos dias, levantou sobre António Sardinha suspeitas de iberismo (o que é, precisamente, um oposto de hispanidade no sentido em que António Sardinha a considera), ao ponto de levantar polémicas e reacender querelas extintas — o seu autor, discernindo sobre a Igreja Católica e as origens políticas dos primeiros reinos peninsulares, para marcar o que considera como os primórdios civilizadores desses povos bem adiantados sobre os restantes que então se formavam na Europa, diz-nos: «precisamente da influência da Igreja sobre as direcções sociais do império gótico de Toledo deriva o seu grau de adiantada humanidade que dotou a Península com institutos e costumes só mais tarde, e por custoso esforço da civilização, estendidos aos demais países europeus».
Também na sua obra "À Lareira de Castela" António Sardinha pensava o Pan-Hispanismo como fenómeno de ligação entre a Espanha e Portugal, mas entendido num sentido diferente daquele que a política corrente considera a unidade dos povos peninsulares, e que o próprio Iberismo — fenómeno anarco-republicano e liberal-maçónico que é, ao contrário, a fragmentação da Península, já que aponta para o desmembramento da Espanha na antinomia da sua própria unidade, procurando construir uma realidade que, como o exemplo actual nos demonstra, faz com que o Reino vizinho se debata em violentos espasmos da sua consciência nacional — chega a preconizar pela violência ou pela adulação! António Sardinha cita mesmo o General Rodriguez de Quijano para deduzir do seu pensamento este pequeno período que realça: «na opinião geral só Espanha e Portugal pelos seus precedentes e índole especial de raça, podem chegar a ser o verdadeiro laço de união entre a Europa, a América e a África...»
Não estará neste pequeno naco de prosa de um espanhol, a quem o grande português cita (e que eu transcrevo), o exemplo característico de como cada um por si — Portugal e Espanha — servem à Europa de traço de união com a América e a África? Parece-me que neste momento até os terceiro-mundistas perfilhariam este pensamento... Se bem que a sua intenção seja outra, diferente e contrária: eles pretendem que a Península Ibérica faça a ponte, sim, mas entre o imperialismo continental Euro-Asiático (comunismo soviético) e os outros continentes por meio de uma aproximação ideológica em que Portugal e/ou Espanha sirvam de intermediários!
Ora Luís de Almeida Braga, quando escrevia (em "Posição de António Sardinha") o que passo a transcrever, lia muito bem fundo no seu espírito, citando-o: «abriu falência, no seu opressivo artificialismo, o Estado moderno. Autoridade, continuidade e uniformidade nos órgãos governativos e representativos, — eis a fórmula que se nos oferece para restaurarmos o equilíbrio perdido da sociedade. É assim restituí-la à sua estrutura medieval pela aliança proporcionada da unidade com a variedade, — da concentração com a descentralização». Para rematar deste modo: «Se Portugal quiser ser Portugal, é o caminho porque terá francamente de se decidir».
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Num trabalho desta natureza parece-me estar suficientemente desenvolvido (ou resumido?) o que se possa entender por Integralismo Lusitano e, através do insignificante labor de quem dá o melhor do seu esforço ao estudo do fenómeno integralista, esboçado, ainda que de modo muito sucinto, o pensamento de António Sardinha no início e direcção do movimento político e cultural que havia se levantar polémicas entre os portugueses ao longo de todo este século.
Como António Sardinha eu entendo que vale a pena meditar, estudando com fé para realizar convictamente uma obra que perdure. O seu grande amigo Luís de Almeida Braga, em "Espada ao Sol", diria de António Sardinha: «(...) ler, meditar e escrever eram para ele, nesse tempo, acções augustas. A sua curiosidade intelectual não tinha fronteiras. Sugava os livros como as abelhas chupam as flores. Contudo, tantas e tão variadas leituras não lhe secaram o pensamento nem o apartaram da vida. Era já vigorosa a sua personalidade para que pudesse corrompê-la o delicioso veneno dos livros. O seu coração ficou ardente como era, intacta a sua riquíssima sensibilidade. Eu o posso agora testemunhar, porque assisti às primeiras manifestações do seu espírito, sem que jamais nos separássemos».
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Lavrador e camponês — filho, neto e bisneto de lavradores e camponeses — não tenho, pelo lado materno ou paterno, outro vínculo que ligue à Terra e à Pátria que não seja o sentimento puro de que brota a minha tradição natural e secular resultante dessa ligação. Sem o mais ligeiro sentido de inferioridade, provinda do facto de ser provinciano e rural, curvo-me humilde e reverenciosamente ante a cultura e o exemplo do maior doutrinador de doutrinadores nascido no meu (e seu) meio e na terra alentejana de Monforte, no ano de 1888, para falecer com 36 anos quase sobre a fronteira das duas nações que mais amou e que são: Portugal e Espanha.
Ao sentir, nesta hora crítica da História, um mundo a despedaçar-se em convulsões subversivas sob os mais horríveis golpes terroristas e um país a retalhar-se por força do conluio dos mais absorventes internacionalismos, eu peço à humilde do rural para que proclame, em nome do Alentejo comum que nos serviu de berço, a minha sentida e comovida homenagem a um dos mais fiéis integralistas que, durante décadas e décadas, por um esforço hercúleo de inteligência e persistência, criou em todos nós, monárquicos e integralistas, o dever de o considerarmos como a incarnação viva de António Sardinha: — refiro-me a Mestre Pequito Rebelo.
Como António Sardinha, o Dr. José Adriano Pequito Rebelo é um «grande senhor rural» na verdadeira acepção da palavra. Eu comungarei com o pensamento do Dr. Pequito Rebelo, definindo deste modo o integralista:
«É um português perfeito, é um integralista aquele que, tendo o cérebro limpo dos preconceitos revolucionários e o coração cheio destes ideais, se votou, com espírito de sacrificar a própria vida, à restauração da Monarquia pura». (Extraído da sua obra-prima, "Pela Dedução à Monarquia").
Não admito de outro modo o monárquico. Só assim entendo o Integralismo.
Para terminar, recordo António Sardinha e o seu Poema "Deus na Planície", quando sonhava:
«É noite. Aqui não há mar, nem serra. Há o Infinito, o vago».
Eis o Alentejo: «de Nun`Álvares e Beatriz da Silva, de António Sardinha e Pequito Rebelo».
Diogo Barradas Curvo
(in «Resistência», n.º 1, vol. 2, 3.ª série, Janeiro/Fevereiro/Março de 1981, págs. 5-14).

segunda-feira, dezembro 27, 2004

Compasso de espera

Enquanto a minha comissão eleitoral não se decide, perdida a ouvir os especialistas de imagem, os técnicos de marketing, as agências de publicidade, e mais uma quantidade de doutores em sociologia eleitoral, fica em banho-maria a minha campanha para a escolha do melhor blogue de 2004, lançada pelo Geraldo Sem Pavor.
Entretanto, para continuar a mimar-vos com boas leituras, ofereço-vos um artigo já antigo (neste blogue, aliás, é tudo assim, antigo, e já há muito tempo) da autoria da Sra. D. Maria Manuela Couto Viana, que Deus guarde, onde esta resolveu brindar-nos com um trecho das suas memórias de rapariga vianesa.

