terça-feira, agosto 31, 2004

O partido dos jornalistas

Um problema bem presente em todas as sociedades mediatizadas do Ocidente é o frequente desfasamento entre a opinião pública e a opinião publicada.
Normalmente a questão só é discutida em privado, e em voz baixa. A prudência manda calar. Mas todos os sujeitos activos da sociedade a conhecem.
E há momentos em que salta aos olhos dos observadores mais distraídos. São as ocasiões em que surge aos olhos de todos a importância do que chamo o "partido dos jornalistas". São aquelas em que de súbito a classe se mobiliza e com absoluta indiferença pelo público destinatário oferece em espectáculo autista a exibição despudorada do seu poder.
Essas ocasiões são sempre despoletadas por um tema em que a classe se reconhece e resolve tomar como seu. O tema do aborto, como tem sido exemplo gritante este caso do barco do aborto, é um desses pontos de mobilização geral. Repare-se bem no que têm sido os noticiários destes últimos dias. Dificilmente se imaginaria uma situação em que fossem tão contrastantes a absoluta indiferença popular e a histeria desenfreada da comunidade jornalística.
Estive há pouco a percorrer os telejornais de todos os canais televisivos portugueses. Todos à mesma hora a transmitir longos e exaustivos directos sobre as peripécias do barco do aborto, subalternizando completamente todo o noticiário nacional e internacional.
A quem observe para lá das palavras, depara-se um cais deserto, três deputados sedentos de publicidade, um barquito no mar alto com seis pessoas a bordo, uma das quais se diz ginecologista, e um contentor no convés, onde foi montado o que eles chamam pomposamente uma "clínica ginecológica".
Um não-acontecimento, uma insignificância agitada freneticamente por um pequeno grupo de activistas inteiramente marginal às preocupações e aos interesses da população, é ampliado a épicas dimensões perante a perplexidade geral.
Que fazer face a este fenómeno de distorção, em que o mensageiro cria a própria mensagem?
É um excelente assunto para estudar mais desenvolvidamente nas escolas de jornalismo.

O medo e a inveja

O medo e a inveja são dois sentimentos muito humanos, demasiado humanos, ai de nós!, de que ninguém está totalmente isento. Que homem, perscrutando o fundo da sua consciência, poderá dizer sem mentir que nunca teve medo e que nunca sentiu uma sombra de despeito, diante da superioridade ou do êxito do próximo?
Mas estes defeitos têm isto de particular: quase ninguém ousa reconhecê-los diante dos outros nem mesmo confessá-los no interior de si mesmo.
Apelo aqui para a experiência de cada um. Todos os dias ouvimos pessoas confessarem-se sem dificuldade deste ou daquele comportamento condenado pela moral. Por exemplo, da propensão para a cólera ("eu cá não deixo ninguém pôr-me o pé sobre o pescoço") ou para a gula (as histórias de "comilões a toda a prova" abundam nas conversas) ou ainda para os pecados da carne. E não só confessam esses excessos, como até chegam a glorificar-se deles. A este propósito, conta-se o caso de um marselhês a quem o sacerdote perguntou, na confissão: "nunca enganou a sua mulher?", tendo ele respondido: -"Senhor prior, eu vim aqui acusar-me e não gabar-me!"
Mas já alguém ouviu um homem declarar: sou um cobarde e encolho-me ao menor perigo? Ou ainda: sou um invejoso e as vantagens do próximo são intoleráveis para mim?
Porque acontece assim? Muito simplesmente porque os outros defeitos podem ser atribuídos a um excesso de vitalidade mal dirigido, ao passo que o medo e a inveja são índice não só de fraqueza moral, mas também de inferioridade de natureza. E disto ninguém gosta de confessar-se...
Assim, para escapar a esta confissão de inferioridade, demasiado dolorosa para o seu amor-próprio, o cobarde e o invejoso reagem disfarçando estes sentimentos miseráveis sob formas menos humilhantes, isto é, segundo a análise cruel de Nietzsche, dando-lhes a cor de virtude e de ideal.
O medo reveste, por exemplo, a máscara do pacifismo. O cobarde mostra-se cheio de consideração e de compreensão para o adversário que o enfrenta ameaçador, faz-lhe todas as concessões possíveis, em nome da paz internacional ou social - pronto a esmagá-lo, quando a sorte o abandonar.
Conheço um dos nossos célebres intelectuais franceses (cujo nome me abstenho de citar) que, aterrorizado pela invasão alemã, em 1940, fez o elogio da ordem nazi e, não menos cheio de medo, em 1945, ante a ameaça comunista, converteu-se em fervoroso apologista do entendimento com a Rússia, por qualquer preço. O medo tinha mudado de objecto, mas não de natureza.
Quanto à inveja, ela manifesta-se em política sob o véu do igualitarismo, que confunde com a vontade de justiça. A reacção do invejoso diante de tudo o que lhe é superior resume-se nisto: "independentemente do que sejas, não vales mais do que eu e, se tens mais do que eu ou se pareces ser mais do que eu, é por um favor imerecido da nossa má organização social, que há-de ser varrida amanhã pela justiça revolucionária". É inútil sublinhar a importância deste factor dissolvente nas nossas pseudodemocracias...
Estes passadores de moeda-falsa intelectual e moral são, uma vez mais, a prova da miséria do homem. Miséria da fraqueza e do egoísmo, intolerável para o orgulho, que o homem dissimula e justifica sob as aparências lisonjeiras da mentira. Os nossos vícios mais perigosos são os que disfarçamos de virtudes.
Gustave Thibon

Procura-se

Aos leitores: estava eu aqui a meditar sobre a política nacional e de repente veio-me uma interrogação: o que é feito do Partido da Nova Democracia? Aquele do Dr. Manuel Monteiro, não sei se ainda se lembram... Tirou férias? Desapareceu? Acabou mesmo?
Quem souber do que se passa pode responder para este blogue.

segunda-feira, agosto 30, 2004

Obra gráfica de Joan Miró exposta em Évora a partir de quinta-feira

Um conjunto de 70 gravuras e litografias do artista catalão Joan Miró vão estar em exposição no Fórum Eugénio de Almeida, em Évora, a partir de quinta-feira.
A exposição "Joan Miró - Obra Gráfica" inclui as edições originais ilustradas de "Adonides", de Jacques Prévert e "Les penalités de l'enfer", de Robert Desnos, e gravuras e litografias produzidas entre 1952 e 1978, pertencentes ao acervo da Fundação Maeght.
Com esta mostra, segundo a Fundação Eugénio de Almeida, pretende mostrar-se uma faceta menos conhecida de um pintor, escultor, ceramista e gravador que marcou a arte contemporânea.
A exposição será inaugurada na quinta-feira, com a presença do secretário de Estado dos Bens Culturais, José Amaral Lopes, e estará aberta ao público no Fórum Eugénio de Almeida, até 31 de Dezembro, diariamente, das 9:30 às 18.30 horas.

domingo, agosto 29, 2004

Questões de agenda

O barco do aborto já fez as suas primeiras vítimas: as festas de Barrancos.
Exactamente, estimado leitor: neste fim de semana, e ainda durante os próximos dois dias, decorrem na pacata vila alentejana as tradicionais festas populares, tal como nos anos anteriores.
Este ano, porém, a calma rotina da terra regressou ao normal. Perante o desconsolo das gentes, não há multidões de forasteiros, nem patuscas manifestações, nem directos nos telejornais. A glória acabou. Nem o camarada Louçã, compreensivelmente ocupado, arranjou um minuto para falar nas festas de Barrancos, ele que fala sobre tudo.
Até os touros parece que estão mais tristonhos e deprimidos.
E tudo por causa do barco do aborto: ao contrário dos outros verões, as equipas de reportagem disponíveis foram mandadas para a cobertura do grande acontecimento. E nas redacções não havia mais ninguém além desses jovens jornalistas que estão a fazer as férias dos colegas. Também é verdade que o espaço e o tempo destinados à actualidade nacional nas televisões e nos jornais ficaram preenchidos com o material relacionado com o barco, mais umas tragédias avulsas arrumadas num cantinho.
A agenda está cheia para este último fim de semana de Agosto.
E quem perdeu foram as festas de Barrancos, relegadas para o esquecimento de que julgavam ter saído.
Coitado do Zé Maria!

Lições de um fiasco

As organizações envolvidas na abortada manobra do barco do aborto esfalfam-se por encontrar as formas de diminuir os estragos, e retirar ainda os proveitos possíveis da iniciativa.
Entretanto, como em tudo na vida, alguns ensinamentos ficam no ar, à disposição de quem queira.
Copio um parágrafo de uma notícia do "Portugal Diário":
"A organização Women on Waves recebeu cerca de 20 chamadas de mulheres portuguesas a pedir informação sobre o "Barco do Aborto", mas a linha de atendimento especial está desligada, disse hoje à Agência Lusa fonte da associação".
Como se pode, depois disto, continuar a apresentar a questão do aborto como um dramático problema de saúde pública que afecta multidões de portuguesas que por aí sofrem sofrimentos inomináveis enquanto aguardam alterações legislativas? Não será altura de confessar abertamente que se trata apenas de um ponto programático de grupos políticos de dimensão quase confidencial que por esta forma procuram evidenciar-se?
Não será evidente que a esmagadora maioria dos portugueses e das portuguesas está fartíssima de tal conversa, e vota o assunto à indiferença e ao esquecimento?
Vinte chamadas a pedir informação! Depois da aluvião propangadística! E dessas vinte provavelmente quase todas serão de jornalistas e outros curiosos...
Por aqui fica à vista a magnitude e a urgência do "problema".
Apetece-me aprofundar a análise e atacar a fundo: quem tem um sério problema é uma certa esquerda, sociologicamente de extracção exclusivamente burguesa, que há muito abandonou as causas ligadas ao social que lhe garantiam a boa consciência (os trabalhadores foram relegados para o baú da história..), e agora se agarra desesperada aos temas "fracturantes", de cariz moral sobretudo, e de preferência conexas com a moralidade sexual ou afins, a fim de garantir a sua própria sobrevivência - já não nas "massas trabalhadoras", mas antes nas camadas da burguesia urbana alienadas pela sociedade de consumo, que dita o domínio da facilidade, o princípio do prazer, a busca da satisfação imediata, e para quem a simples existência de uma moral, que exige e impõe, já é uma ideia insuportável.
Enterrada a esquerda dos operários, temos no seu esplendor a esquerda dos costureiros, dos publicitários, dos manequins e das vedetas de televisão.
Termino por aqui, para não ultrapassar o limite de atenção do cibernauta médio.
Não deixo no entanto de fazer uma referência a outra descoberta que estas polémicas permitiram: pelo menos duas das organizações integrantes da plataforma que organizou a vinda do barco do aborto e toda a agitação mediática gerada à sua volta têm como fonte de financiamento conhecido os dinheiros públicos. Vivem com o dinheiro dos nossos impostos, que recebem através de subsídios do Instituto da Juventude. Ignora-se quais sejam as actividades que justificarão a atribuição de tais subsídios - as actividades que se lhes conhecem são estas.
E pergunto eu: se o dinheirinho é de todos nós, como se explica que vá parar precisamente às mãos destes?

sábado, agosto 28, 2004

Noticiário

Aprende-se muito acompanhando o que surge nas agências internacionais. Até a velocidade com que certas notícias aparecem e desaparecem deixa geralmente valiosa informação sobre o andamento do mundo.
Hoje encontrei novos relatos, em tom de banalidade, de mais abusos e perseguições ditados pelo regime de Mugabe sobre os brancos que ainda restam no país. A notícia vai passar rapidamente, até por obediência à doutrina já defendida na reunião da Comunidade Britânica de que é preciso moderar o protesto para não radicalizar o tirano. Por seu lado as organizações de direitos humanos, e especialmente as anti-racistas, apesar da natureza declaradamente racista da legislação e dos desmandos que a precedem e se lhe seguem, irão ignorar os acontecimentos. Não admira: tais organizações nasceram sob o axioma indiscutido de que racismo só há um, o dos brancos e mais nenhum. Entretanto, a miséria e a fome tomaram conta de uma região que há não muitos anos era o celeiro de toda a África Austral, um modelo de prosperidade.
Da América veio a notícia de que o Secretário de Estado Colin Powell anulou a visita que tinha anunciado para estar presente no encerramento dos jogos Olímpicos de Atenas. O motivo alegado foi a sobrecarga de agenda, mas os observadores são unânimes em atribuir a decisão à situação incontrolável que se estava a gerar em Atenas com a dimensão dos protestos de massas contra tal visita, que ameaçava estragar completamente os dias finais dos Jogos.
Creio bem que se está a chegar a um ponto em que os mais conhecidos dirigentes americanos só podem fazer visitas ao estrangeiro depois de os marines irem à frente a securizar a zona. De momento, as visitas de menor risco são a Cabul e a Bagdad.
Com muito maior ligação a esta do que aquilo que se pode pensar à primeira vista, apareceu agora na grande imprensa americana outra notícia sobre a existência, afirmada pelo FBI, de um alto funcionário do Pentágono envolvido em actos concretos de espionagem a favor de Israel. Dizem as notícias que seria pessoa colocada a nível tão elevado que poderia ter influenciado a definição da política americana em relação ao Irão e ao Iraque. Resta esperar pelo ciclo de vida desta notícia: anteriormente já houve escândalos destes, e tudo acabou por ser menorizado, abafado, esquecido, em nome dos equilíbrios fundamentais que estão em causa em tal matéria.
Mas o facto de a notícia aparecer, de o problema existir, de a investigação ter sido feita e ter sido soprada para os jornais, demonstra que subterraneamente se desenvolvem confrontos que podem ser muito mais importantes do que aqueles que se desenrolam à luz do dia.
A realidade tem muita força, e a História não termina só porque algum Fukuyama assim decreta.

