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publicado no semanário regionalista "O Almonda", de Torres Novas)
Tendo o tema sido aflorado nestas páginas, pela voz prestigiada do Dr. Pedro Vaz Pato, não resisto a contribuir também para o necessário arrumar de ideias em torno do que me parece ser mais uma miragem perniciosa, semelhante a outras que fazem correr a nossa época, as mais das vezes com a lucidez da cabra cega.
Já tenho lido, de várias origens, opiniões convergentes sobre a necessidade e a conveniência de "legalizar a prostituição". Como acontece frequentemente com as soluções simples que se apresentam para problemas complexos, também esta proposta enferma de equívocos vários, que a meu ver a tornam inutilizável para a solução dos problemas que se propõe resolver.
Antes do mais, o que se pretende dizer com "legalizar a prostituição"? A pergunta é pertinente, porque ao contrário do que parece ser convicção generalizada a prostituição em Portugal nada tem actualmente de ilegal. Existe no Código Penal a incriminação do lenocínio, configurado como um crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual. É punível por isso a actividade de quem se dedique a explorar as prostitutas, abusando destas, mas não as prostitutas nem a prostituição. Se a ideia de quem fala em "legalizar a prostituição" consiste apenas em abolir essa incriminação, então o que desapareceria é a perseguição criminal dos exploradores, não das prostitutas, que não existe. Mal ou bem a prostituição foi encarada pelo legislador como um comportamento perfeitamente lícito, se livremente assumido (invocando expressamente a orientação de demarcar o Direito Penal de qualquer conotação moralista).
Por conseguinte, não deve ser esse o cerne das posições em apreço. Confirma-se que não, ao observar que as principais preocupações a que procuram dar resposta os que falam na tal "legalização da prostituição" correspondem a finalidades de ordem sanitária (a saúde pública) ou de ordem fiscal (os impostos). Mas, sinceramente, não compreendo o que propõem que seja feito no plano legislativo. Tornar obrigatório que aquele ou aquela que queira exercer a prostituição esteja inscrito como tal e se sujeite aos cuidados médicos adequados a prevenir os riscos que tais actividades normalmente implicam?
Essas imposições legais correspondem a uma versão actualizada do regime que já vigorou em Portugal em outros tempos, quando as prostitutas estavam sujeitas a matrícula no Governo Civil e a vistoria periódica. Porém, e como me parece claro, em primeiro lugar a legislação nesse sentido é que implicaria, diferentemente do direito actual, uma ilegalização da prostituição (só seriam lícitas as actividades de quem tivesse carteirinha profissional e cumprisse as normas, sendo por consequência ilegais todas as actividades nesse ramo de clandestinos e biscateiros, que nem os mais ingénuos podem afirmar que deixariam de existir).
Deste modo, e paradoxalmente, criava-se uma situação em que as polícias teriam que andar atrás de quem livremente praticasse prostituição sem obedecer à regulamentação obrigatória, passando autos, multas e participações - situação oposta à actual, e de resultados muito duvidosos. E, acrescento, afigura-se que uma situação dessas seria muito pouco compatível com o enquadramento jurídico contemporâneo. Aliás, mesmo em outros tempos, em que sempre seria possível deter quem fosse encontrado em actividades sexuais (por conduta imoral ou outra qualificação qualquer) e conduzi-lo/a à esquadra para averiguar da regularidade da sua situação profissional, não me parece que essa regulamentação tivesse produzido grandes resultados no controlo efectivo dessas actividades.
A concluir: desconfio que na prática essa política iria conduzir a que apenas cumprisse realmente os cuidados sanitários definidos como obrigatórios quem agora voluntariamente já o faz. Tanto na vertente da oferta como na vertente da procura.
Quanto aos argumentos fiscalistas, que dão relevo à conveniência de arrecadar as receitas fiscais correspondentes a uma actividade económica com grande expressão: lamento desiludi-los, mas também não acho provável que os proventos tivessem qualquer significado. Actualmente, nas casas abertas ao público onde essa actividade é exercida com disfarce (sob denominações de bares, boites, salas de diversão, salões de massagens, etc) todo o pessoal está devidamente "legalizado". Ou seja, não trabalha lá ninguém que não tenha contrato de trabalho, declarado à inspecção, e que desconte os seus impostos e para a segurança social. Naturalmente que esses contratos dizem que a categoria profissional é de empregado de balcão, bailarina, recepcionista, cozinheira ou lá o que calhe, e todos referem o ordenado mínimo nacional, mas a verdade é que os que têm estabelecimento aberto estão defendidos contra as fiscalizações.
Se a prostituição, por força de lei, passasse a só poder ser exercida em locais licenciados e por profissionais registados como tal, acreditam os leitores que os contratos de trabalho iriam declarar rendimentos muito superiores, e o número de trabalhadores a descontar iria subir radicalmente? Eu não acredito.
Nesta altura alguns replicarão que o que não falta por aí são locais esconsos que não precisam de proteger o alvará que não têm, nem sequer como café, e gente que se dedica à prostituição sem ter qualquer cobertura contratual. É verdade. Mas alguém acredita que essa economia paralela deixaria de proliferar caso a lei limitasse a actividade às sociedades comerciais ou empresários individuais devidamente autorizados, aos locais devidamente licenciados, aos profissionais devidamente habilitados? Se nem os canalizadores ou os electricistas de ocasião podem ser eficazmente controlados pela máquina fiscal como seria detectada e controlada a prostituição espontânea e avulsa? Iria legislar-se no sentido de tornar obrigatória a passagem de recibo ao cliente (a medida conseguiu aumentar muito as cobranças em relação aos médicos, por exemplo)? Ou para estimular a exigência do recibo seriam concedidos benefícios fiscais nessa matéria, em sede de IRS?
Creio sinceramente que a "regulamentação legal" aludida pouco iria modificar tanto no que respeita à saúde pública como no que toca às receitas fiscais. E continuaria a existir, como existiu sempre, a prostituição que não assumiria o nome, nem se daria à publicidade, porque nenhum dos sujeitos envolvidos no acto está interessado nessa oficialização.
As opiniões criticadas resultam sobretudo de uma visão fetichista e mágica da lei (vulgar sobretudo nos não juristas), que conduz à crença de que mexendo na legislação se mudam os factos a que ela se refere, e não propriamente de um conhecimento autêntico da realidade social.
Manuel Azinhal
manuel.azinhal@gmail.com