ENCONTRO COM SALAZAR

Encontro uma pequena pétala de rosa entre as páginas dum Diário duma rapariguinha provinciana. Que descaminhos levou o meu Diário? Estava sempre escrito a tinta verde. Infantilmente, dizia-me que era uma esperança. Assinalei aquele dia de Abril de 1938, quando meu Pai me disse que íamos à Casa de Bélinho visitar o Poeta? Não era a primeira vez, mas aquela visita possuía especial significado, porque António Correia de Oliveira ia ler-nos o seu "Auto das Oferendas", que eu declamaria na festa do 1.º de Maio, a grande Festa do Trabalho, diante duma tribuna onde, entre as Autoridades convidadas, estaria Salazar. Aliás, todo o Auto lhe era dedicado.
Eu procuro descrever com a simplicidade e inexperiência daquele tempo tão cheio de entusiasmo, tão romanticamente vivido. A grande festa do 1.º de Maio de 38, o extraordinário Cortejo do Trabalho, o belo Auto do Poeta, não puderam ter a presença de Salazar. Eu senti, realmente, uma frustração. — «Eh, lá da tribuna, ó gente/ Dizei-me se está presente/ Aquele homem — Salazar/ Quero vê-lo ao sol de Deus,/ Deitar meus olhos aos seus/ Qual se deita um barco ao mar!».
A jovem que eu era, vestida com o traje de noiva de Viana, naquela tarde de Sol de Deus, não pôde, então, deitar os olhos a esse homem tão discutido e admirado, que tanto desejava ver.
« — Mas presença é uma aparência,/ Porque não anda em ausência/ Quem se traz no coração». Triste consolo! Havia, na ausência, um amargo travo de desengano. E eu também sofria com a cidade. Não fora António Ferro guardar a lembrança da beleza do espectáculo, teria o meu sonho morrido nessa tarde. Mas António Ferro não desistiu de apresentar o espectáculo em Lisboa, no Salão do antigo S.N.I., para que Salazar, enfim, o visse. E uma alegre caravana de moças vianesas partiu, um dia, da sua cidadezinha provinciana, a caminho da Capital. E éramos todas lindas — porque jovens e deslumbradas, «frescas Marias Lusitanas», como o Poeta as sonhou.
Nas malas, os ricos e variados trajes das camponesas do Distrito de Viana, da montanha até ao mar. Da montanha, a angélica Flávia, melgacense; quando envergasse o seu traje de Castreja, transportaria nos braços o peludo cachorrinho, representante, de boa escolha, do valente e fiel cão pastor de Castro Laboreiro. Igual tinha sido entregue em Viana ao Dr. Costa Leite (Lumbralles). E dar-lhe um nome? Eu lembrei o de «Economia». Aprovado por unanimidade. Em todo o meu caminho, partilhando, embora, do entusiasmo reinante, eu estava toda virada para uma preocupação que se avolumava, um receio de não cumprir como desejava. Por isso, a minha memória enchia-se de versos: — «Ó Lisboa, eu sou o Minho/ Que se meteu a caminho/ Na estrada de Salazar/ E que vos traz, Homens Bons, para vos dar». «Sempre fresca e rapariga/ Sou a raça nobre, antiga,/ A Maria Lusitana...» — «Eh, gente do varandim!/ Eh, lá, olhai para mim/ Que sou Maio. Eu Maio sou/ Vestida de Lavadeira,/ Qual a terra, a vez primeira/ Que de rosas se enfeitou». Assim me movia como sonâmbula, até à chegada. Só despertei na altura em que Francisco Ribeiro (Ribeirinho), indicava as entradas no pequeno palco, compunha a moldura das ofertantes, colocando-as pela ordem da entrega dos seus dons, seguindo o poema: O linho e a lã, o vinho e o pão, o bordado e a renda, o barco... «E pombas, lembrando agora/ As naves que céus em fora/ Hão-de ir à Índia dos astros». Assim eu ia apresentando, ladeada por duas figuras (uma das quais minha irmã) que apoiavam o longo poema com quadras, no inconfundível estilo do Poeta. Na noite da festa, Salazar estava finalmente presente, estava frente a mim, a dois passos. Assim, deitando meus olhos aos seus, «qual se deita um barco ao mar», eu pude dizer com maior entusiasmo: — «Ou vida, em tal estatura/ Que passa de criatura/ À força de ser Nação». Assim, Ele ali estava, entre os que eram o Estado e nós que éramos Povo — «A lenha do lume novo/ Nas raízes do passado». Desciam os degraus do palco as jovens camponesas, hieráticas, cintilantes de vidrilhos de luar e oiros antigos, ou desembaraçadas nos seus polícromos trajes de trabalho, graciosas nos seus chapéus de palha ou bioco montanhês, e depunham as ofertas aos pés dos Homens Bons. Não temesse Lisboa, de nós, nenhum mal. Porque, «Ela por nós, nós por ela,/ — Foram sempre a serra e a vela/ Quem deu a alma a Portugal». Salazar tinha lágrimas nos olhos e apertava nervosamente as luvas brancas que poisara no regaço. Estava imensamente comovido e deslumbrado pelo ineditismo do espectáculo, a vibração que se sentia no ar. — «Agora adeus! Que Deus fique/ Sobre Vós, como em Ourique,/ Cruz de estrela em que ficou./ Amigas, vamos embora,/ Cantando caminho fora,/ Pois Maio sempre cantou». O Auto findava ali. O resto do espectáculo continuava. No intervalo, fui, com o Poeta, à presença de Salazar. Timidamente lhe agradeci. Depois, alguém teve a boa ideia de instalar aquele colorido grupo de jovens nos degraus do palco. Fiquei quase aos pés de Salazar e reparei que abanava, com o programa, as pobres pombas de bico aberto, acaloradas, porventura sedentas. Discretamente, com um sinal, mandou que cuidassem delas, como do pequenino cão. — «Já tem nome?» Perguntou-me. Respondi-lhe que sim, que eu lhe tinha dado o nome de «Economia». Com grande espanto meu, sorriu-se abertamente, riu-se, quase, e assinalou o facto àqueles que o ladeavam. Principiou, então, a fazer pequenas perguntas alegres e vivas, por vezes propositadamente embaraçantes. A uma, e outra, e outra; quebrada a timidez e afastado o protocolo, todas respondiam como sabiam. A vivacidade e alegria vianesa criavam um ambiente especial. Eu é que lhe estava mais perto e saía da crisálida do temor. — «Como se faz a broa, como esta que me deram?» Valeu-me a minha infância de brincar no forno de um velho padeiro, a ver amassar e cozer. Riu-se à descrição da benzidela — «São Clemente te acrescente, São Mamede te levede». Passou, no palco, do Ribatejo bem batido; passou o bracarense Rei do Cavaquinho, o fado na voz de Ercília Costa. Passou a alegria e o talento de Beatriz Costa vestindo um traje sofisticado de vianesa, em cetim verde, saia de balão, chinelas prateadas. Alguém resolveu improvisar um vira minhoto para fecho do espectáculo. O par escolhido foi o Rei do Cavaquinho e eu. Nunca mais esquecerei esse vira. Quando regressei, disse-me Salazar: — «Não sabia que era mentirosa». — Porquê, Excelência? — «Porque disse há pouco que tinha chinelinhas prateadas e as suas chinelinhas são pretas. Prateadas são as da Senhora D. Beatriz Costa.» Lembrou Salazar, simultaneamente, um passo do poema: — Chinelinhas prateadas / — Que são as ondas bailadas...», e apontou as minhas chinelas (tradicionalmente pretas) e as chinelinhas prateadas de Beatriz.
Voltámos a Viana. Dias depois, aparecia no Século Ilustrado um retrato de Salazar com as suas duas pupilas e o seu cão «Dão». Creio que fiquei triste. O Século era de 21. A 24, escrevia-me Salazar.