Navio ao fundo?

A alegre rapaziada abortista andava eufórica na perspectiva de viver dias gloriosos com a entrada e permanência do seu famoso barco do aborto em qualquer porto nacional, contando fazer sua a agenda política nos próximos tempos.
Não contavam ao que parece com a capacidade de antecipação da malta governamental, que em matéria de golpes publicitários não recebe lições de ninguém. Bem cientes de que uma vez consumada a presença do pavilhão promocional em porto português seria impossível evitar o circo mediático, dada a bem conhecida especialidade da esquerda louçã e a sua força no que tange a agitação e a mobilização da comunicação social, os conselheiros governamentais acharam por bem esvaziar o balão antes que este enchesse.
Vai daí, proibe-se a entrada do navio. Até aqui parece-me certeiro o tiro. É bem sabido que nestes carnavais perde quem seguir a reboque do plano adversário. Deixando atracar o barco, num encenado clímax, com mais ou menos manifestações hostis (que evidentemente também estavam nas previsões), com mais ou menos fiscalizações policiais e sanitárias (que reverteriam também a favor da propaganda pretendida) os organizadores estariam sempre a ganhar. Monopolizavam os projectores quanto lhes conviesse.
Que o tiro terá sido bem direccionado também parece confirmado pelas desorientadas reacções das hostes animadas pelo evento. Uns emitem protestos retóricos, outros anunciam que o navio atracará mesmo assim (nesse caso lá se vai o legalismo enfaticamente proclamado: pode um navio forçar a entrada num porto que a não autorizou?) e outros dizem que a organização irá apresentar queixa às instituições comunitárias. Em qualquer das hipóteses, sobretudo na queixosa, o que se vislumbra é o naufragar do plano; e bem gostava eu de saber quem suporta as contas, que isto de fazer navegar um navio entre a Holanda e as águas portuguesas, ida e volta, é brincadeira para custar uns largos milhares de contos dos antigos.
Resta-me deixar uma observação que me tem andado na cabeça nestes últimos dias: como sabe quem tem alguma maturidade e experiência no que respeita a manobras de publicidade e propaganda, há golpes que afectam gravemente os fins que queriam servir. Tal como um produto pode ficar para sempre ferido na sua imagem por uma iniciativa promocional infeliz, também uma causa pode ficar gravemente prejudicada por uma campanha idealizada para a promover. Esta excursão do chamado barco do aborto, todo o arraial montado à volta, a arrepiante ligeireza dos discursos, com a convocatória das interessadas em dar um passeio ao alto mar, vamos ali e já voltamos, damos caramelos, leia-se pílulas abortivas, às concorrentes premiadas, surge como uma machadada terrível na respeitabilidade das organizações normalmente associadas à luta pró-aborto. Degrada o assunto e baixa o nível a um limite nunca visto. De ora em diante, será muito mais difícil afixar um ar sério e equilibrado para entrar em qualquer discussão sobre legalidade ou ilegalidade de práticas abortivas, falando pomposamente em dignidade da mulher e outros tópicos semelhantes, sem levar logo na cara com a evocação deste carnaval.
Mas esperemos então pela sequência da telenovela.

Nota sobre as presidenciais

Faz parte das regras do comentarismo instalado nunca confessar perplexidade ou ignorância. Um bom comentador sabe sempre tudo sobre tudo. Daí nasce uma espécie de incontinência opinativa, que não poupa nada nem ninguém.
Eu, por mim, tenho as maiores dificuldades em adaptar-me a tal imperativo. Por vezes não sei o que dizer, e não digo nada, mesmo que muito se fale sobre certo assunto que me causa bloqueio insuperável.
É o caso das próximas presidenciais americanas. Eu não ignoro que os EUA são o estado mais poderoso do mundo. Bem sei que o jogo político interno deles terá reflexos do maior relevo a nível global.
Mas a verdade é que não sei o que dizer sobre a corrida Bush-Kerry, nem sei sequer ao de leve o que está em jogo nessa escolha, e o que nos poderá trazer a nós.
E também não percebo por que razão um tão grande povo só tem para oferecer-se umas tão fracas prendas.
De maneiras que nada direi sobre a disputa. Não conheço o Bush, não conheço o Kerry, e nunca vi mais gorda a intragável senhora Mayonnaise Ketchup, portuguesa de terceira que um dia subiu pela cama do senhor Heinz.

De novo a educação

Por via do BlogUE, descobri um importante artigo do Prof. Fernando Adão da Fonseca, na continuação do recente debate sobre o ensino em Portugal.
E pela mesmo caminho tomei conhecimento da existência do Forum para a Liberdade de Educação, que me pareceu instituição meritória, a reclamar o nosso apoio activo.
Ainda por cima fui espreitar os nomes dos membros dos órgãos sociais e encontrei logo velhos amigos. Coisas do exílio.

Uma causa para que importa mobilizar a opinião pública mundial: a perseguição a Bobby Fischer.
É imperioso agir rapidamente, usando os meios ao nosso alcance para exprimir a solidariedade com o xadrezista preso no Japão e ameaçado de extradição para os EUA, oficialmente por ter cometido o crime de ir à Jugoslávia disputar uma partida de xadrez transgredindo as proibições do seu país.
Vão ler o sítio da campanha FREE BOBBY e não se poupem ao gesto que está ao alcance de todos: enviar mensagens para as autoridades competentes, em demonstração de repúdio pelo intolerável abuso, tal como ali é pedido.
Não se desinteressem, porque o destino dele hoje pode bem ser o do mundo amanhã.

sexta-feira, agosto 27, 2004

Pena e Espada e Porta-Bandeira

Um com quatro meses, o outro com dois, o certo é que são dois blogues que têm vindo a crescer e se tornaram leituras indispensáveis a quem procura escapar à ditadura cinzenta do lugar-comum: o Pena e Espada e o Porta-Bandeira.
Parabéns a ambos!

0 ESPÍRITO de POUPANÇA

Há anos, em Guimarães, conhecemos um pobre carregador, bom gigante que era gago e não regulava muito bem do juízo. Carreava o sal e as mercearias para diversas casas e assim angariava o sustento e o preço do tabaquito. 0 nosso conhecimento liga-se precisamente ao tabaco, pois embora eu não fumasse, munia-me de alguns maços para lhos oferecer e assim entrar na filosofia do homem que não era desaparafusada de todo. Um dia, vi-o chegar ao pé de mim e notei que trazia dois relógios, um em cada pulso! - Ó Manuel, então tu trazes dois relógios? Para que foste gastar dinheiro à toa? - É que dou corda neste de manhã, e, no deste lado, à noite. E quando um pára o outro lá segue! Quero crer que, na sociedade em que vivemos, que alguns chamam da abundância, outros do consumo, não são raros os que procedem como esse meu amigo sem lhe adoptarem a filosofia que ainda tinha lá no fundo um luaceiro de razão a justificá-la. Há por aí muita gente com os dois relógios... Mas os tempos vão maus e intimam ao homem que adopte um espírito de poupança e saiba viver com o pouco que bastou aos grandes sages que balizaram os séculos. No nosso tempo houve aí um filósofo, Marcuse, que doestou a sociedade metida nos trilhos de produção desenfreada a toque de necessidades estandardizadas. Mas fê-lo em nome de uma filosofia igualmente materialista e em nome do princípio de prazer avançado por Freud. Não é por aí que nos vem o remédio. Muito melhor viu a coisa um filósofo que tem honrado as nossas páginas, Gustave Thibon, o qual escreveu um lúcido ensaio sobre o espírito de poupança. Quem tem contacto com a terra e com o ritmo de produtividade que a caracteriza sabe adaptar-se aos gastos, zelar o que custa muito suor, afastar-se do desmazelo que é sempre prova de desamor. A abundância acompanhada de autodomínio, a abundância regulada e usada com mesura é altamente favorecedora do homem; a abundância a que o homem se sujeita é como uma aluvião que desaba e afunda o mesmo homem num mar tredo de facilidades, mar emoliente que elide a fibra resistente e batalhante e nos deixa à mercê de qualquer zagalotada de inimigo escarnicoso. Quando os senhores ministros nos vêm dizer que é preciso apertar o cinto e nos entregam um "cabaz" sucinto e rodeado de leis, todos nos lembramos das vacas magras do Egipto faraónico e fazemos cara feia ao tempo que aí vem. Mas também é certo que nem os senhores ministros são capazes, em certas ocasiões, de afastar o gado emagrecido e trazer à soga o vaquedo gordo para os nossos lameiros. Mandam-nos invocar o espírito de poupança e eles mesmos pegam de andar a pé para não gastar gasolina, viajam menos de avião, sujeitando-se em tudo às normas do comum. E começam a perceber que o uso moderado das coisas que é precisamente, segundo o irrefragável dicionário de Morais, o espíto de poupança, é meio muito mais idóneo para robustecer a economia de uma nação do que voejar, dia por dia, para os países de Leste, donde regressaram com a escudela vazia! Esse uso moderado das coisas dá ansa a que o homem as aprecie, as estime no seu justo valor, crie relações com elas que, a um tempo, o aperfeiçoam moralmente e lhe deixam a inteligência espevitada para descobrir aptidões e finalidades às sóbrias coisas que vêm ter com ele por caminho sóbrio, custoso, original. Já a velha Grécia entendeu, pelos seus homens de proa, que o ideal humano não sobrepaira os povos fartos porque os adormenta em torno de viandas gratuitas. E se hoje vemos pelas Américas opulentas bons exemplares humanos de mesura e de ascese é que o espírito de poupança pode e deve florescer mesmo nas abundâncias e é mesmo aí que se mostra mais virtuoso. Quando o espírito de poupança se volve forçoso, é caso para perguntar como se vivia, antes que a primeira vaca magra anunciativa destes tempos entrou no lameiro. Quem eram os perdulários? Quem os semeadores de cobiças e de necessidades supérfluas? Quem os esbanjadores dos dinheiros públicos? No meio deste exame, lembramo-nos do macaco que possuía certo avarento. Como este adormecesse, o bicho foi-lhe ao cofre, sobraçou maços de notas e veio entorná-las da janela abaixo para os passantes que não pararam a vê-las cair mas as foram encarteirando, pela mansa. Estas histórias de mestre Esopo, ou doutro por ele, têm aplicação periódica a nível colectivo e é sempre de temer que as nações alberguem desses bichos nos seus adentros. Fica porém, a claro, que o espírito de poupança deve vigorar em todo o tempo. É uma espécie de espírito clássico do domínio da economia, assim como o abanjamento é de feitio romântico e castiga com dura côdea quem se lhe entrega. Vamos então ser clássicos a duras penas? É o que parece, a julgar pelos preços altos. E o Manuel, bom gigante de Guimarães, continuará com os dois relógios, um em cada pulso, com o fito de, se um parar, o outro lá seguir, porque o que importa é trazer horas certas...
João Maia