«24/5/38.
Exma. Senhora.
Deve ter visto pelo Século de 21 que o cão mudou de nome. Custava muito dizer «Economia» e passou por isso a chamar-se «Dão». Ficou com este nome por me dizerem que o outro cachorrinho entregue em Viana ao Sr. Ministro do Comércio se chamava «Minho». Teremos assim os dois cães com que tiveram a gentileza de presentear-me portadores dos nomes dos rios que banham a província de V. Exa. e a minha. Peço no entanto a V. Exa. e suas gentis companheiras desculpa da troca. Com os melhores agradecimentos, de V. Exa. adm. mt.º grt.
A. Oliveira Salazar
»

Um encontro. Uma pétala de flor nas páginas dum Diário de rapariga. E um pobre soneto —
«Tinhas de ser qual és..........
..............................................
E, ao contemplar-te, eu fico na incerteza
Se te admiro como portuguesa
Se te adoro o teu perfil como mulher
».

Maria Manuela Couto Viana

domingo, dezembro 26, 2004

Eu metido em votações!

Até fiquei sem fala! E o coração quase parou!
Ai meninos! Eu candidato em eleições!
Fui visitar o Geraldo Sem Pavor, um blogue representativo da mais combativa e inconformista juventude eborense, e eis que deparo com o meu blogue incluído entre os nomeados para a votação do melhor de 2004. Está mesmo!
Olhem, vou já reunir a minha comissão eleitoral a ver se decidimos a estratégia da campanha. Depois darei uma conferência de imprensa a anunciar os próximos passos.

Novas ilhas

Hoje recomendo excursões a outras paragens: o blogue de Daniel Marques, Os Meus Olhos no Mundo e o blogue de Geist & Nahira, Atlantys.
Outros mundos a descobrir.

MEMÓRIA DE ANTÓNIO SARDINHA

I
Há mortos mais vivos do que certos vivos. Como há vivos mais mortos do que certos mortos. Ninguém, ao que suponho, ignora isto. Mas torna-se especialmente oportuno recordá-lo em determinados momentos da história. Da história dos Povos — e da história das Ideias.
No período decorrido entre as duas primeiras grandes guerras deste Século — creio que por 1930 ou 31, — o escritor francês Henrique de Montherlant, conhecido até aí como barrèsiano fervoroso, sentiu a necessidade de publicamente apregoar, com certo ruído, a sua independência do mestre e escreveu um artigo de escândalo com o título de Barrès s`eloigne. Procurava denunciar a caducidade da influência do autor de Les déracinés e de Colette Baudoche — quer no aspecto ideológico, quer no aspecto formal, de estilo. Alguns anos mais tarde, outro literato parisiense, cujo nome não me ocorre, veio apresentar um depoimento de sentido contrário, ao qual deu significativa epígrafe: Barrès se rapproche... Teriam ambos razão, cada um no seu momento ? Duvido. E duvido, porque os argumentos de ambos ressentiam-se da posição política tomada, em ocasiões diversas, perante os problemas nevrálgicos da hora.
O que, todavia, um e outro provavam — conscientemente ou não — era a actualidade de Barrès, a sobrevivência de Barrès, bastantes anos após a sua morte, já que nele continuavam a ver o chefe presente, a atacar ou a exaltar ... E parece-me muito presumível que as novas provações sofridas pela França venham trazer outra vez Barrès a superfície — com o seu nacionalismo altivo e sentimental, a sua intuição dos mitos eficientes, o tom ao mesmo tempo febril e melancólico dos seus apelos à reacção francesa... Parece-me muito presumível que Barrès volte à superfície. Desde já verifiquei, numa recente passagem por Paris, que as suas obras surgem, como expressiva insinuação: nos mostruários da maioria dos livreiros...
Eis um dos tais mortos bem mais vivos que certos vivos. Um dos tais mortos cujo destino é prosseguir no combate, pela semente lançada nos domínios do Espírito — quando há muito o seu corpo descansa. E porquê? Porque das páginas que deixaram uma chama animadora e fecunda se ergue ainda — tem ainda o condão de acordar novos ardores e de sugerir novas esperanças. Porque escreveram para dar testemunho de qualquer coisa que os ultrapassava — no espaço e no tempo.
O mesmo sucede, entre nós e até fora das nossas fronteiras, com António Sardinha. Existirá por aí, mesmo no meio dos vivos, escritor tão vivo?

II
Mais um aniversario daquela fria manhã de Janeiro em que fui informado de haver falecido António Sardinha. Lembro-me bem da impressão que a notícia me causou. Ainda pouco antes — apenas duas semanas! —nos tínhamos encontrado em Lisboa, nas vésperas do Natal. António Sardinha ia passar a festa da Família com os seus, a Elvas; eu, dispunha-me a partir para Coimbra. Conversámos largamente, e ouvi-lhe palavras de desalento e de cólera perante o espectáculo miserável que oferecia então a vida pública portuguesa. No final, porém, um brado de esperança — que nascia da firme resolução de voltar de novo à batalha. Nunca esmorecia, na alma do Paladino, esse impulso de fé, que não só lhe parecia capaz de «mover montanhas» — mas também de salvar as Pátrias em crise ... O seu programa de acção era vasto e ardente. Separámo-nos com a ideia de tornar a juntar-nos no mês seguinte. Mal sabia eu que lhe apertava a mão pela ultima vez e que não voltaria a encontrá-lo neste mundo!
Recebi, dias depois, um livro seu e uma grande carta. Quando pensava em responder-lhe, chegou a nova brusca do seu desaparecimento. Lembro-me bem... E hoje, como nessa fria manha de 1925, sinto-lhe a falta, deploro a sorte que no-lo roubou, evoco, com amargura, o vulto do apóstolo e do combatente da frente da ofensiva resgatadora: o mais vibrante, o mais entusiasta, o mais confiante de todos!
«Portugal teve em António Sardinha o seu profeta dos tempos modernos» — escreveu um dia Pedro Teotónio Pereira. Esta frase veio a adquirir, no curso da Revolução Nacional, dita por um dos seus melhores realizadores, sentido profundamente simbólico e verdadeiro.
Para mim, com efeito, a grande Revolução portuguesa da nossa época foi a geração de António Sardinha quem a preparou e a formulou, nas suas directrizes fundamentais. Revolução completa e salutar, portadora duma luz nova. Sob este aspecto, Sardinha foi um perfeito revolucionário, o revolucionário da Contra-Revolução, — dessa Contra-Revolução que de longe vinha, e acompanhava, passo a passo, a calamitosa Revolução individualista do século XIX, como a justiça a perseguir o crime. Já em 1823, Faustino José da Madre de Deus, no prólogo do seu comentário à Constituição de 22, exclamava: — «Se os portugueses algum dia tornarem a tragar o veneno das doutrinas liberais, não será por falta do necessário antídoto: será por não lho terem querido ou sabido ministrar»... Tantas vozes se ergueram, desde os fins do Século XVIII, a gritar à Nação os perigos que a ameaçavam, os abismos que a esperavam ao fundo do declive! Mas esses lúcidos profetas não conseguiram impor-se. Os mitos dominavam. Os mitos tinham sede de sangue, tanto quanto as almas tinham sede de quimeras. E as quimeras revolveram-se, como era inevitável, em sangue — e em ruínas.
Poderosos mitos! Ao seu apelo, as multidões continuavam a avançar para o suicídio inglório. A velha herança corrompia-se e dispersava-se, ao sabor das marés revolucionárias.
Quando António Sardinha e os seus companheiros surgiram, a herança estava quase perdida. Restavam, apenas, valores morais, nobres memórias, aqui e além um último marco da glória antiga. Sobre a galeria tradicional acumulara-se a poeira sórdida das calúnias. O espírito da raça declinava, passivo e inerte.
O grupo constituído por Sardinha e outros renovadores veio sacudir a sonolência nacional. Eram todos, como ele próprio disse de Xavier Cordeiro, «dessas grandes almas que, no momento da dúvida, sabem crer — e crer intemeratamente». Possuídos de absoluta confiança na sua missão, reanimaram as verdades portuguesas. Tão alto o seu clamor — que os ecos despertaram e as sementes refloriram. Estava a caminho a Revolução Nacional. A Pátria renascia das cinzas dum século de revoltas, de pilhagens e de falências. Adivinhava-se no horizonte a claridade promissora!

III
Chamou-lhe pois com justiça Pedro Teotónio Pereira o nosso «profeta dos tempos modernos». Não posso esquecer que, ao seu lado, cada qual num sector diferente, cada qual dentro do seu temperamento e dos seus recursos, outros «profetas dos tempos modernos» se entregaram à mesma cruzada. Interessa-me, neste momento, pôr em relevo a figura de António Sardinha — e o que atrás recordo e só com o objectivo de o situar na sua moldura histórica, de salientar as razões superiores e determinantes da sue obra.
Obra que deixou, atrás de si, luminoso vestígio. Obra de revisão e de rectificação no campo da História; de definição e actualização no campo das doutrinas sociais e políticas; de esclarecimento na crítica literária; de exaltação nos poemas da Terra e da Gente.
Antes de mais nada, António Sardinha emendou, com fervor de justiceiro, os erros dos panfletários do Liberalismo que tinham desfigurado as verídicas fisionomias dos maiores criadores e modeladores da nacionalidade. Assim o afirmou: «a melhor maneira de servir o seu país, é amá-lo e defendê-lo na integridade da sua História». Só por esta magnífica tarefa merece a nossa gratidão. Compreendem-no as gerações novas, que geralmente veneram e conservam o seu nome.
Ao mesmo tempo, António Sardinha reavivou os princípios tradicionais em que se firmara a nossa grandeza de séculos. O seu verbo quente, persuasivo, desembaraçou-os do pesado fardo dos mal-entendidos e das deturpações de má-fé com que os mascaravam os propagandistas liberais-democratas. E tornou-se o arauto duma reintegração necessária, à sombra da qual viria a tornar-se viável o ressurgimento nacional.
Lançou, enfim, os brados de combate e de esperança que haviam de incitar a mocidade portuguesa. «À geração que sobe para a vida pertence o grande passo...» Convencidos das responsabilidades e deveres que lhes cabiam, as jovens falanges nacionalistas subiram ao assalto da cidadela demo-liberal — até alcançarem a vitória !
«Ó Deus de Ourique, cumpre o prometido! Leva-nos contra os novos muçulmanos...» — clamava Sardinha. O Deus de Ourique atendeu a súplica do poeta. E os novos muçulmanos, surpreendidos pela arrancada intrépida, largaram em plena debandada.
Nesta hora de piedosa comemoração, relembro os títulos dos principais livros de António Sardinha.
Primeiro, os reconfortantes capítulos do Valor da Raça. Desde então o seu belo esforço não mais se quebrou ou afrouxou. No jornalismo doutrinário e polemístico, revelou-se o escritor político e o ensaísta. Daí resultaram os volumes já celebres: Ao princípio era o Verbo, Ao ritmo da Ampulheta, Na Feira dos Mitos, Durante a Fogueira, À Sombra dos Pórticos, Da Hera nas Colunas, Purgatório das Ideias. Mencionarei ainda, além da Aliança Peninsular, o longo prefácio à História e Teoria das Cortes Gerais, do Visconde de Santarém. E seria injusto apagar o poeta, cheio de amoroso transporte pelos motivos líricos da raça: o poeta de Tronco Reverdecido, de Epopeia da Planície, de Quando as Nascentes Despertam..., de Na Corte da Saudade, de Chuva da Tarde.
Morto prematuramente, no apogeu da maturação intelectual, quando a sua campanha se alargava na defesa e apologia da Civilização do Ocidente sob a égide do universalismo católico — António Sardinha deixou vazio um grande lugar. Chamou-o a Providência na altura em que se anteviam clarões de anunciação. Também «o profeta dos tempos modernos» sucumbiu à vista da Terra Prometida!
O livro que lhe dedicou o Professor brasileiro Guilherme Auler é mais uma prova da larga projecção do nome e da obra de António Sardinha além-Atlântico.
Trata-se da edição em volume de uma conferência pronunciada no Gabinete Português de Leitura do Recife. Trabalho denso e honesto, sempre baseado em citações do escritor e de alguns dos seus mais próximos amigos ou companheiros de luta — em cada página se deparam o culto pela memória de Sardinha e a admiração pela sua obra.
Vê-se bem que, ao tomá-lo como objecto de estudo, Guilherme Auler teve o intuito de abraçar, em conjunto, o vasto movimento de ideias do Integralismo Lusitano — e as suas decisivas consequências na vida portuguesa das ultimas décadas.
Efectivamente, compreende-se o efeito que deve produzir num crítico estrangeiro desejoso de analisar e explicar a nossa História desde 1910 para cá o extraordinário contraste entre a sombria atmosfera dos primeiros vinte anos da centúria e o visível impulso de ressurgimento a partir de 1926. Quando se aprofundam as raízes da impressionante metamorfose, encontra-se, como um dos factores essenciais da desintoxicação da inteligência portuguesa, que tornou viável a empresa salvadora e restauradora — o aparecimento do grupo de precursores de 1914-1915. Proclamá-lo é prestar-lhe a homenagem merecida — e simples acto de justiça.
Assim parece ter pensado Guilherme Auler, quando se lançou na composição deste livro. E nada surpreende que resolvesse considerar António Sardinha como figura-expoente do movimento integralista. Claro que todos sabemos quanto os seus fundadores deveram não só à galeria dos mestres da Contra-Revolução (a começar nos dos finais do Século XVIII e princípios do seguinte), mas também aos tenazes, intransigentes batalhadores do Legitimismo.
Mas na "Nação Portuguesa", primeiro, na "Monarquia", depois, é que se organizaram, sistematizaram e actualizaram os fragmentos, até aí dispersos ou inertes, de uma doutrina completa de reintegração nacional.
Pela chama que lhe aquecia a alma e os escritos; pelo entusiasmo posto no lançar da nova ofensiva; pela irradiação pessoal; pelo ascendente exercido sobre uma juventude sequiosa e inquieta; até pelo prematuro fim que o poupou à usura inevitável dos tempos e dos combates — António Sardinha é, sem duvida, o mais representativo de todos. Se a empresa se não suspendeu com a sua falta e só mais tarde veio a dar os primeiros frutos, nem por isso poderá ser esquecida ou diminuída a sua acção; nem por isso deixara de ser constante, no meio de nós, a sue presença de animador, de condutor, de guia — luminosa sombra que adivinhamos, ardente e clara, perdida na extrema vanguarda da batalha!
Divide Guilherme Auler o seu trabalho em dez capítulos, que se ocupam das várias facetas da personalidade de António Sardinha: I — O Perfil; II — Sua obra; III — Suas Ideias e Doutrinas; IV—Seu Apostolado; V—A Aliança Peninsular; VI — Legitimidade — A Questão Dinástica; VII — O Poeta; VIII — O Pensamento Tradicionalista; IX — Renovador da História Portuguesa; X —Crítico e Literato.
De um modo geral, estamos em frente de uma apologia.
O autor expõe, aceita, exalta os pontos de vista do seu biografado e nunca insinua qualquer discordância ou contestação. Pelo que o livro nos mostra, Guilherme Auler adere a todas as teses defendidas por Sardinha — é seu discípulo incondicional.
A intenção que o determinou a escrever estas paginas consistiu, por certo, em divulgar o pensamento do ensaísta, poeta, doutrinador e historiógrafo português — como quem se acha firmemente persuadido de atirar assim a boa semente aos que o lerem no Brasil. Com nitidez o revelam os períodos finais: — «Dum lucem perenam é o dístico do ex-libris de António Sardinha, repetimos. Toda a sua produção intelectual está guiada por estas três palavras. É eterna, desafiando o tempo, sempre actual e viva como o fogo simbólico da tocha fumegante. Ao princípio era o Verbo».
Só me parece digno de louvor tal procedimento. Guilherme Auler admira e segue sinceramente António Sardinha. Não hesita em apregoá-lo aos quatro ventos, sem aquele mesquinho sentimento de falso amor-próprio que leva, tantas vezes, os mais novos à ingratidão e à rebeldia para com os que os antecederam e lhes abriram a estrada. Este livro adquire, pois, a nobre qualidade moral de um panegírico — livre, espontâneo, desassombrado. Exemplo a salientar, perante todos quantos enfermam daquela triste doença castigada com doce severidade por Manuel Bernardes, quando exclamava, na Nova Floresta :— «Que maior necedade, que receber o benefício e esquecer-se do benfeitor?»
O estudo do Professor do Recife ressente-se, no meu entender, do método defeituoso que seguiu: fragmentar a rica e forte personalidade de António Sardinha numa série de compartimentos-estanques — a luta política, a doutrinação, a Poesia, a História, a Crítica Literária.
Embora ilumine com precisão cada um destes campos de actividade —nunca nos dá a visão de conjunto, o retrato em corpo inteiro. Temos de ver apenas uma parte de cada vez. Preferiríamos abraçar, pelo menos numa síntese que servisse de conclusão, — o todo. Daqui resulta que Guilherme Auler, mais do que o estudo completo de Sardinha, oferece-nos uma valiosa colecção de subsídios, que outro aproveitará para traçá-lo. Nem por isso lhe regatearei o apreço que merece — pois o seu labor é sério, útil, digno da confiança dos futuros desbravadores da mesma seara.
João Ameal
(in «A Verdade é só uma», Livraria Tavares Martins, Porto, 1960, págs. 225/236)