O ELITISMO ÀS AVESSAS

Quando me fazem perguntas sobre a promoção social e respondo que ela deve consistir na selecção dos melhores, logo me acusam de "elitista".
0 termo é recente e implica uma cambiante pejorativa: espírito e orgulho de casta, desprezo dos humildes, etc...
Redescubramos o sentido das palavras. Elite (de escolhido, eleito), segundo o dicionário, designa "o que há de melhor" nas coisas e nos seres. Assim. os grandes vinhos de Bordéus fazem parte da elite dos vinhos, os famosos "verdes" de Saint Etienne representam a elite dos jogadores de futebol, etc..
Uma vez que concordamos nisto, não é normal preferir e privilegiar o melhor? Será que, para evitar o elitismo, sou obrigado a achar tão saboroso o frango criado com hormonas em aviário como o frango criado no campo? E não é justo que, na sociedade, os melhores lugares sejam para aqueles que se distinguem pelos seus talentos e pela sua actividade e que prestam assim os melhores serviços à comunidade? Não é verdade que os exames escolares, a qualidade do trabalho e a competição profissional actuam nesse sentido? E como não pode existir sociedade sem hierarquia, não é desejável que essa hierarquia assente na selecção e na promoção dos melhores? Para dar o exemplo de casos extremos, seria elitismo suspeito recusar um posto de professor a um analfabeto ou a carta de condução a um cego?
O que me inquieta hoje é o desenvolvimento cada vez mais difundido de um novo elitismo, um elitismo às avessas, resultante de uma falsa noção de igualdade e de uma sentimentalidade transviada, que se manifesta pela preferência dada aos inadaptados, aos inúteis, aos parasitas e, até, aos malfeitores.
Vejamos alguns exemplos desta inversão de valores.
Conheço professores que afirmam que os maus alunos são mais interessantes que os alunos dotados e que recusam energicamente os velhos critérios de selecção: notas, classificações, exames, etc.
Não é verdade que a segurança social - da qual não contesto o principio humanitário, mas o modo de funcionamento em que florescem o anonimato e a irresponsabilidade - favorece mais frequentemente os preguiçosos e os trapaceiros em detrimento dos trabalhadores que, fiéis ao seu dever, não sentem necessidade de transformar o menor incómodo de saúde em repouso imerecido e em tratamentos supérfluos?
A inflação vai roendo, em cada dia, os rendimentos e as economias dos produtores. Mas permite aos especuladores realizar lucros enormes sem realizar qualquer trabalho útil, pelo simples jogo das divisas monetárias.
Os malfeitores e os criminosos inspiram maior comiseração que as suas vítimas, uma vez que a sociedade é declarada a priori a grande, senão a única culpada. Já me referi ao caso de uma prisão moderna instalada na Córsega, onde, exceptuada a residência forçada, os detidos gozam de um conforto e de um luxo (praia privativa, centenas de hectares de parque, etc. ) com que a maior parte das pessoas honestas não pode sequer sonhar...
E porque não falar também da atenção e publicidade privilegiadas de que beneficiam os marginais de toda a espécie: "hippies", prostitutas, tarados sexuais, etc.? E do êxito das publicacões e dos espectáculos que abundam nessa linha? Como se, por uma estranha perversão do paladar, a sociedade se tivesse tornado mais gulosa do que a envenena que do que a alimenta...
Termino a série destes exemplos com uma anedota saborosa. Numa universidade estrangeira, cujo nome não cito, dois professores de competência mais ou menos igual apresentam-se à escolha das autoridades académicas como candidatos a uma cátedra. Um deles é um homem perfeitamente equilibrado, o outro um grande nevrótico, titular dos vários diplomas exigidos e também de algumas depressões que comprometeram a sua docência anterior. A cátedra é atribuída ao segundo, com a justificação de que a sua natureza frágil não suportaria a provação da recusa, ao passo que o primeiro é uma pessoa solidamente estruturada para aceitar o revés sem problemas. Compreendo que haja compaixão para com um infeliz. Mas não compreendo a cruel inconsciência em relação ao seu colega, eliminado por causa da sua própria superioridade, e em relação às centenas de alunos que sofrerão mais tarde as consequências de uma escolha desumana por excesso de humanidade...
Assim se afasta a elite fundada sobre o valor para se instalar uma contra-elite: a da escumalha e do rebotalho. Se se continuar a avançar por este caminho, bastará ser superior ou simplesmente normal para merecer a indiferença, se não a suspeita e o desfavor...
Entendam-me bem: não nego que os mais fracos devem ser não só protegidos contra os abusos dos mais fortes mas também ajudados por estes; afirmo simplesmente que não devim ser preferidos e privilegiados como tais; afirmo que a incapacidade e, com maior razão, o parasitismo e as malfeitorias não devem dar direito a tratamento de favor. Ajudem-se os deserdados, reeduquem-se os anormais, mas que as suas falhas e as suas taras não se tornem meios de chantagem e motivos de promoção.
Também sei que é difícil conservar o equilíbrio, mesmo nas sociedades mais sãs, entre os direitos do mais forte (e tomo esta palavra no seu sentido mais elevado: força da inteligência e da vontade, capacidade de acção, etc.) e o dever de socorrer os mais fracos e os transviados - entre a lei da selva que elimina implacavelmente os inadaptados e um humanitarismo deliquescente que consagra e incentiva a incompetência e o vício. Mas nem por isso deixa de ser verdade que - e esse é um dos perigos do nosso liberalismo dito "avançado" - se continuar a generalizar-se esse deslocamento da elite de cima para baixo, é toda a sociedade a correr o risco de se afundar sob o peso desta promoção às avessas que é a promoção dos inúteis e dos parasitas.
GUSTAVE THIBON

quinta-feira, agosto 26, 2004

Haja festa!

Eu bem vos ouço a murmurar como este blogue é maçador, sempre de cara séria e ar preocupado.
Pois para que saibam que todo o alentejano também tem um lado festeiro, fica aqui em baixo o caminho para dois ajuntamentos que prometem, a preencher estes últimos dias de Agosto.
Às festas, que é o tempo delas!
Seja como for, com elas ou sem elas, o mundo fica tal qual como antes delas.

Festas em Campo Maior

Festas no Crato


O LOBO E O HOMEM

Mau. O título já me saiu errado. O homem e o lobo é que é! Aqui a ordem dos factores não é arbitrária. Mesmo o grande Camilo, que tanto relevo deu ao lobo no matagal vigoroso da sua prosa, põe-no não só depois do homem, mas varado a zagalotes na descrição quiçá mais acabada de toda a literatura portuguesa. Aqui a coisa é-nos contada por Jack London, romancista de língua inglesa. Lá pelo Norte do Canadá, onde neva meses a fio, perdera-se um homem que ia de rota batida não sabemos bem para onde. Perdeu-se e pegou de escrutinar as distâncias e a vagabundear, forçado e aflito, naquela brancura que, gradualmente, se lhe ia tornando um inferno. Tanto mais que, passadas muitas horas, voltando a cabeça, viu desenhar-se, numa lomba, o corpanzil de um lobo que o farejava e seguia. O único parentesco que os unia era a fome. Ambos acusavam extrema fadiga e lá iam sobre a neve indiferente, desenganada, inacabável...
O homem apoiava-se a um bordão que os flocos floresciam e curveteava, subindo e descendo montículos. Á roda a branquidão sem rasto, sem um sinal de vida, orlada por horizontes de cinza que era mais neve a cair. Lá atrás o lobo parava se o homem parava; e deixava descair a língua vermelha enquanto das ventas lhe saía a respiração que a fadiga fazia intermitente e soprada. Mais um esforço, e o homem, agora bem avisado de quem o iria comer se fraquejasse, esboçou uns passos animosos a que o lobo respondeu, para o não perder de vista, com uns saltos desengonçados, tradutores de muita lazeira. Uma hora se arrastou naquela teimosa contradança, até que, por fim, o homem sucumbiu e abateu-se na neve, torcido na queda como a fazer uma vírgula naquele texto de brancura estéril e mortal. O lobo veio vindo, não diremos de seu vagar, mas com as delongas que a extrema fraqueza impunha, e ao chegar junto da vítima abriu e fechou os olhorros, como já não vendo bem o remédio tardio porque suspirara e jornadeara. De facto, ainda estendeu as patorras por sobre o homem, mas já não teve forças para abrir os queixos e se refocilar. O que aconteceu foi que transmitiu à vítima uns calores como de cobertor felpudo, e o homem foi aquecendo, aquecendo, até que veio à razão e se viu na atroz companhia. Aterrado e na impossibilidade de se valer das mãos entanguidas, rompeu a morder em tão bons sítios que estraçalhou uma veia do lobo. Absorveu um pouco de sangue e cobrou acrescidas forças. Bebeu mais e, a breve trecho, já se levantava, sacava de um canivete e fazia providências de açougueiro para a restante jornada. Cortou pouco porque não queria perder o sangue da fera e, com ela de azorro abalou, neve em fora, até um altinho donde distinguiu fumos e lineamentos de casas, lá ao longe. Entrou no povoado arrastando o lobo atrás dele...
Querem alguns dizer que esta história de Jack London é simbólica e vá de traduzir a coisa para contextos humanos e lupinos. Dizem pois alguns intérpretes que a neve é a Vida, o lobo é o Desânimo, só o homem é mesmo o homem, o homem de sempre e de toda a parte. Lá vai ele, o homem perdido na neve arrastando atrás de si o cãozarrão do Desânimo que o não desfita e sonha sair do que é, um vulto de sombra e de nada, com beber o sangue do homem. Este vinga sacudi-lo e tirar forças da falência. Feito um primeiro acto corajoso, faz outro e outro, e encontra-se safo, na companhia de outros homens operosos, com o lobo morto a bater-lhe nos calcanhares. Continua a nevar, mas ele já sabe como valer-se nas perdições...
Bons hermeneutas são os que pensam assim. Mas o melhor de todos... parece ter sido quem? - Adivinhem! - Não sabem? - Eu lhes digo. Conta-se que Lenine, o intérprete e realizador das ideias de Carlos Marx, leu na última doença o livro de Jack London, e ficou cismento sobre o lobo e sobre o homem. Começou a desenhar-se-lhe na fantasia que o lobo incorporava, naquele corpanzil desengonçado e perseguidor, nada menos que o Comunismo. O homem perdido na neve é o homem de sempre e de toda a parte. Mas que o homem sacuda a besta-fera no último segundo e dobre a colina para continuar na povoação outra aventura - isso dava azia ao primeiro senhor do Kremlin e maldizia dos romancistas que deixam as coisas nesta ambiguidade. Enfim, coisas! - como diria Machado de Assis, deixando ao leitor a porta aberta para fantasiar a seu talante sobre matéria discutível que, neste caso, se desdobra entre lobo e homem, na brancura alvinitente, algures, no Norte do Canadá...
JOÃO MAIA