Flashes

Viram as mensagens natalícias? Eu avistei umas passagens, e causaram-me alguma estranheza.
Do que vi fixei o Sr. Primeiro-Ministro de mãos postas, o olho em alvo, ar beato, falando em tom delicodoce das virtudes do perdão. E o Sr. Cardeal-Patriarca com voz firme chamando os cidadãos à participação política, à acção cívica, apelando ao voto nas eleições...
Não digo que não tenham os dois razão, mas ocorreu-me a hipótese de terem trocado os papéis. Algum malandro dalgum assessor, concerteza.
Sobre o novo ano que aí vem ninguém se atreveu a falar muito. Reinam as incógnitas.
Uma coisa parece segura: o pessoal vai continuar a queixar-se da falta de bago, haja Bagão ou não haja Bagão.

sexta-feira, dezembro 24, 2004

Bom Natal a todos!

Como já terão notado, sou avesso a protocolos, atrapalhado na etiqueta e pouco cumpridor de convenções.
Nestas ocasiões quase sempre me afasto ou me calo.
Hoje porém não quero deixar passar o momento de exprimir o desejo sincero de que todos os amigos e visitantes deste blogue possam ter o Natal Feliz a que qualquer alma humana aspira - neste e nos outros dias.
Não vou particularizar ninguém, como era minha primeira intenção, porque aqueles a quem seria de obrigação fazer uma referência individual já são muito mais do que esperava, e haveria sério risco de injustiça. Retribuo portanto a todos os votos que me dirigiram, grato pela atenção e apoio - e afecto, diga-se também - que este blogue tem recebido de tantos, incluindo muitos que nunca me conheceram de outro sítio que não este.
Por razões que são só minhas, este blogue foi desde o seu início bem mais importante para mim do que acontece no comum dos casos entre blogues e blogueiros. Felizmente, não lhe têm faltado os amigos e os encorajamentos - e por aí tem cumprido mais do que o previsto a função de manter vivo o dono.
Um abraço para todos.

Natal cada vez menos

Quando chega o Natal,
Quem chega? Um ritual
De tradições modestas:
Publico uma poesia num jornal,
Dou e recebo prendas, boas-festas.

Em tudo isto há uma criança (a mais?)
Que nasce em qualquer parte:
Nas igrejas, bazares, decorações, postais,
Com mil requintes de arte.

Uma criança-Deus que veio a nós
Para remir-nos, etc. e tal...
Mas é preciso recordá-la, após
O Natal?

António Manuel Couto Viana

Natal, hoje

Do ventre de amargura e solidão
Nasce, esta noite, uma criança.
Chama-lhe esperança
O coração.

Quem restará para adorá-la de joelhos?
Emigram os pastores que sabem ler no céu.
Coroados no exílio, onde vão os três velhos?
Entregar oiro e o mais ao banqueiro judeu.

A estrela anunciadora
Lança, em vão, o seu místico sinal.
Confundem-na, talvez, no progresso da hora,
Com um satélite artificial.

Puro coral dos anjos, destruído
Pela bárbara estridência da boîte,
Não chega a nenhum ouvido
Como um hino de amor e um toque a rebate.

E o desejo mais alto - Paz na terra!-
Tomba como uma flor emurchecida
Na eterna guerra
Em que se esvai a vida.

Do ventre de amargura e solidão
Nasce, esta noite, uma criança.
O coração chama-lhe esperança.
Mas haverá quem tenha coração?

António Manuel Couto Viana

Nocturno de Natal

Frio e treva lá fora.
Aqui, no coração que a vida cansa,
Uma criança chora.
E dir-se-ia que nasceu agora.
-Quem é, que tem, esta criança?

Sei o seu nome, o seu desgosto,
Uma só vez em cada ano.
E, cada vez, lhe enxugo o rosto;
E, com mão trémula, o encosto
Ao meu, já húmido de lágrimas.

Mas, ao sentir, como uma prece,
O meu chorar de arrependido,
Ela sorri, logo adormece.
Depois, a vida segue... esquece...
-Cá dentro, as trevas e o frio!

António Manuel Couto Viana

Perplexidades

Houve tempo em que eu tinha em boa conta a minha perspicácia política, mas confesso que a realidade acordou-me. Não percebo nada disto. Já não entendo o enredo desta novela.
Hoje a grande notícia da campanha eleitoral foi o anúncio solene, com clarins e fanfarras e vistoso cerimonial, de um acordo eleitoral do PSD com o PPM e o MPT.
Como não hei-de eu sentir-me ultrapassado?
O Pedro parece um mágico com a cartola em autogestão, saindo cada dia uma surpresa mais insólita do que a outra.
O PSD fez um acordo eleitoral com o PPM e com o MPT? E isso é uma adição ou uma subtracção? Contas de somar ou contas de sumir?

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Notas de leitura

Tenho escrito pouco, mas tenho lido mais.
Encontrei no Diário Digital um artigo de César de Sousa sobre as escolas de ensino superior privado que me deixou ainda mais céptico sobre o sector - e isto não é dizer pouco.
Será possível que ainda voltemos a um tempo em que todo o ensino superior seja de uma forma ou de outra estatizado?
No mesmo "Diário Digital" outro articulista, João Mendia, dedica-se a zurzir impiedosamente, apesar do Natal, no conhecido profiteur Mário Soares, a quem a Pátria deve tanta da sua desgraça, malhando forte e feio, como é justo que se faça, na anafada criatura.
Que nunca as mãos lhe doam, são os votos sinceros deste bloguista.
E vão duas a favor do "Diario Digital". Mas como não há duas sem três ainda encontrei por lá um terceiro artigo a merecer encómios, este de Vasco Teles da Gama: Afinal a porca tem dono...
Parece-me que ainda torno a leitor de jornais: do "Diário Digital", pois claro.

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Meditação de Natal

Direi Natal este Natal?
Irás, meu Deus, nascer deste cansaço,
Desta carência d'alma com que traço
O meu ponto final?