O psicossomatismo, o aborto e a moral sexual

Um padre americano contou-me recentemente a história seguinte: recebera a visita de dois adolescentes num estado de extrema agitação. Julgavam-se possessos do demónio e pediram-lhe para os exorcizar. Como nunca lhe tinham feito tal pedido, começou por manifestar algum cepticismo sobre o que os jovens afirmavam. Compreendeu tudo, quando eles lhe confessaram que tinham assistido, alguns dias antes, à projecção do filme de horror intitulado "Exorcista".
"Acabei - contou-me ele - por praticar sobre eles, com a maior solenidade possível, os ritos do exorcismo e eles foram-se embora livres da sua obsessão. Mas pergunto a mim próprio se não se tratava de um simples fenómeno de auto-sugestão..."
Sugestão ou não - respondi-lhe - acho que procedeu muito bem, porque era verdadeiramente do diabo que se tratava. Não, sem dúvida, de um caso em que o demónio possuía directamente uma pessoa, mas sim do espírito do mal que sopra através do mundo e penetra nas almas através dos meios de comunicação social. Em suma, um demónio sociológico, adaptado à era das multidões...
Digamos que estes jovens que se julgavam possessos tinham "somatizado" a emoção violenta provocada por um espectáculo de terror. O que nos conduz a reflexões mais gerais sobre o fenómeno da projecção no corpo das perturbações da alma, ao qual um dos nossos grandes médicos atribuía recentemente a origem de pelo menos 50 por cento das doenças consideradas orgânicas: asma, eczema, úlcera gástrica, cardiopatia, etc. Daqui a necessidade de os médicos que se preocupam com a eficácia saberem tanto de psicologia como de fisiologia.
Admite-se, portanto, cada vez mais, sob a pressão crescente dos factos, que a alma é senhora do corpo, que o plasma, se assim posso dizer, à sua imagem, uma vez que perturba o funcionamento do corpo em função do seu próprio desregramento.
Mas qual é então a causa da má vontade ou da suspeita que tão facilmente incide sobre o bem fundado da influência contrária - a influência da alma sobre os mecanismos e as pulsões do corpo, a fim de os regular e de os orientar em função de um ideal moral ou religioso?
Uma imensa corrente de opinião, que tem origem no culto aviltante do prazer e da facilidade, tende a repelir, como contrárias à plenitude do ser humano e como causas de recalcamento e de frustração, todas as formas de ascese e de disciplina que o espírito impõe à carne. É neste sentido que alguns condenam, em nome da espontaneidade e da criatividade da criança, a parte de aprendizagem e de disciplina que a educação comporta e que identificam, em matéria sexual, o ideal de castidade com recalcamento...
"É lesar os direitos do corpo impor a castidade aos adolescentes" - dizia-me uma educadora, embebida até á medula de liberalismo moral e, por outro lado, eminentemente favorável ao aborto e à pílula.
Eis como lhe respondi: "0 corpo não tem direitos, mas funções. É à alma que pertence coordenar essas funções com vista a realizar um equilíbrio óptimo entre a vida animal, a vida espiritual e as exigências do meio social. Que isso implica uma parte de violência em relação às pulsões carnais, é algo a que dou o meu acordo sem receio. E também concordo que certas castidades mal integradas provocam recalcamentos. Mas o recurso ao aborto ou à pílula, que você preconiza, como contrapartida da liberdade sexual, não é também um atentado contra esses famosos "direitos" do corpo? É a carne que reclama a interrupção da gravidez ou o impedimento da fecundidade? Pelo contrário, ela só quer levar até ao fim o processo natural que vai da união conjugal ao nascimento. Não, essas intervenções mutilantes procedem de um frio cálculo do espírito, ávido de tirar do corpo o máximo de gozo, sem ter em consideração as consequências naturais do prazer. Nesse caso, intervenção por intervenção, prefiro a da moral sexual..."
Assim, como quer que se proceda, nunca se escapa ao domínio da alma sobre o corpo. Todo o problema está em saber qual o sentido em que esse domínio se exerce.
Mens sana in corpore sano (alma sã em corpo são) - diziam os antigos. Sabemos demasiado bem que as doenças da alma se repercutem sobre o corpo; por isso, é preciso velar pela saúde da alma, a fim de que ela tenha, sem sentido contrário, as mesmas repercussões - por outras palavras, substituir o psicossomatismo do erro e do mal pelo da verdade e do bem.
GUSTAVE THIBON

quarta-feira, agosto 25, 2004

Poderes públicos e máquinas partidárias

Por vezes a realidade ainda é pior do que pensam os menos optimistas. Basta olhar com atenção para a troca de palavras que passamos a reproduzir, entre dois proeminentes políticos da área governamental, para se ficar a saber como funciona o processo de decisão em matéria de investimentos públicos, e a sua dependência das máquinas partidárias, e dos interesses inconfessáveis com elas relacionados.
O Presidente da Câmara Municipal de Gaia, Luís Filipe Menezes ameaçou esta quarta-feira demitir-se da presidência, na eventualidade de se confirmar o adiamento do Programa Polis na cidade.
Esta reacção surge depois do "Diário Económico" ter dado conta da intenção do Governo no adiamento deste projecto em 13 cidades, no qual Gaia seria uma das mais afectadas pela redução de verbas.
Em declarações à TSF, o autarca considerou esta situação "uma gota de água de uma série de outros casos que têm discriminado a cidade", ameaçando por isso demitir-se.
Em reacção à reacção de Menezes, o líder do PSD Porto, Marco António, reconheceu que em muitos pontos o autarca Luís Filipe Menezes tem razão, mas defende que estas declarações não resolvem o problema.
"É óbvio que consigo vislumbrar motivos de queixa relativamente a várias questões. Mas as declarações que proferiu agravam a situação. Para resolver a situação deve recorrer a mim, como os outros autarcas fazem quando têm problemas", salientou o líder distrital.
Nem mais nem menos: para resolver a situação o presidente de Gaia deve recorrer a Sua Excelência, como fazem os demais. O que julgava ele? Que devia falar com os ministros responsáveis? Que devia vir para a comunicação social denunciar os problemas?
Não: devia era calar-se, e ir falar com o Marco António. Assuntos de família tratam-se em família.
O que me dizem os leitores? Se fosse alguém de fora do sistema a declarar que um presidente de câmara para tratar de problemas relativos aos programas governamentais para o seu Concelho deve dirigir-se ao Presidente Distrital do partido governamental, a afirmação seria considerada como uma torpe calúnia, e de pronto desmentida pelos próprios.
Mas são eles que o dizem!...

Identidade digital

Em estreita relação com o tema anterior, constato que está anunciada para hoje (4ª feira, dia 25 de Agosto), na SIC Notícias, logo depois do noticiário das 22h, a emissão de uma reportagem sobre «Identidade Digital».
Esta reportagem debruça-se sobre o futuro que se anuncia, em que a sociedade tecnológica tende a sobrepor-se a qualquer resíduo de privacidade ou de autonomia individual, e cada cidadão é portador de um micro-chip controlado pelo sistema instalado...

Ainda ROLLERBALL

No seguimento da entrada anterior, sobre o jogo no "brave new world", lembrei o "Rollerball"; e com essa lembrança, do filme que vi, se bem me lembro, no cinema Alvalade, recordei também um jovem aprendiz de crítico de cinema que escreveu e publicou nessa altura um breve apontamento sobre a fita. Aqui o ofereço aos meus leitores, especialmente aos companheiros de tertúlia desse crítico já esquecido que por aqui costumam passar.

ROLLERBALL PARA VIVER
Já no "Jesus Christ Superstar" Norman Jewison tinha mostrado a sua capacidade de realização, tanto mais exemplar quanto mais difícil.
Em "Rollerball" vibra intensamente a força, no movimento das imagens; imagens de luta, de choque, de combate brutal progressivamente liberto das "regras do jogo". Jewison atingiu a exacta dimensão da vida.
Numa sociedade de bem-estar material - no século XXI ou no século XX, não importa - a ausência de obstáculos, de desafios ao esforço e à combatividade humana produz como norma o tédio, a falta de finalidades a caminho de autodestruição. (Nos homens como nas Nações, aliás.) Para o evitar, como instrumentos de drenagem da energia do universo animal que reside no homem, existe Rollerball, um "jogo" tornado instituição; a sua finalidade, política, suprema, é, contudo, demonstrar a inutilidade do esforço individual face à crueza da luta. Nada mais correcto para um poder-providência tecnocrático que se ergue omnipotente e omnipresente sob o rebanho igualitário e despersonalizado que caracteriza essa sociedade do século XXI. 0 "Rollerball" é pois uma peça chave do sistema.
0 grão de areia surge, inevitável, na figura de um homem que sabe lutar, ás do "Rollerball", e, também, pensar. Ele próprio, antes e para além da equipa, defronta o conluio e põe em xeque toda a engrenagem do poder, acabando por triunfar. É um percurso clínico do Herói, "perigosamente popular", homem total e por isso mesmo uma ameaça à lógica da "sociedade unidimensional" do (nono) século XXI.
A violência e a ferocidade do combate saem, de "Rollerball", inteiramente absolvidas. No patológico labirinto de ideias utópicas que nos rodeia, "Rollerball" é um manifesto contra a morte. Um filme saudável que se impõe ver.
V. L. R.

Rollerball

Muito interessante o texto de Guillaume Faye sobre "a sociedade do espectáculo" publicado no "Pena e Espada".
Fez-me lembrar irresistivelmente um velho filme de Norman Jewison, já de 1975: "Rollerball" (não confundir com remakes...)
A acção passa-se em 2018, e o mundo está dividido apenas em seis corporações. Todo o equilíbrio social depende de um jogo, para onde são canalizadas todas as tensões...
Alguém viu?

terça-feira, agosto 24, 2004

Lusitano Ginásio Clube

Na entrada anterior lancei a ideia de blogues ligados ao Lusitano e ao Juventude, que tanto quanto sei não existem, mas esqueci-me de referir que o histórico Lusitano de Évora tem já há algum tempo o seu próprio sítio; aqui fica assinalado, como é justo. Vão então conhecer o sítio do LUSITANO GINÁSIO CLUBE.

Blogocultura

Verifico com satisfação que o recurso à criação de blogues, para as mais diversas finalidades, começa a entrar nos hábitos eborenses.
O aparecimento de novos sucede-se, a um ritmo difícil de acompanhar mesmo pelo atento camarada do TUDOBEN.
Detectei mais estes: o Festival de Teatro de Amadores de Évora, lançado pela Sociedade Joaquim António de Aguiar para dar informações sobre o FESTAE, a sua história, a agenda de espectáculos, os grupos, e, ainda, para promover a discussão pública sobre este evento em particular e sobre teatro em geral; o António Costa Dieb, destinado a apoiar a candidatura de António Costa Dieb a Presidente da Comissão Política Distrital do PSD/Évora (o Dieb é um jovem político que se caracteriza por ter uma visão dos acontecimentos localizada bastante acima da média).
Lembrando que já tinha aqui assinalado o blogue da Sociedade Harmonia Eborense, podem os leitores verificar como, seja do lado das associações culturais e recreativas seja agora pelos políticos locais, a utilidade da blogação parece estar a ser generalizadamente reconhecida.
Venham mais; acho que o Juventude e o Lusitano ainda não têm...

segunda-feira, agosto 23, 2004

Entrevista ao Dr.José Ernesto

O blogue eborense "Geraldo Sem Pavor" publicou uma entrevista ao senhor Presidente da Câmara.
Estou em condições de informar que foi um parto difícil, mas, dada a especialidade do entrevistado, acabou por correr tudo bem. Pode dizer-se que veio à luz uma criança saudável, risonha e bem disposta.
Vão lá ler, que tem graça e não ofende.

SOBRE LIVROS

Coisa melancólica é ver um burro carregado de livros. Mais melancólica se, em vez do simpático e orelhudo substantivo, vemos debaixo da carga um animal pertencente à espécie dos catarríneos sem cauda... 0 meu leitor está-me a entender e eu vou adiante. Se a criatividade esmorece debaixo do peso da erudição, então o muito saber nada aproveita e em vez de um agente estimulante o muito ler gera fadiga e tédio e transforma-se numa gulodice de madraços. Tivemos, já lá vão muitos anos, um professor tão destituído de imaginação que só tinha um exemplo para aligeirar (pensava ele!) as aulas em que se exauria a despejar a ciéncia compendiária. O exemplo era ir à cidade mais próxima comprar um relógio para dar a um amigo. Aquele mofino relógio servia para tudo. E era deveras hilariante ver abalar o mestre, por frios e canículas, rumo à cidade, para contentar o amigo que ninguém sabia quem era. Leu todos os livros sobre a matéria. E entendeu-os? Ou só respigou umas sentenças e amesquinhou tudo o mais? "Não é o muito saber que sacia a alma", disse um sages. Tão verdade é isso que ainda agora tivemos aí a prova, no torvelinho político que agitou a grei. O povo, armado de sensatez e senso comum, a certa altura sobrepôs-se aos políticos que, vamos lá a supor, tinham lido todos os livros e, por sobremesa, todos os folhetos explicativos do Carlos Marx. Desandaram em completo ridículo umas campanhas de culturalização que enviaram seus oráculos pelo país em fora. Eram grupitos que amantavam sua ignorância debaixo dum verniz citadino. O povo reunia-se e achava-se, a breve trecho, muito mais instruído que esses Sólons de pacotilha. Sítios houve em que os escorraçaram antes de sol posto, remetendo-os à redacção de jornais que "Deus tem", onde se doeram de terem caído no meio de gente reaccionária! Elevando o caso a categoria histórica, um amigo nosso, com risonho ademã, disse-nos que o episódio de Maria da Fonte é constante na forma do povo se haver com os políticos. Quando o político surge com a cartilha avariada, o povo pega num chuço.
Pedra com pedra não faz boa liga. E a ignorância inculposa do povo por vezes cinca com a sabença dos letrados, mas de forma que não vem daí mal ao mundo. Abespinham-se os eruditos mas o povo lá segue o seu caminho. É famoso o caso de certo professor rural que timbrou em preparar os alunos para receberem o inspector e o atolambar com uma lição de truz. Ao aluno mais vivaço encomendou a lição das Descobertas. Chegado o inspector, disposta a aula em círculo, começaram a chover as perguntas. - Quem descobriu o Brasil? trovejou o inspector. O petiz, muito embora ensaiado, titubeou e negou-se a responder. Espanto do professor e espanto do inspector. - Quem descobriu o Brasil? - O mocito atemorizado e julgando, pelo tom do homem, que a descoberta não era boa, respondeu, tremelicando: - Eu não fui, senhor inspector! O inspector sorriu, volveu-se para exames menos molestos e a coisa ficou por ali. O professor é que estava uma fera. Desarvorou dali e ao chegar a casa referiu à mulher o desaire: - Uma coisa destas, ó mulher! Uma semana de preparos e vai-se a ver o Manuel da Anitas, ao perguntar-lhe o inspector quem descobriu o Brasil sai-se com esta: - Eu não fui! Isto é da gente perder a cabeça! - Ó homem, muito arrufado de génio me saíste, e talvez não fosse ele! O homem ficou fora de si ao notar que a mulher participava de tão enorme ignorância sobre o alteroso feito. Saiu porta fora e esbarrou, a poucos passos, com o pai do mocelho. - Olhe que o seu filho sempre me deixou ficar mal parado! - Como assim? - Pois ontem na cara do inspector que lhe perguntava quem tinha descoberto o Brasil saiu-se com esta resposta: - Eu não fui! - E o senhor professor acreditou? Olhe que ele é muito mentiroso. Tire inculcas que se calhar foi ele! Quer dizer, a ignorância popular por vezes enrola-se de tal maneira em torno da sabença dos livros que nem à fina força se consegue desfazê-la, Mas é em coisas de somenos aplicação à vida prática. A ciência dos livros afasta, muita vez, os letrados daquela sabedoria que assiste aos humildes e os guia através da vida sem extravio de maior.
Há já alguns séculos um dos maiores sages europeus escreveu um livro a que deu o título de "De docta ignorantia" - a ignorância douta. É que há uma sabedoria que se toca de aparente ignorância, como há uma visceral ignorância que se engrinalda de muita livralhada, de muito panfleto, de muito jornal, de muita tinta derramada...
JOÃO MAIA