Irás, meu Deus, uma vez mais,
Trazer-me a fé na vida, em meus irmãos?
Irei erguer para Ti as minhas mãos,
Como noutros Natais?

E o cadáver da criança
Que no meu peito esfria e já demora
Irás ressuscitá-lo nesta hora
Pura, inocente, mansa?

Irás nascer deste cansaço
Pra que eu diga Natal este Natal
E não seja, afinal, ponto final,
Mas fuga no espaço?

António Manuel Couto Viana

Para o Brasil, rapidamente e em força!

A minha proposta, e Do Portugal Profundo, de adesão em massa da blogosfera portuguesa ao mercado blogosférico brasileiro, nomeadamente através do cadastro no BlogRating, teve eco apreciável entre os destinatários.
Nota-se bem entre os novos inscritos nos sítios brasileiros destinados ao cadastro de blogues um forte movimento de blogues portugueses.
Venho insistir, porém, porque ainda não estou satisfeito. O movimento só atingirá expressão e significado se conseguir dimensão, em termos quantitativos, que se note do lado de lá do Atlântico. Aquilo é grande mesmo...
E noto que muitos dos meus destinatários ainda não se mexeram, no rumo apontado.
Portanto, renovo o apelo: façam o favor de visitar e verificar as ligações que constam no limite inferior do meu blogue, em baixo, e cadastrem-se nos locais indicados - ou noutros a vosso gosto, porque há mais, evidentemente. E não adiem para amanhã, s. f. f.

terça-feira, dezembro 21, 2004

Cada Natal recordo os meus Natais

Cada Natal recordo os meus Natais
Da infância, feitos de imaginação
E de tão pouco mais.
(Sei bem que me destrói a confissão)

Não tinham neve. Eram de chuva fria.
O Menino Jesus da loja dos brinquedos
Nunca podia dar-me o que eu pedia.
(Só tu me ajudas, Poesia,
A libertar segredos!)

E eu pedia a lapinha de Belém
Sem bonecos de barro coloridos:
Onde nascesse alguém
Real e com os braços estendidos.

Alguém que fosse Deus ou eu
Concluso, enfim.
E habituei-me à festa ser no Céu
E não em mim.

António Manuel Couto Viana

Gravura de Natal

Olhai a gravura que um prego sustém
Na escura parede da casa aldeã:
Menino tão lindo só Este, em Belém,
Ao colo da Rosa da Eterna Manhã.

Em torno se curvam os reis e os pastores:
Oferecem-Lhe humildes e ricos presentes!
Os anjos Lhe entoam celestes louvores!
Por coroa, um rebanho de estrelas cadentes!

Em tosca peanha de pinho, uma vela
Acende as cores mansas da ingénua gravura.
E a jarra da alegre faiança amarela
É festa de aromas de flores e verdura.

Diante da estampa sagrada, uma prece
Estreita as mãozitas há pouco em labor.
Jesus pequenino, olhai, que parece
Lançar-lhes a bênção da paz e do amor.

(São dadas as doze na torre do sino:
Os flocos de neve são flocos de lã.
Nasceu, num presépio, o Filho divino
Do ventre da Rosa da Eterna Manhã!)

António Manuel Couto Viana

Prémio Revelação

... E o prémio destinado ao blogue Revelação do Ano 2004 vai directamente para ... " O PORTA BANDEIRAAAAAAA"!!!!

Surpresas na Casa Pia

O início da audiência de julgamento do processo Casa Pia trouxe ao meu cepticismo três surpresas que me contrariaram os prognósticos mais pessimistas (leia-se, o receado enterro precoce do processo judicial).
Foram elas a decisão do Supremo de reconhecer o impedimento dos Desembargadores Carlos Almeida e Horácio Lucas para conhecerem do recurso relativo à não pronúncia de Paulo Pedroso e Herman José, a posição do tribunal de julgamento quanto à validação dos actos de instrução praticados por Rui Teixeira e por último a atitude de Carlos Silvino nas duas sessões em que já falou.
A primeira surpresa abre uma janela de esperança quanto ao julgamento da parte mais sensível do processo - aquele que todo o milieu político-jornalístico-mediático quer por força impedir e contra o qual se moveram todas as influências, sobretudo as mais altamente colocadas.
A segunda surpresa, que o foi até pelas evidentes vantagens para os juízes membros do colectivo que traria a posição oposta (a invalidação dos actos de Rui Teixeira implicaria quase necessariamente o regresso do processo à fase de instrução, para regularização do processado, e consequentemente a libertação definitiva destes juízes do castigo que lhe caiu em cima), evitou por agora o naufrágio da causa, permitindo que ao menos se realize a audiência de julgamento (sujeita embora, como é inevitável, às contingências de toda a espécie de recursos que não deixarão de ser interpostos).
A terceira surpresa também o é, embora o facto já tivesse sido anunciado por vários modos. Sempre me pareceu que se arranjaria uma solução, negociada atrás das cortinas, que garantisse o silêncio de Bibi - a falada intenção de falar visaria subir o preço. Foi concerteza inabilidade dos negociadores, ou arrogância excessiva dos pesos-pesados da advocacia envolvidos.
A atitude processual do Bibi altera-me todas as perspectivas quanto ao decurso do julgamento. A partir de agora, existem sérias possibilidades de sairem condenações do julgamento que está a correr e de, como não poderá deixar de acontecer, as consequências atingirem também as questões pendentes de recurso, respeitantes aos excluídos da pronúncia (as notícias de hoje não dizem se foi extraída certidão relativamente às declarações que inculpam Paulo Pedroso, para remessa ao processo separado em que é arguido, mas certamente isso terá que acontecer).
Em resumo: não é caso para dar por seguro seja o que for (tudo o que disse pode ter volte-face), mas pelo menos mantém-se em aberto uma hipótese de vida para o processo - frustrando-se por ora as mais óbvias tentativas de assassinato.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

Quem, do Natal?

Quem esperamos? Quem,
No silêncio, na sombra, no deserto?
O Menino divino de Belém,
Ou o rei Encoberto?
Esperamos alguém:
Qualquer que tenha o coração aberto.

É demais esta ausência, este vazio!
Quem adorar, servir, como Deus e senhor?
- O que estender a ponte sobre o rio
Da miséria e pavor!
O que apascente e semeie em desafio!
O que disser: - Eu sou! E for.

António Manuel Couto Viana

PANETONE MILANESE

(nova CARTA DO CANADÁ, por Fernanda Leitão)