De Évora para o mundo


Finalmente uma janela internética dedicada à cidade de Évora!
Chegou o ÉVORAMUNDO!

domingo, agosto 22, 2004

Governantes e secretárias

Há alguns anos atrás um efémero secretário de estado, por sinal do PSD, caiu em desgraça junto de certos meios mais sisudos por ter contado em público uma anedota considerada pouco conveniente na boca de um membro do governo. Na verdade não a contou em público, contou-a em privado junto de um grupo em que se incluíam alguns jornalistas, mas pode entender-se que é a mesma coisa.
Disse então o chistoso político que um governante que se preze tem sempre duas secretárias, uma para comer e outra para trabalhar.
A graçola divulgou-se, e o homem esteve pouco tempo no governo. Não que lhe causasse incómodo por aí além, na realidade passou a ser presidente do conselho de administração de uma grande empresa pública, cargo muito mais cobiçado do que o anterior.
Lembrei-me agora do dito de espírito ao saber pelo "Diário da República", o menos lido dos nossos diários, que o gabinete do nosso Primeiro-Ministro, por nomeação do próprio, passou a integrar nada menos de doze novas secretárias pessoais.
Tendo em conta as considerações do outro em matéria de mobiliário dos gabinetes governamentais, fiquei deveras intrigado quanto à utilização que irão ter as novas peças.

Pantanal

Um sintoma notório do estado de apodrecimento a que se chegou em matéria política na sociedade portuguesa actual é o facto de ninguém nos aparecer a ocupar o poder por um qualquer mérito ou qualidade própria. No sentimento geral, quem está continua a estar por ausência de alternativa, chegou até lá por exclusão de partes e assim se vai mantendo.
Como todos se lembram, Barroso e a sua equipa, em que nunca ninguém vislumbrou virtude de maior, conseguiram o poder e exerceram-no devido aos desastres sucessivos que diminuiram o PS. De facto, muito embora ninguém encontrasse nenhum motivo para ser apoiante de Barroso, ninguém era capaz de ver razão alguma para acreditar na inacreditável gente que o PS nos propunha. E deste modo, mesmo sem nenhuma crença em Barroso, o país lá o foi tolerando, encolhendo os ombros, graças à descrença total em qualquer outro.
A sorte do medíocre poder que tínhamos era a desgraçada oposição que lhe correspondia.
E como a possível alternância de poder em Portugal só pode fazer-se entre PSD e PS, a situação assim continuou.
Barroso fez o que quis, e o poder político transitou para o grupo em que são protagonistas Santana e Portas. O país não espera deles nada de bom, e entretanto vai-se divertindo com os seus pequenos e grandes ridículos. Mas daí a fazer alguma coisa para os tirar de lá vai um passo que ninguém está disposto a dar. Estes são o que são, mas os outros ainda parecem mais medíocres e insignificantes.
E desta forma, sem que ninguém saiba para quê, nem os próprios, o poder político vai-se mantendo, sem um projecto, uma ideia, uma linha de acção, uma imagem do futuro. Resignado ao facto, o país vai vivendo. É uma certa forma de estabilidade.
Esta situação a nível nacional repete-se depois indefinidamente a níveis intermédios, regionais e locais. Quem está está porque não há mais ninguém. Veja-se o incrível Jardim (neste momento o único rival de Fidel a nível mundial).
Mesmo perto de cada um de nós: aqui em Évora o poder municipal foi ocupado pelo PS, concretamente pelo Dr. José Ernesto e pela sua facção. Decorridos mais de dois anos, a opinião pública a respeito do seu exercício do poder é miserável. Não encontro opiniões favoráveis. O estado de apatia e desorganização, de ausência de rumo, de absoluto desgoverno, é patente na actividade da Câmara Municipal. Mesmo os assessores disso encarregados já sentem as maiores dificuldades em vir a público exprimir as posições que por obrigação devem exprimir, por óbvio receio do ridículo. No entanto, tudo ponderado, a continuidade do poder socialista, e da equipa de José Ernesto, depurada dos dissidentes (das..), parece-me seguro. Não há mais nada. Não se vê alternativa. Eles irão ficar por exclusão de partes.
Pensem os leitores quantas situações semelhantes conseguem inventariar.

Mais um cá da província

É sempre com regozijo que assinalo o lançamento de mais um projecto bloguístico, ainda por cima com as cores locais. Desta vez dá-se até a coincidência de ter eu passado na sexta-feira em Reguengos de Monsaraz, depois de algum tempo de ausência, e ter deambulado todo o santo dia por estas estradas que nos levam de Évora a Reguengos, de Reguengos para Terena e Alandroal, até Vila Viçosa, e Borba, e Estremoz, pelo Alentejo profundo, renovando o meu êxtase perante o país das uvas - agora em véspera da agitação das vindimas.
E hoje, em primeira colheita, surge-me um blogue de Reguengos, feito ali ao fresco nos degraus do Papança, por estas noites quentes de Verão!...
Que aquilo é terra de boa pinga, já sabemos todos; que esta colheita venha a honrar a fama, eis o que se espera.
As boas vindas ao Papança!
(Pergunta ingénua: atão vossemecês nã gramam o presidente Martelo?!!!)

Ética e deontologia nos jornais

Sempre que lhes parece conveniente os jornalistas usam puxar o lustro às divisas, empertigar-se e invocar pomposamente normas éticas e deontológicas próprias da sua nobre profissão. Apesar da utilização notoriamente interesseira dos princípios, invariavelmente convergentes com objectivos imediatos dos próprios, o estratagema costuma ter um certo efeito inibitório nos interlocutores e nas massas em geral, tolhidos perante tão elevadas preocupações.
Pelo que me toca, quando ouço a cantiga surge-me logo uma súbita vontade de rir. Circulei por esses lados o tempo suficiente para entender o código. Sei o que se esconde sob as palavras. Quando se avança com o imperativo de protecção das fontes, ligado ao famoso sigilo profissional - o que me aparece inevitavelmente é que não existia fonte nenhuma e o jornalista mentiu ou caluniou, por motivos que poderá contar à noite entre amigos, por entre uns copos e umas risadas, mas para a plateia é preciso pôr cara séria e explicar que na sua boa fé tinha todos os motivos para crer no que escreveu, induzido pelas tais fontes que não pode revelar... por respeito pelos princípios.
A deontologia tem aliás dado causa a situações verdadeiramente extraordinárias: há uns anos gerou-se grande polémica e virtuosa indignação quando um jornalista, Albarran, surgiu a exibir a dentadura em anúncios de um dentífrico, ou quando outro foi requisitado para funções em gabinete governamental. Pois nestes anos entretanto passados não têm conto os profissionais que transitam entre as redacções e as assessorias, a tal velocidade que ninguém consegue fixar a tempo se eles estão no gabinete do ministro tal ou da administração xis ou se já se encontram na redacção do periódico ou da televisão a que pertencem, ou se já voltaram a ser requisitados. Tornou-se vulgar, e não há ministro ou secretário de estado ou grande administrador corporativo que não tenha por sua conta, como dantes se tinha mulheres por conta, uns tantos assessores de imprensa e de imagem, recrutados entre os versáteis debitadores de deontologia.
A ética e a deontologia no meio em questão têm uma natureza absolutamente utilitária.
Como exemplo, não resisto a contar uma história verídica, que presenciei espantado já há anos (espantado quando assisti a primeira vez, depois dei-me conta que era a prática corrente). Como os leitores compreenderão, um motivo de preocupação quase permanente nos jornais era, e é certamente, a sobrevivência. O dinheiro escasseia quase sempre. É preciso angariar receitas. E nesta ingente tarefa ninguém se pode poupar a esforços. Consequentemente, é preciso estar atento à publicidade. Ora acontece com frequência surgir uma campanha, seja de qualquer produto comercial seja de qualquer realidade institucional, a favor da vacinação ou em prol da segurança rodoviária, de hamburgueres ou de pensos higiénicos. Importa ser contemplado com os apetecidos anúncios. Porém, não calha a todos - o orçamento da campanha é distribuído por critérios definidos pelos responsáveis, algures entre os anunciantes e as agências.
Um conhecido director, em cujo gabinete eu me encontrei casualmente na ocasião, levado por amigo comum, não era de meias medidas. Telefonava pessoalmente para quem podia decidir (não para as agências encarregadas, era directamente para quem tinha o poder de decisão) e expunha o seu caso. Cumprimentava, e a sequência da conversa, com mais ou menos rodeios, era aproximadamente esta. - Como era seu dever deontológico tinha que comunicar a Sua Excelência que o jornal estava a preparar uma peça que a ser publicada seria muito desagradável para Sua Excelência e para os serviços que superiormente dirige. Evidentemente que estava constrangido com tal situação, e custava-lhe imenso, dado o bom relacionamento institucional desde sempre existente... Mas enfim, o trabalho em causa tinha interesse jornalístico, e estava deontologicamente fora de questão interferir nas funções dos jornalistas... Pelo seu lado, estava a cumprir o que deontologicamente era um imperativo, que era comunicar a quem potencialmente seria afectado... Mas a coisa iria sair, a não ser que algum motivo imprevisto obviasse a tanto; por exemplo, está em curso uma campanha publicitária da responsabilidade desses serviços... se no jornal tivesse sido colocada a publicidade respectiva (coisa que nem estava informado devido à natural separação dos assuntos da redacção e do sector da publicidade) então gerava-se uma situação embaraçosa, que às vezes só se detecta na paginação; como Sua Excelência sabia certamente a deontologia não permite estar a publicar artigos atacando precisamente as entidades de quem se aceitou a publicidade que figura logo na mesma edição... Não, isso era deontologicamente inaceitável. Pronto, com os melhores cumprimentos, lamentando estar a contactar por assunto pouco agradável, felicidades a Sua Excelência...
Podem os leitores acreditar que isto funcionava; antes de desligar o telefone já os dois lados se tinham entendido perfeitamente; e à cautela lá era canalizada a desejada publicidade. Não há nada que os homens públicos mais receiem que a publicidade negativa. Com o tempo fui verificando que estas transacções eram o pão nosso de cada dia. E há quem viva disto!
Também vi não raro acontecer o contrário (até a nível regional e local): surgirem diatribes violentissimas, mesmo campanhas sistemáticas, contra este ou aquele, cuja razão de ser está exclusivamente ligada a problemas de publicidade. Eles não deram, logo apanham.
Podia contar muito mais, mas já vai longa esta contribuição para o debate corrente sobre o jornalismo doméstico.

sábado, agosto 21, 2004

Arquivos da memória

No ano já distante de 1976 saiu em livro uma recolha de "Bilhetes Saloios do Templário", reunindo as crónicas que Fernanda Leitão vinha publicando no semanário tomarense, e que a tinham tornado um fenómeno de popularidade, nesse tempo só talvez comparável a Vera Lagoa.
Em homenagem à nossa correspondente no Canadá, reproduzo aqui a reacção de Rodrigo Emílio, então vinda a público no semanário "A RUA" (7/10/1976).
E esta, hein?!!!

BILHETE CRÍTICO SALOIO (?) PARA A FERNANDA LEITÃO

Fernanda Leitão:
Cedíssimo o seu nome me saiu ao caminho: a partir dos meus 12/13 anos, vezes sem conto o ouvi, e sempre a bordo da mesma voz. - E sabe a Fernanda Leitão na voz de quem?
- Ora se sabe!... Não sabe mesmo outra coisa... Pois de quem havia de ser, senão na voz, afabilíssima e tão travessa, do nosso bem-lembrado Tomaz de Figueiredo?!...
Depois... Ao depois, o Tomaz morreu-nos: andava eu, nessa altura - poeta graduado em alferes miliciano do corpo expedicionário -, por terras de Portugal moçambicano; os anos correram, entretanto, abateu-se em peso sobre a Nação Portuguesa toda esta tragédia de extensíssimas dimensões, a que o nosso Tomaz, felizmente, foi poupado: felizmente para ele, e mais felizmente ainda para os desalmados fautores de tanta traição e vilania juntas, que bem teriam de se haver com ele (olá se tinham!); e sobrevieram, de permeio, os grotescos acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, a reboque dos quais acabei por curtir ano e meio de exílio, sem saber como nem porquê, dado que para aí não fui visto nem achado, e do ponto em que a minha aversão a Spínola já vinha de longe, não conheceu até hoje tréguas nem limites, e a mim nunca ele me mobilizaria fosse para o que fosse - quanto mais, agora, para uma manifestação de apoio a monóculo de tão curto alcance...
Adiante.
Voltei há meses a esta exígua courela lusitana. E eis que, de novo, o nome de Fernanda me saíu ao caminho: cruzo-me com ele centos de vezes ao dia; ouço-o, por assim dizer, a cada passo. - E sabe na voz de quem?
- Um pouco na voz de toda a gente.
Agraciado com a comenda de honra da Ordem d'O TEMPLÁRIO por "sua excelência a opinião pública", o nome literário da minha boa amiga anda aí de boca em boca, na boca de todas as conversas - a dar que falar, a dar que fazer, a fazer faísca, postado na primeira linha de um combate verbal de vida ou de morte, guarda-avançada de um dos mais intemeratos, e também mais talentosos, "esquadrões" da nossa Imprensa.
Piparote daqui, piparote dali, em crónicas e bilhetes de levar tudo raso à gargalhada aí anda a Fernanda a declarar guerra sem quartel a estes descaídos tempos, de impostura e vilipêndio, que a Portugal tocou viver.
Ora, estes seus saborosos bilhetes saloios - que de saloios nada têm... àparte o labéu de o serem - dizem-me, primeiro que tudo, da razão que tinha o António Ferro quando afirmava que "em Portugal não se cai no ridículo: sobe-se no ridículo! "E dizem-me, também, que estou diante de um especialista de verdades-como-punhos, com rara faculdade de saber dar o talento ao manifesto, sem olhar a quê nem a quem. Mordaz, ardoroso, desbordante, o fundibulário de mão-cheia que V. é consome-se, por aqui, à chama alta, com uma tenacidade tudo o que há de mais inabalável e com uma voltagem polémica de altíssima-tensão. Inclusivé, a temperatura temperamental a que a Fernanda Leitão escreve sempre é de tal maneira palpitante, em verve e irreverência, que só por isso dá gosto aturá-la por escrito - e aturar as insolências, impertinências e inconveniências sem nome, que não poupam nada nem ninguém. (De resto, tem V. a particularidade, extremamente tocante, de não se poupar sequer a si própria, tratando de reservar invariavelmente para si as primeiríssimas piadas, e de as suministrar a si mesma sem qualquer comiseração. E não é das notas menos cativantes da sua destemperada e nobilíssima maneira de ser, essa de V., Fernanda, começar por se insultar de morte a si própria, antes de passar a outros, e de sistematicamente guardar para si a primeira grande leva do seu bem abastecido, e engraçadíssimo, repertório de injúrias.)
Apesar de (quase) insuportável, pode crer que, à leitura, é mesmo um prazer suportá-la - suportar a criatura irascivelmente humoral que a Fernanda é -, só porque tesamente se bate sempre (e, se nem sempre com carradas de razão, invariavelmente com carradas de talento) no campo de batalha das coisas públicas, desferindo à queima-roupa as tais verdades-molestas-como-punhos, que só fazem bem - que só fazem lindamente - a quem nas produz, e que mal de espécie nenhuma fazem também àqueles que levam com elas em cheio pelas ventas.
Agindo com essa "frequência-de-blague" que sempre a caracteriza (e que lhe está mesmo na massinha do sangue!),não se ensaia a Fernanda mesmo nada em administrar - por via... postal, digamos, visto que de bilhetes se trata - toda a sorte de fulgurantes e fulminantes brutalidades que lhe vêm à cabeça. E é precisamente, nos momentos em que as maiores e mais sadias enormidades lhe saem em rajada pela boca fora, ou transmitem a cem-à-hora do bico da caneta para o papel, que a Fernanda Leitão se nos revela a grande artista, linguística e emocional, que de facto é.
Por outro lado, não deixa de ser igualmente assinalável que a sua agressividade satírica tenha entrado de serviço justamente quando nós mais precisão tínhamos de contar com ela, a fim de procedermos à instrução desse requisitório enorme, dessa enorme diatribe, desse imenso libelo, que - por todas as razões e por mais uma -importa pôr de pé, aqui e agora, para que tudo conste bem constado!
Chega de gente a redigir em bicos de mãos, e com as pontinhas dos dedos, e muito ao de leve! Chega de gente a exprimir-se de mansinho e em voz pequenina! A estas horas, importa, sim, falar forte e feio, como a Fernanda o faz: patentear todos os créditos de truculência com o vernáculo!
Em matéria de reparos a fazer-lhe, não posso dizer que tenha tirado o ventre de misérias. Mas, ao menos por agora, não havia que falar das "misérias" dos Bilhetes, que são muitas, e sim das suas "grandezas", que não são poucas...
Pessoalmente, sinto que lhe devia este bilhete, não sei se saloio se não...
De toda a maneira, bem-haja a Fernanda pelo simples facto de existir e de ser como é.
E, posto isto, vão sendo horas de me ir chegando.
Acena-lhe, amistosamente, do meio d'A RUA, o
RODRIGO EMÍLIO

sexta-feira, agosto 20, 2004

Comédia de enganos

Como me pareceu desde o início, o caso das "cassetes roubadas" vai evoluir rapidamente para uma daquelas situações em que todos os envolvidos proclamam solenemente que exigem o pronto esclarecimento de toda a verdade enquanto por seu lado fazem tudo para que esta não se descubra.
Agora surgiu a conveniente notícia da destruição dos originais das gravações em causa. Claro que o facto não é confirmado nem desmentido dos lados do "Correio da Manha", que continuará a ter em aberto para o futuro as duas hipóteses, conforme se mostrar no momento mais conveniente.
E evidentemente que na notícia sobre a destruição dos originais também não se diz quantas cópias terão sido antes efectuadas e guardadas em lugar seguro, para o que der e vier.
Entretanto, de acordo com os últimos dados com origem no "Correio da Manha", nunca houve propriamente furto dos suportes fonográficos: o que terá havido sim foi o furto das gravações, copiadas às escondidas durante as horas de expediente por alguém com acesso à redacção do "Correio da Manha", ou mesmo alguém da própria redacção, que aproveitou o facto de o seu autor as deixar numa gaveta da sua secretária...
O assunto entra assim no domínio do risível, da pura comédia. Desde a ideia de guardar descontraidamente material com tal poder explosivo num local de fácil acesso a um número indeterminado de pessoas (sem nenhuma copiazinha de segurança, Octávio?) até à delirante cena do gravador furtivo a aproveitar as ausências do ocupante da secretária para ir copiando as gravações (cinquenta horas!) tudo é classificável pelo menos de burlesco, algures entre Jerry Lewis e Mister Bean.
Recordo-me dos tempos em que visitei, algumas vezes, a redacção do "Correio da Manha"; era um sítio ligeiramente menos frequentado que uma estação do metro à hora de ponta...
Mas pronto, acabou, nós não podemos duvidar de gente tão afinada em deontologia: o que se passou foi que o Octávio de vez em quando ia à casa de banho, ou ia à rua tomar um cafezinho, e o ladrão pé ante pé aproveitava para subrepticiamente retirar uma cassete da gaveta (enorme gaveta!) e lá ia penosamente copiando dez minutos de cada vez, durante meses e meses, até conseguir a meta das cinquenta horas. E aquilo é uma redacção tão ocupada, tão ocupada que ninguém deu por nada.
Cá estaremos para ver os próximos episódios.

Julgue você mesmo

Na confusão voluntariamente criada à volta do caso Casa Pia, o melhor remédio é ignorar o ruído e concentrar a análise: serviço público neste momento é a divulgação dos elementos disponiblizados pelo Portugal Profundo.
Tenham a paciência de ler, e depois digam se a história das cassetes não vos surge secundarizada, e como suspeita manobra de diversão, destinada a confundir todos e a descredibilizar tudo. Ora ide ler, ide...