Quando chega o Natal e tudo se faz mais íntimo para os que têm família, de uma solidão quase irreal para os que não a têm, e lá fora o frio dói, mas ainda assim menos do que as recordações, entro na silenciosa celebração comigo mesma. E então ponho a minha mesa de Natal, longa e larga, a ela se sentando aqueles que já passaram pela vida e deixei de ver, serenos e confortados por uma enorme lareira. Com eles converso do que vai indo, do que podia ter sido e não foi, retomando o diálogo interrompido um pouco bruscamente. Porque é sempre bruscamente que a morte nos cala.
Ontem, neste silencioso conversar com os que amei mais ou menos, mas amei, comprei um panetone milanese com a naturalidade de quem compra um mimo para um amigo. Por ter sentado à minha longa mesa o Aldo Trippini, um jornalista milanês que, nos anos 60, dirigiu o escritório de Lisboa da United Press International. No Natal, o Aldo convidava-me para almoçar em sua casa, com a mulher e o filho, um bambino lindo e doce, e foi assim que me tornei íntima do panetone milanese que era de obrigação à sua mesa. Era um jovem quando se juntou às forças da resistência contra Mussolini e Hitler, nas montanhas. Na aldeia, lá em baixo, tinha ficado a sua primeira namorada, o seu primeiro e grande amor. Uma vez por semana, a raggazza trepava aquele caminho com uma cesta de mantimentos e livros. Viviam no sonho de a guerra acabar e de se casarem. Naquele dia certo Aldo colocava-se num lugar donde via a moça vir pelo caminho. Foi por isso que a viu ser baleada, à falsa fé, por militares que faziam a guerra.
Depois disso a vida correu, porque a vida é um rio, não pára. Mas o coração do Aldo Trippini ficou ferido de morte, não podia durar muitos anos. Parou ainda Robertino era um jovem e ele mesmo não tinha chegado à meia idade. Era um homem bem humorado, leal, activo e lúcido. Tinha da situação portuguesa uma visão realista e por isso nos entendíamos bem, por ambos sabermos como era fatal o caminho por que se tinha optado. E ele tinha de Portugal uma pena antecipada. E eu era-lhe grata também por isso.
Reparo agora que a minha mesa de Natal está cheia de jornalistas, de escritores, de artistas, de boémios. E que, passadas as ilusões do mundo, estão todos lado a lado, a sorrirem, a darem-se bem, sem diferenças nenhumas. Todos quiseram esta paz para o mundo, este entendimento para Portugal. Mas esta paz não era para este mundo. Ninguém percebeu que o mundo era o exílio. Agora está tudo certo. E o panetone milanese, com o seu aroma de laranja, é por assim dizer um pão de partilha. Para sempre.

domingo, dezembro 19, 2004

"Filhos de Ramires"

"Mais do que um corpo de doutrina, mais do que um breviário de constituição política, mais do que um programa, mais até do que um simples ideário monárquico, o Integralismo Lusitano é uma autêntica forma de viver e de pensar, uma norma moral, uma lição definitiva de síntese sobre o pensamento e a acção, uma alta escola de pensar contra o preconceito, o lugar comum da época e do meio, uma clara vitória do pensamento contra a ideia-feita, do difícil contra o não pensar, contra a norma escolar e a cultura oficial ou oficializada. Sem o Integralismo não será possível compreender a história das ideias e dos factos no Portugal do nosso tempo".
Francisco Sousa Tavares, in "Combate Desigual", 1960.
Encontre o livro de José Manuel Quintas sobre as origens do Integralismo Lusitano, "Filhos de Ramires", visitando o Unica Sempre Avis.

O SENTIMENTO PATRIÓTICO NA POESIA DE ANTÓNIO SARDINHA

(Ao Dr. José Pequito Rebelo, outro Cavaleiro do Ideal)

Cinquenta e quatro anos vão decorridos sobre a inesperada e tão sentida morte de António Sardinha, ocorrida na Quinta do Bispo, em Elvas, a 10 de Janeiro de 1925.
E quanto mais os anos vão passando mais se agiganta a figura desse intrépido lutador pela causa sagrada da Pátria, a que dedicou todo o seu entusiasmo, todo o seu sacrifício, toda a sua devoção de português, que o era de verdade.
Vivia-se também nessa altura uma hora incerta para a Nacionalidade. António Sardinha, juntando à sua volta um grupo de jovens desiludidos da partidocracia que então campeava num desprestígio que nos ridicularizava aos olhos do mundo, lançou as bases da contra-revolução em que assentou o movimento que ficou a ser conhecido por Integralismo Lusitano.
Duma fogosidade extraordinária, quer através dos seus numerosos ensaios, quer no dia a dia das campanhas jornalísticas de "A Monarquia", dotado de uma simpatia aliciante que fazia convergir para ele a dedicação, a estima e a camaradagem dos seus amigos e dos seus condiscípulos, António Sardinha marcou uma época e marcou uma geração: — a Geração do Resgate.
Sucumbiu nesse combate ardente e destemido contando apenas 37 anos de idade, pois nascera em Monforte do Alentejo a 9 de Setembro de 1887. Mas legou-nos a todos um alto exemplo de perseverança e uma obra notável, quer na qualidade como na quantidade, tendo em conta a sua morte prematura, quando tanto havia ainda a esperar do seu talento, e tendo em mente a organização e a publicação de uma História de Portugal expurgada das mentiras e calúnias que, como nódoa indecorosa, nela haviam lançado a Maçonaria e o Liberalismo.
A geração desse tempo era patriota e sentia a necessidade de remar contra a maré de torpezas que invadia a nossa Pátria e a que se tornava imperioso pôr um dique. A voz de António Sardinha erguia-se então vibrante e eloquente a saudar os novos batalhadores e a conduzi-los ao bom combate.
Poeta distinto que também o era, abriu, através dos seus versos, caminhos novos e novas clareiras à gente moça.
Temos exemplos flagrantes nesse livro delicioso que é a "Pequena Casa Lusitana", em cujo intróito confessa António Sardinha:

Cruzado sou. Envergo uma couraça,
Jurei meus votos num missal aberto.
— eu me persigno em nome do Encoberto.

Alto, bem alto, quando a lua passa,
a lua me dirá se o avisto perto.
Eu me persigno — ou seja noite baça,
ou rompa o dia, com o sol desperto.

Meu S. Cristóvão, de menino ao ombro,
ó Portugal, — eu me comovo e assombro —
nas tuas mãos ergueste o mundo inteiro.

Entrei por ti na religião da Esperança,
Pois na alvorada que de além avança,
vem tu vestir-me o arnez de cavaleiro!


Vestindo o arnez de cavaleiro do Ideal, António Sardinha bem cumpriu o juramento feito. Vejamos agora este soneto a «Viriato»:

Deus fez a Terra. E a Terra fez a Raça,
Da Raça e mais da Terra tu vieste.
(O barro anónimo incarnou por graça
e a treva encheu-se dum clarão celeste!)

P`ra trás de ti há só a névoa baça,
há só a argila que o teu corpo veste,
parente das raízes, em quem passa
toda a rijeza duma noite agreste!

Porque és ajuda e segurança antiga,
pode bem ser que a tua voz consiga
guardar dos lobos o revolto gado...

Erguido sobre os longes pardacentos,
ó filho das levadas e dos ventos,
acode ao teu rebanho tresmalhado!


António Sardinha arrecada dentro de si sentidos estéticos de um alerta que empolga as almas moças preparando-se para reaportugalizarem Portugal, como se extrai desta «Manhã de Ourique»:

Manhã de Ourique. No escampado imenso
a madrugada avança com ternura.
Ei-la a romper como se fosse um lenço,
nas mãos de Deus abrindo a sua alvura.

Depôs Afonso a espada. Um ar de incenso
subiu, subiu, até ganhar a altura.
E assim a Terra, com Jesus suspenso,
lembra uma cena antiga da Escritura.

Caiu depois a excomunhão na Raça.
Quando a manhã desponta é sempre baça
não tem a luz dessa manhã de Ourique!

Voltemos à raiz! E em chão lavrado,
sobre o que houver de Portugal passado,
que Portugal de novo se edifique!


«Que Portugal de novo se edifique» - é a sua ânsia de português que vive as agruras da Pátria que ele procura encaminhar para novos destinos. Por isso, no soneto «O Romanceiro» uma réstea de esperança desponta:

Sempre que um vento mau nos ameaça,
genealogia lírica da Raça,
procuro ouvir-te inspiradoramente!


Santo António, o santo português, também é motivo na poesia doce do poeta:

Martelo de herejes, volta à vida!
que a tua língua resplandeça ardente,
p`ra bem de tanta alma empedernida.

Lá donde estás, António, não nos deixes!
Se os homens te esqueceram negramente,
lembra-te, Santo, que ainda tens os peixes!


Também o Grande Condestável Nun`Álvares tocou o coração patriota de António Sardinha, que lhe roga:

Tens o poder da tua espada forte,
tens o poder das tuas mãos erguidas,
— Herói e Santo, vem valer aos teus!