ENTRE A AVAREZA E 0 ESBANJAMENTO

Na nossa sociedade em evolução, fala-se agora muito em austeridade. A palavra flutua como ameaça porque sugere cinto apertado, poda em abundâncias a que estávamos afeitos, necessidade de mais trabalho, vida dura em suma. Por outro lado, há quem diga que os portugueses somos atreitos a certa prodigalidade, gasta-se sem olhar ao futuro, e o espírito de poupança passa-nos muito a juzante. Os avarentos, por via de regra pouco exceptuada, não abundam entre nós. Quando algum aparece, alegra a povoação em que vive e cai, agarrado aos cofres, nas "bocas do mundo". A generosidade, porém, situa-se entre o esbanjamento e a avareza. É uma virtude delicada, guiada pela bondade e pela prudência, e deve ter um lugar eminente nos dias de hoje se quisermos ser homens verdadeiramente fraternos. Tanta gente sem emprego, tanta gente deslocada do seu habitat nativo ou habitual, tanta gente vinda a menos - deve despertar em nós o generoso espírito de comiseração e dádiva. A austeridade, quando levada por espírito de autodomínio, de parcimónia para nós e de atenção ao próximo transforma-se numa verdadeira educação permanente. Mas é claro que, para se remediarem certas situaçoes, impõe-se que os necessitados se prestem a ser ajudados. Não faz sentido que aquele que não tem para a boca se envie a cinemas caros e a gastos inúteis, quiçá profundamente deseducativos.
Corre mundo a fama da grande casa Lafitte. Quem a fundou, com seu banco e mais sucursais de moeda e tesouraria? - Foi Jaime Lafitte. Vendo-se um dia sem trabalho e sem pão, dirigiu-se a um Banco famoso - já se vê, a pedir emprego. O director do Banco e mais algum pessoal gritaram que estava tudo cheio, tudo preenchido nos quadros, tivesse paciência, talvez mais tarde, esse "mais tarde" que quase nunca chega... O director, lá isso delicado e francês, acompanhou-o à porta. Ao descer um degrau, Lafitte debruçou-se e apanhou do chão qualquer coisa que brilhava. - Isso gue é? - perguntou o director. - É um alfinete. Não sou um avarento, mas tenho por costume aproveitar tudo o que pode ter algum préstimo. E o certo é que, em determinadas alturas, bolsos como o meu nem para um alfinete. O director ouviu e, dentro de dias, Lafitte entrava para aquele Banco onde, de posto em posto, ascendeu ao topo directivo, independentizou-se e veio a fundar a Casa famosa que tem o seu nome. Esta história não nos manda apanhar os alfinetes caídos na rua. Remete-nos, porém, a um procedimento de atenção às situações vitais onda a modéstia, o resguardo, a prontidão em nos adaptar ao que é pequeno e custoso - são condições de subir para mais desafogada posição. Sem avareza, sem a esquálida sovinice, mas por igual sem descuido nem esbanjamento.
Posto isto, digamos que a generosidade está precisamente entre a avareza e o esbanjamento. Mas deve ser praticada a nível concreto e individual. É fácil compadecermo-nos abstractamente das agruras por que passa uma nação. (Ah! os turcos, coitados, com aquele tremor de terra! Que pena temos dos indianos que passam fome! E a Nigéria? Crianças fotografadas, só ossos...) Mas os necessitados de ao pé da porta, o "saneado" que se cruza connosco, o subalimentado que nos estende a mão nem essa comiseração exclamativa, às vezes, recebe. Ora, as soluções a problemas sociais têm de ser dadas de modo muito concreto. A generosidade tem de ser aplicada em casos singulares. O homem verdadeiramente generoso não manda, do alto de um cabeço, repartir alguma coisa dos seus haveres; vai ele mesmo ver onde se dói o queixoso, contacta com as carências, mistura-se à vida, vai a casa do próximo. E poucas virtudes - se é que alguma, na hora actual, é mais propícia para comunicar um sentimento de felicidade - como a generosidade dadivosa para com o próximo. Gosto muito de exemplos. Diziam os antigos que os exemplos arrastam. Quando são bons, levam-nos à soga. Quem não ouviu falar, em Portugal, na Fundação Gulbenkian7 Calouste Gulbenkian, o bom arménio que durante a segunda guerra mundial veio viver entre nós, deixou-se cativar pela gentileza simples do nosso povo e deixou cá copiosos dinheiros. Mas não é isso o que quero sublinhar. Na sua biografia, escrita pelo Dr. Azeredo Perdigão, vem um facto fundamente exortativo à generosidade. Tinha Calouste Gulbenkian, como é sabido, uma colecção de obras de Arte, das mais preciosas do mundo. Um dia, um amigo pediu-lhe algumas para organizar um álbum. Mandou-as ele, e ao serem-lhe restituídas, o Amigo, ao agradecer, lembrou-lhe um provérbio da Arménia, terra nativa do grande milionário: "Quando morreres, só terás nas tuas mãos aquilo que tiveres dado!" Eis aí uma expressão do sentido último da generosidade. A Fundação Gulbenkian ou o simples "copo de água dado em meu nome" do Evangelho, equivalem-se. Naquela hora cabeira que é forçosa para todos nós, teremos nas mãos o que tivermos dado com ampla, humana, fraterna generosidade...
JOAO MAIA

quinta-feira, agosto 19, 2004

Olhar com os olhos abertos

A começar o seu delicioso livrinho intitulado "Vida de Maquiavel", Giuseppe Prezzolini salienta que Nicolau nasceu com os olhos abertos; e comenta que naquele tempo o caso não era vulgar, pelo que despertou geral atenção e curiosidade.
Também agora não é comum encontrar quem, simplesmente, ande por aí com os olhos abertos; miasmas e distracções as mais variadas, como espessas cataratas, toldam as vistas dos homens nossos contemporâneos.
Lembrei-me disto há bocado, ao ler o texto de regresso do nosso amigo, e aqui tem inteira justiça e cabimento o designativo, que escreve a Casa de Sarto.
O que nos trará cegos para as nossas coisas? Que estranha miopia nos impede de ver com precisão e rigor tudo o que temos à nossa volta? Visão desfocada, vista cansada, o certo é que olhamos todos os dias e não vemos, ou vemos e a imagem passa sem o exame analítico do sentido crítico que deveria ser o revelador de toda a massa de elementos recolhidos na observação exterior.
Pobres são os tempos, infelizes os países, em que os homens olham e não vêem. E todavia nunca como hoje vivemos sob o império da imagem, da sucessão alucinante das imagens; um outro amigo, que é mais filosofante, chamava a isto "o reino da imagem fugaz". Queria ele dizer que não fica nada, do que sucessivamente passa a velocidade estonteante no nosso moderno animatógrafo.
Esta conversa toda para dizer que gostei muito do relato da excursão do JSarto; e fez-me lembrar ainda um outro camarada, que também olhava e não gostava do que via, e falava do que ele chamava o amor amargo pela pátria: dizia este que nós amamos a pátria porque não gostamos dela. Essa amargura que nasce do desgosto do olhar, essa revolta contra a aceitação resignada do que está, ainda representam a única esperança de vida e renovação.

quarta-feira, agosto 18, 2004

Voltando à vaca fria

Inevitavelmente, o publico está fartinho de ouvir falar em cassettes e escândalos, e já vomita o tema só de o cheirar ao longe.
E todavia... o assunto é importante. Talvez valha a pena tapar o nariz e enfrentar o fedor. Muito curiosa tem sido a atitude dos jornalistas, visivelmente ditada pelo desconforto: por muito que discutam em privado, poucas têm sido as reflexões tornadas públicas sobre os vários temas que a propósito se impõem.
Destaco hoje um excelente artigo de um jornalista aqui da minha terra; é notório que o descomprometimento e a distância tornam os homens mais livres e frontais.
Leiam o que escreve Mário Simões no VIVAZ. Concorde-se ou não...
E para terminar, deixo uma interrogação de Mário Bettencourt Resendes em recente artigo. Parece-me uma boa pergunta para quem gosta de pensar.
"Há, no entanto, uma faceta do imbróglio que tem sido relegada para segundo plano, apesar da sua importância crucial: quem imaginou, articulou e levou a cabo a “operação cassetes”, distribuindo-as por vários órgãos de Comunicação Social, e quais os objectivos dessa actuação claramente fora dos limites da lei?"
Por outras palavras é o velho raciocínio policiário "a quem aproveita o crime"...

INFÂNCIA NA ALDEIA

Eu, hoje, sou um homem citadino, quer queira quer não. Mas quem sou eu? E sabê-lo? O menino que eu fui (e continuo a ser, graças a Deus!) não pertence à cidade, tem mesmo certo receio das ruas, dos arruídos, das avenidas passeadas por tantos desconhecidos; e tem por igual um desdém por tanto produto inerte da indústria, por tudo quanto pende morto ao longo das portas e casulos dos estancos, das lojecas dos armazéns descomunais. Na aldeia tudo era vivo, tudo mexia e se movia em pés reais e com sangue. Um coelho era um coelho e fugia ou cofiava os bigodes enquanto manjava a serradela, uma galinha chegava mesmo a voar se perseguida, um gato arranhava e soprava se pequenino e afrontado, e todas as aves cantavam e eu conhecia-lhes o canto. Eu? Mas quem sou eu? - Somos todos os que nascemos na aldeia. Na aldeia até as árvores nos conheciam. Lembro-me de meu avô falar de certo castanheiro decrépito: "Coitado, o castanheiro do Vale da Ribeira a modos que está velhorro, qualquer dia morre de todo, se os médicos não lhe acodem! " "A tanchoeira do Vale dos Cepos está linda! Vão vê-la. Parece uma noiva!" Assim se falava das árvores como se fossem pessoas com vida animal e própria. Na aldeia o contacto com a natureza dava logo uma confiança que era fruto da união com a terra e ia propiciar um desenvolvimento dinâmico da personalidade. Na cidade, as coisas já foram trabalhadas pelo homem, já passaram pela fábrica, já se carregaram de manhas e de segredos mofinos. Até se dá uma coisa que me tem intrigado e a que os livros escritos depois do 25 de Abril não têm dado explicação cabal, como justo. Quando vou à aldeia conheço de tal maneira os caminhos que não só não tenho medo de andar por eles, mesmo que seja de noite, mas parece que lhes conheço as covas e inclinações; conheço as árvores que os orlam e até o sítio onde pilhei ninhos já lá vão muitos anos. Pois, senhores, se eu visse amanhã um ninho nas árvores verídicas da Avenida da Liberdade havia de jurar que era ninho fabricado adrede para me enganarem e não ninho de verdade com cinco ovos pintalgados na maciez do frouxel. Quase tudo na cidade é artificial, nada é primário com frémitos de vida primitiva. Por isso, a infância na aldeia avulta para mim como graça inapreciável. Acordar de manhã e rumar a quadrantes da nossa escolha - para a ribeira, para os matos orvalhados, para a eira, para os fundões dos vales frescos e topar com a sardanisca, com a felosa, com o pintassilgo, com a perdiz a tocar os tintinábulos, com o tordo discreto - isso equivale a uma escolha que supera em ensinamentos o Colégio de França e deixa a mil léguas as Universidades de Salamanca e de Coimbra, onde estão alguns mestres e uma infinidade de sebentas que só de vê-las esmorecemos!
Essa ventura que me coube de ter passado a minha infância na aldeia ainda hoje se desata em benefícios: a maior parte das imagens que me ocorrem à ponta do aparo não me vêm da cidade, dos gabinetes dos senhores ministros, vêm-me da infância matagosa que foi a minha. Pela vida fora, o homem o mais que faz é lembrar-se é da infância. A partir de certa data o homem julga que vive e apenas se lembra... "Cadáver adiado", escreveu Fernando Pessoa! Aos que nascem na cidade lamento-os, não por terem nascido, mas por vê-los logo dentro de varais ou engaiolados por esses andares, longe da fonte e do rosmaninho. O seu berço fica logo bloqueado por objectos pré-fabricados a cincar em televisores, em brutas cadeiras e bufetes! Para verem um bicho, um grilo ou um gafanhoto, fazem-no fora de horas indo ao zoológico com grande soma de encontrões e não ficam a conhecer a vida de instinto e manhas da bicheza. Ficam a julgar que os grilos não sabem música nem solfejo e que os gafanhotos mordem e têm veneno. A infância na aldeia é a primeira experiência de liberdade. Quem vive na cidade cuida, às vezes, com grande riso dos rurícolas, que a primeira experiência de liberdade foi o 25 de Abril!
Depois, a Infância é um "divino tesouro" que arrecadamos na arca dos anos e fica lá no fundo a sorrir e a brilhar. A sorrir às vezes com ironia para as opiniões dos homens importantes sentados nos cafés ou perorantes nas tribunas do Parlamento...
JOÃO MAIA

Os paraísos artificiais

A morte de duas adolescentes, vítimas da droga - uma por injecção mal doseada, a outra indirectamente, por suicídio - suscitaram recentemente abundantes comentários em todos os jornais franceses. Há um facto que atrai principalmente a atenção: o uso dos estupefacientes começa a fazer sentir as suas destruições nas camadas modestas da sociedade, que pareciam até há pouco imunes a este flagelo.
Os jovens são os mais atingidos, o que ainda põe mais sombras negras no quadro. Um jornal publicou os resultados de um inquérito realizado entre os colegas das vítimas. À pergunta: "Porque é que te drogas?" foram dadas, entre outras, estas respostas: "Não temos gosto em nada, tudo nos deixa indiferentes" e (são palavras de uma rapariga de 18 anos): "No meu estado normal, vejo as coisas tal como são; uma vez drogada, vejo-as como quereria que elas fossem".
A infeliz jovem, sem o saber, repetiu, quase palavra por palavra, a célebre frase de Bossuet: "A pior desordem do espírito consiste em ver as coisas, não como elas são, mas como se quereria que elas fossem". E, no entanto, Bossuet falava da influência das paixões entregues a si mesmas e não de uma desordem artificialmente provocada e mantida...
Quem se droga, fá-lo por sentir aborrecimento. Mas porque sente assim aborrecimento? Tenho debaixo dos olhos um artigo que diz substancialmente o seguinte: Como é que os jovens, hoje, podem e ousam aborrecer-se? Nunca os homens dispuseram de um tão grande leque de possibilidades: maior liberdade de escolha da profissão, graças à generalização e à facilidade dos estudos e, no domínio das distracções, leituras, espectáculos, televisão, desportos, viagens, etc. E isto diz-se particularmente das raparigas, anteriormente limitadas ao piano, aos bordados, ao "tricot" ou à cozinha, com raras saídas sempre acompanhadas, as quais gozam hoje de tanta liberdade como os rapazes. Depois, numa evocação da encantadora cidadezinha mediterrânica de Bandol, onde passava férias o grupo de jovens drogados a que pertencia uma das vítimas, o autor do artigo conclui: Será que não há mais nada para fazer do que drogar-se, nesta bela região onde tudo concorre para a felicidade dos veraneantes - a doçura do clima, a beleza das paisagens, as oportunidades de praticar todos os desportos terrestres e náuticos, etc.?
Daqui o paradoxo: era quando os homens tinham mais razões objectivas para se aborrecerem que eles se acomodavam melhor a uma existência aparentemente insípida e é quando eles têm todas as possibilidades de se distraírem que se aborrecem mais.
A explicação é simples. 0 aborrecimento é como o enjoo. 0 que faz o enjoo não é a falta de apetite é a saciedade. 0 aborrecimento, como o enjoo, é uma toxina segregada pela abundância mal assimilada.
A pior miséria do homem não é não ter nada, é nada desejar. Então, é levado a a procurar um remédio para a falta de apetite, não no jejum que lhe devolveria o gosto dos verdadeiros alimentos, mas em excitantes artificiais cujo efeito se atenua rapidamente, porque, não correspondendo a nenhuma necessidade natural, agravam em profundidade o mal que aliviam à superfície o que exige o emprego de meios ainda mais corruptos e mais nocivos. Assim se realiza a "escalada" da falsa evasão até ao recurso à droga, termo normal desta fuga para o irreal, onde o homem encontra um último refúgio contra o aborrecimento na dissolução da sua própria personalidade. Se, na forte expressão do catecismo, a condenação eterna consiste em perder a sua alma, os paraísos artificiais são já a prefiguração do inferno.
Demasiado bem-estar, demasiadas facilidades, demasiados tempos-livres são - dizem os pessimistas - a explicação desta decadência. Se fosse verdadeiramente assim, isto é, se o esforço das gerações precedentes que forjaram o instrumento prodigioso da prosperidade material tivesse de levar forçosamente a este legado envenenado; se o que se chama justiça e promoção sociais, ideal democrático e civilização de massas consistisse em difundir em todas as camadas da sociedade vícios anteriormente reservados aos ricos e aos ociosos; se o homem só tivesse a possibilidade de escolher entre os tormentos da miséria e o aviltamento pelo aborrecimento - então, justificar-se-iam em absoluto as perspectivas mais sombrias do futuro da nossa civilização.
Não penso que tenhamos demasiado bem-estar e demasiados tempos livres. 0 que falta a muitos é o bom modo de utilização desse bem-estar e desses tempos livres. A civilização moderna cultiva todos os nossos desejos, mas negligencia ensinar-nos o bom uso dos bens que desejamos. Ela apresenta-nos conjuntamente o necessário e o supérfluo, o útil e o prejudicial, o melhor e o pior, deixando-nos a responsabilidade da escolha. Trata-se de digerir esta abundância e de merecer esta liberdade. Ora, toda a boa digestão implica duas condições: em primeiro lugar, o discernimento, que consiste em saber escolher o que se come, e em segundo lugar a moderação, que consiste em não comer demasiado. 0 apetite cego produz o enjoo - depois do qual a doença e o médico não tardarão a impor-nos um regime incomparavelmente mais severo...
Aqui reside, com efeito, o fundo do problema: se não soubermos aliar a abundância exterior com a disciplina interior, a própria abundância nos será subtraída, porque a prosperidade económica só pode subsistir e crescer com o trabalho e com os bons costumes. E quanto à disciplina, seremos reconduzidos a ela pela força exterior da tirania, consequência invariável da desordem e da libertinagem, a qual será exercida por implacáveis médicos do corpo social, senão por cirurgiões sem escrúpulos, que não hesitarão em nos amputar deste precioso órgão de que fizemos mau uso: a liberdade.
Gustave Thibon

terça-feira, agosto 17, 2004

Evolução do universitário

O sempre atento Porta-Bandeira resolveu contribuir para o debate sobre o ensino.
Não percam o seu quadro sobre a evolução do universitário!

Leituras de Verão

Recomenda-se a leitura da entrevista de António Manuel Couto Viana ao "Diário de Notícias".
Não dispensa o conhecimento da sua obra, parece-me feita com superficialidade e falta de preparação, mas pelo menos tem o mérito de romper o silêncio sobre uma das personalidades literárias mais relevantes do último meio século português.

O ensino e o país

Como já fizeram outros blogues (Portugal e Espanha e Pena e Espada) faço questão de destacar o importante artigo que a Prof. Maria de Fátima Bonifácio publicou no jornal "Público", onde cruamente, sem os óculos cor de rosa dos responsáveis ministeriais, e desprezando o linguajar técnico das comissões e dos especialistas, se faz um diagnóstico implacável sobre o estado do ensino em Portugal - e, muito mais que isso, das raízes profundas desse estado de coisas, a nível de mentalidades, que como sempre determinam os comportamentos e as tendências colectivas.
Aqui vai, na íntegra, para reflexão geral.

"De há anos a esta parte, com assinalável regularidade, o país toma conhecimento de números que revelam o clamoroso fracasso da Escola. Ainda agora fomos escandalizados pela notícia de que metade dos alunos do secundário chumba nos exames nacionais do 12º ano. Desgraçadamente, este resultado encobre a péssima qualidade dos alunos que conseguem passar, chegam à Universidade quase analfabetos e saem de lá pouco melhor do que entraram. Há 25 anos que sou professora de História na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Há 25 anos que observo, de ano para ano, a degradação da qualidade dos estudantes, e há 25 anos que vão sendo piores as notas que me vejo obrigada a dar, apesar de a minha complacência e tolerância terem aumentado com a idade e a sensata tendência para a acomodação que ela gera.
Convenci-me ultimamente de que o panorama não melhoraria significativamente nem que os programas e os professores fossem todos excelentes. Não há assunto nem eloquência capazes de obrar o milagre de despertar a atenção e a curiosidade de uma massa estudantil inteiramente desinteressada em aprender e unicamente apostada em "passar". A grande maioria dos alunos limita-se a tirar apontamentos nas aulas de forma totalmente acéfala, e os disparates que escrevem nos testes revelam uma total incompreensão das matérias mais simples e uma total incapacidade de exporem com sequência e clareza as ideias mais elementares ou de narrarem com nexo os factos mais básicos. Não percebem o que ouvem e menos ainda o que lêem. De resto, salvo uma ou outra excepção honrosa, lêem pouco ou mesmo nada. Como suponho que fazem também os meus colegas, trato de me ajustar à circunstância. Isto significa baixar o nível das aulas até ao ponto em que poderíamos estar numa qualquer turma do secundário.
Não sei que "competências" estes alunos adquiriram no liceu, mas sei que não adquiriram o mínimo de conhecimentos que lhes permitiriam ascender a um patamar de aprendizagem superior. Ensinar História na Universidade tornou-se quase impossível, porque em vez disso é necessário familiarizar os alunos com as matérias, os factos, os nomes, as datas e as noções ou conceitos a partir dos quais poderiam então começar a aprender História e a discernir entre as várias maneiras de a escrever. Acresce que não sabem português: o vocabulário de que dispõem é de uma pobreza confrangedora, e os erros de ortografia e gramática são de molde a arrepiar. Sendo a história uma disciplina literária, não admira que o desastre seja quase geral, como aconteceria ao engenheiro que pretendesse construir uma ponte ou um prédio sem saber física ou matemática.
Confrontados com a sua ignorância, poderíamos supor que os alunos, chegados à Universidade, se esforçassem por supri-la através da aplicação redobrada ao trabalho. Não espanta que tal não aconteça: não têm curiosidade intelectual e por isso não têm interesse em aprender; e o liceu não lhes inculcou hábitos de disciplina nem de esforço.
O estudante universitário - como o do liceu - tem antes de mais direito ao seu lazer. Estudará, ou não, no tempo que sobrar. Pela Universidade arrasta-se hoje uma preguiça generalizada que torna a docência um exercício frustrante e deprimente. Invejo colegas que têm prazer em declamar perante auditórios que não estão interessados no que dizem nem captam metade do que ouvem; que raramente levantam uma dúvida pertinente; que quase nunca suscitam um problema interessante. A docilidade dos estudantes de hoje só espanta quem não saiba que ela é a máscara de uma apatia e ignorância que não lhes permitem interrogar e muito menos debater. Em tempos tive alunos que são hoje meus colegas e académicos brilhantes. Essa raça desapareceu.
Não se pense que exagero. Os estudantes chegam hoje em dia à Universidade sem quaisquer hábitos de disciplina e de trabalho. A simples ideia de que aprender custa esforço e sacrifício, de que fazer um curso superior é algo que absorve e ocupa a tempo inteiro, é impensável. Neste aspecto, como noutros, a Universidade é um mero prolongamento do Secundário: o prolongamento de um imenso recreio que, por seu turno, já prolongava o jardim infantil em que se converteu o Ensino Básico. Desde a mais tenra idade, as crianças são educadas e formadas na noção errónea, e nefasta, de que aprender pode e deve ser tão lúdico como jogar à bola na praia ou saltar à corda nos intervalos. Chegadas ao Liceu, deparam com a mesma filosofia pedagógica. As matérias têm que ser interessantes, apelativas, divertidas, ensinadas de maneira que se não dê por ela e aprendidas de maneira que não dê trabalho. As aulas têm que ser animadas, participadas, de modo que a atenção se prenda sem esforço. As avaliações não podem ser traumatizantes: são sempre imperfeitas e, portanto, muito, muito relativas, tão relativas que até mesmo um péssimo aluno pode sempre ser desculpado. Em suma: as crianças, os adolescentes e os jovens adultos não podem ser maçados e qualquer embate com as duras realidades da vida lhes deve ser poupado.
De facto, tudo começa com a cultura de adulação da criança que domina a sociedade ocidental contemporânea e que não passa, como tantas outras características dela, da degradante e ridícula pieguice em que culminou a "Sensibilidade" descoberta na segunda metade do século XVIII. Tudo o que diz respeito às crianças - o seu bem-estar, a sua saúde, a sua protecção, o seu lazer - suscita imediatamente a atenção desvelada de um público adulto que erigiu as crianças no centro do mundo e entende, pelo menos "teoricamente", que tudo se deve subordinar aos seus interesses e às suas presumidas necessidades. (Felizmente já temos um ministério da Criança.)
Nas famílias, as crianças tornaram-se geralmente pequenos déspotas inteiramente desprovidos de quaisquer hábitos de obediência ou elementar respeito pelos pais e os mais velhos, que no entanto tudo fazem e sacrificam para que os rebentos possam gozar de condições ideais para desenvolverem livremente as suas promissoras personalidades. De tão mimadas, as crianças crescem, desde o berço, com a justificada sensação de que na vida só há brincadeira e direitos e de que tudo lhes é devido. Se por acaso algumas revelam um temperamento mais difícil, não se aplicam os bárbaros remédios clássicos. Arranja-se-lhes acompanhamento psicológico a fim de tentar, sem traumas nem violências, torná-las mais cordatas sem contudo prejudicar nem levemente o seu "crescimento natural". A "personalidade" da criança é sagrada e todo o respeito por ela é pouco.
Depois do jardim-escola, onde as educadoras de infância as ajudam a brincar, chegam ao primeiro ciclo do Básico, onde os professores se esforçam por que as aulas se pareçam o mais possível com recreios. Segue-se o antigo liceu. Pela primeira vez vislumbram - mas não mais do que vislumbram - a necessidade de refrearem os seus ímpetos e de se conformarem com um mínimo de disciplina e aplicação. Os trabalhos de casa são vistos, pelos alunos e por muitos pais, como um fardo cruel para crianças ou adolescentes que já passaram várias horas na escola sujeitos a constrangimentos "stressantes". É tarde para se habituarem. Trabalhar é a última das prioridades para adolescentes confrontados com mil e uma solicitações divertidas que os distraem das suas obrigações, a que não dão importância.
Portugal é o país europeu com mais alunos com dificuldade em aguentar o alegado "stress" escolar. O esforço de estudar é demasiado duro; a concentração que se exige é esgotante... Quando chegam ao 12º ano, metade dos alunos chumba. A metade que consegue passar, chega à Universidade e não é capaz de ler um livro do princípio ao fim. Grande parte desiste dos cursos depois de se ter arrastado anos pelo bar, pelos corredores e pelas salas. Quase todos os que chegam ao fim saem da Universidade tão ignorantes como lá entraram. Continuam a não escrever português e sem conseguir interpretar um texto. Mas são os senhores doutores de que sairão os quadros do país e os futuros professores do liceu. Não há dinheiro que resolva o problema.
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