Alto, mais alto que o pavor da morte,
se a tua espada guarda as nossas vidas,
as tuas mãos pedem por nós a Deus!


«A Grey» lembra Alberto Sampaio, pois como ele refere em as «vilas» do «Norte de Portugal», também nos versos de António Sardinha:

Casaram-se os arados com as redes.
O Rey, por entre o povo, é como vêdes
um português com outros a tratar.

Pintor da Grey, eis tudo o que tu pintas!
Nuno Gonçalves, vá, prepara as tintas,
— ó, prepara as tintas, vem daí pintar!

«Pola ley e pola Grey». O Pelicano sangrando simboliza o Integralismo que o poeta ergueu com entusiasmo e como protesto:

Ó Pelicano, ensanguentado e forte,
que bom será sofrer contigo a morte
e nos teus braços encontrar a cruz!


E Camilo? Hoje, como então:

Foste bem nosso, foste bem castiço!
Na tua pena havia arrojo e viço,
foi bem da raça o teu ardor plebeu!

Hoje nem temos gritos na garganta.
Por isso Portugal se não levanta,
por isso a nossa terra adormeceu!


Está «Portugal Crucificado»:

Crucificado sobre um alto cerro,
com moiros a jogar-lhe a roupa aos dados,
eis Portugal pagando o antigo erro,
eis Portugal penando os seus pecados.

Insultam-no de baixo com aferro
esses a quem o insulto fez medrados.
Hora de expiação. Um ar de enterro
tingiu de treva os longes carregados.

E exclama Portugal: — «Senhor! Senhor!
A mim, alcaide-mor da Cristandade,
assim me abandonaste na agonia!»


Aqui temos estado, através de versos seus, a lembrar a acção patriótica de António Sardinha, há cinquenta e quatro anos falecido em Elvas, deixando mergulhados na dor e na amargura os seus dedicados companheiros dessa outra hora incerta e negra.
Hoje, nesta hora mais incerta e mais negra, nesta quase agonia da Pátria, sentimos ressoar aos nossos ouvidos a sua vibrante «Exortação»:

...A pé e às armas, nesta hora baça,
que vai romper outra manhã de Ourique!


Assim seja!

Manuel Alves de Oliveira
(In «Resistência», n.º 188, Fevereiro de 1979)

Errâncias

Por onde se perdeu o camarada dos Caminhos Errantes, que tanta falta nos faz?

Ainda recordando Natércia Freire

Surgiram também lembranças de Natércia Freire no "Diário de Notícias", nomeadamente um belo artigo de Ana Marques Gastão sob o título "A clara nocturnidade de uma poesia alada", e no "Ultimo Reduto", com o título "O meu aceno a Natércia".
Fica aqui o registo - e as ligações.

sábado, dezembro 18, 2004

Os suspeitos

«Quem descobrir alguém
suspeito de ser cristão
informe a autoridade
»
(O Massacre de Shimabara em 1638)

Quem suspeitar do amor
Com filiformes sedas
E veias incorruptas
E prolongadas fontes,
Quem suspeitar da luz
Na doce obscuridade
Informe a autoridade.

Quem suspeitar da fome
À mesa reluzente.
Quem suspeitar da Cruz
Entre a família ausente.
Quem suspeitar da sede
Por dentro da amizade
Informe a autoridade.

Quem suspeitar que há laços
De bíblicas imagens.
Lázaro ao nosso lado.
Novas ressurreições.
E Cristo no pecado
E romanas miragens

Nos circos, nos algozes,
Coroados de louros.

Quem suspeitar da esperança,
No átrio da memória
Da imensa liberdade
Que o suicídio evade,
Informe a autoridade.

E o mais suspeito vem
Bater à noite morta.
Traz nos dedos de garras
Sangrando, um coração.
Gota a gota, nos lábios
O futuro da Vida,
Canta no espaço humano
A enorme transfusão.

Na eterna leucemia
Do renovado dia
Apavora o suspeito
A paz do hospital.

Branco, branco o elemento
Que embala o pensamento.
- Mas sonho sonolento.
Mas subtil caridade -

Ao vampiro do Tempo
Impõe a edilidade
Que o conselho dos velhos
Informe a autoridade...

A multidão das sombras
As hostes das visões
Computadores cruéis
Mais os homens robots
Instalaram nos lares
Ouvidos e espiões.

Em corações de corda
Em frios corações
Deitaram a paixão.
- Trituram as paixões.

Mas o massacre aguarda
As ordens implacáveis.

Quem suspeitar do amor
Em filiformes sedas.
Quem suspeitar da sede
Por dentro da amizade.
Quem suspeitar da esperança
No átrio da memória,
Da imensa liberdade
Que o suicídio evade,

Quem suspeitar de Cristo
Em sóis quotidianos

No peito lacerado
Aberto ao companheiro,
E quem quiser dizer
O que dizer não há-de,
Avise a autoridade.

Os enjeitados

Carregando os caixões nos magros ombros
Enterrando na polpa das montanhas
Os tornozelos de aço,
Rasgando no ar fino agudas frestas
Caminham lentamente os enjeitados.

Escasseia-Ihes emprego nas florestas
Nas bancas da cidade revoluta
E transportam a morte com cuidado.

Os pais ocultam-se em locais limites.
Levam aos ombros mitos sem limites
Com seus nomes em cera desenhados.

Ao pôr do sol escutaram a chamada
Que vinha sempre errada.
E sentaram-se à mesa num lugar
Entre desconhecidos e estrangeiros.

Vinha um sopro de lar
De uma língua de tempos derradeiros.
Os silêncios depois cavaram vales.
As margens sepultaram os seus leitos.
Escalaram as montanhas sem vontade.

Fabricaram metralha no seu peito.
Pediram filhos a planetas mortos.
Dormiram com saudades mutiladas.

Beberam sonhos pelo mesmo copo.
Fugiram das cidades em partilha.
Deram as mãos. Sentaram-se a chorar
No choro de uma ilha.

Chove-lhes fogo em dias de criança.
Chove-lhes fel em dias ensombrados.
Jovem povo sem esperança
Desde o ventre da mãe, os enjeitados.

Ocupados no mapa das viagens,
Exaltados no tempo de ir a Marte.
Todos heróis, políticos e pajens
De Herodes e Medeias,
Abrem os pais as veias.

No ar, jorra em cadeias de cadência,
O sangue colectivo de uma ausência.

Os instrumentos

Desapareceram os símbolos das cidades,
Os instrumentos dos símbolos ainda não desapareceram,

É possível que, de repente, de leste a oeste, de oriente a ocidente,
Nas paredes, no ar, no solo, nos canteiros,
Nos velhos troncos de árvores,
Nos jogos de água viva,

Nas mudas bibliotecas, em livros esquecidos,
Nos palcos dos teatros, nas eléctricas luzes,
Nas orquestras sem pátria dos músicos planetas,

Se revelem sinais, locais de Ásias secretas,

Mas da cegueira à paz, vão ângulos de som.
Os vértices de amor, oscilam ténues fumos,

Os símbolos são homens, esventrados em explosões,
São Osíris dispersos. Deuses em negros versos,
Dos olhos sem retinas - que já todos desvelam,
Dos gestos essenciais - pelos quais todos choram,

Se compõe esta frente em marcha silenciosa,
De esotéricas vidas e histórias demolidas,

De superfícies brancas em sinfonias brancas,
De surdos e de loucos, orquestradas nas ondas.

Bronzes de águas abertas, nas cascatas libertas,
Dos países do Ar para os dias de Sombra.

Por visitar a Lua recebe-se a Loucura.
Por visitar a Luz, recebe-se a cegueira.

É preciso dormir como quem apodrece
E sossegar no pó, sem pena de ser só.