Antes do 25 de Abril, nunca cheguei a conviver com Manuel Maria Múrias. Como tínhamos amigos comuns, algumas vezes travávamos breves conversas na rua ou num café, se algum de nós adregava estar acompanhado por um deles.
Mas lia-lhe, com agrado, algumas críticas cinematográficas ou de teatro, na "Acção" e no "Diário da Manhã", e recordo-me bem da que escreveu, ainda longe dos vinte anos, com a violência fruto da juventude, atacando uma peça vanguardista de Luiz-Francisco Rebelo, posta em cena no Teatro-Estúdio do Salitre, a que dei, mais tarde, a minha colaboração artística. O dramaturgo, ferido, também não a esqueceu. Manuel Maria assinava, então, Manuel Moutinho (um apelido da família), talvez para não ser confundido com o pai, o historiador Manuel Múrias.
Logo após a «revolução dos cravos», encontrei-o nas páginas do desafiante "Bandarra", a dar voz à terrível reacção, a quem Álvaro Cunhal ameaçava «partir os dentes». Apreciei-lhe o admirável artigo político em que evocava, adaptando-o ao momento, o discurso de Marco António perante o corpo assassinado de César, na genial imaginação shakespereana, o que ajudou o ousado autor a entrar na prisão de Caxias, como perigoso malfeitor, a par de grandes personalidades da Política e das Letras nacionais, em nome da liberdade recém implantada.
O facto de eu não ter ocupado, igualmente, lugar numa das celas, expliquei-o a tempo, numa poesia do meu livro "Nado Nada":
«As pátrias doentes
Não prendem os poetas. Para quê?
Prendem-lhes os amigos, os parentes.
Poetas... ninguém lê.»
Manuel Maria Múrias não era poeta. E era lido. E, pior!, admirado.
Em 1976, findo o longo cativeiro, Múrias não quis estar quieto nem mudo.
Planeou, então (ou planearam-lhe), a fundação de um jornal que representasse a determinação da Direita portuguesa frente ao triunfalismo da Esquerda.
Procurou, pois, rodear-se de quem, numa Redacção unida pela mesma ideologia, fosse eficaz em defendê-la pela escrita.
Convidou, para Chefe-de-Redacção, Amândio César, batido nas lides jornalísticas, antigo director de um diário e animador de revistas literárias, poeta e contista premiado, ensaísta de prestígio, repórter brilhante.
Amândio começava a entrar na meia idade, vigorosa e talentosa.
Regressava de um penoso exílio no Brasil, após haver sido ferozmente maltratado no 28 de Setembro, juntamente com Rui Alvim, nos arredores de Coimbra, pelas forças marxistas que destruíram a pátria, obrigando-o a passar, a salto, para a vizinha Espanha, e, em seguida, para a outra banda do Atlântico.
Múrias iria aproveitar-lhe o saber e a experiência.
Mas necessitava de mais gente para lhe fazer o jornal, contando já com a adesão de António Lopes Ribeiro, e a promessa de colaboração dos veteranos Barradas de Oliveira e Dutra Faria. O jovem Walter Ventura, antigo companheiro de cárcere, também figurava no elenco.
Foi, nessa altura, que o Amândio lhe falou de mim, dolorosamente desempregado, privado da minha Companhia de Teatro do Gerifalto, dos meus programas na rádio e na televisão, proibido de publicar: as mais queridas actividades da minha vocação literária e artística.
Foi, nessa altura, que o Amândio me falou no projecto jornalístico e, perante o meu entusiasmo, levou-me a casa do Múrias, em São João do Estoril, para ambos combinarem comigo qual o meu trabalho na nova publicação.
Aceitei, pois, as funções de revisor tipográfico e literário dos textos (incluindo, por imposição do Múrias!, os do director, visto ele insistir, por graça, que possuía, apenas, a quarta classe), tendo, ainda a meu cargo, a página dos espectáculos e partilhar, com o Amândio, a literária.
A redacção era na Rua Sampaio Pina, perto do Parque Eduardo VII, num andar moderno, amplo, cheio de Sol. A sala dos redactores ficava nas traseiras, com um mobiliário novo e prático, funcional.
Mas o jornal ainda não tinha título. Múrias, por uma questão sentimental, pensava chamar-lhe "Bandarra", mas tinha a opinião contrária dos seus amigos, gente bem situada na alta finança, gente grada do antigo regime, gente à testa dos recentes partidos da Direita, a quem ia dever-se a edição do semanário.
Achavam eles, e correctamente, que o nome "Bandarra" estava queimado, que o novo periódico não devia surgir preso a velhos compromissos, a rótulos ultrapassados: os tempos haviam rapidamente mudado, as realidades nacionais eram outras, embora preocupantes, bastante preocupantes.
Hesitante na escolha, Múrias pediu aos seus redactores que procurassem um outro título, depressa, e marcou-lhes um encontro, uma manhã, no Café Paladium, com o fim de resolverem, definitivamente, o problema crucial.
Não demorei muitas horas a encontrar um que deveras me agradou: "A Rua". Era apelativo, nada elitista, permitia, até, o aparecimento, nas suas páginas, de um Homem da Rua, com visão realista dos factos que afectavam o país e a simplicidade de uma solução, capaz de bradar: — «O rei vai nu!», à falsidade, à astúcia, à ambição, à incompetência, à desonestidade política dos oportunistas.
(Lembro-me que Artur Maciel tinha, no seu "Diário de Notícias", a alcunha de
Titulesco, por ser ele a escolher os títulos da maioria dos artigos do jornal. Tal alcunha podia igualmente ser-me atribuída, já que são da minha responsabilidade os nomes das revistas "Camarada", "Távola Redonda", "Graal", do "Teatro do Gerifalto", das Colecções de Poesia "Búzio" e "Camoens"... e do jornal "A Rua", como veremos.)
Expus a minha proposta que obteve, logo, a aprovação do Múrias, embora, no dia seguinte, ela perdesse, no seu espírito, mercê de opiniões alheias, muito da sua simpatia, por achar o nome, além de um cheiro a ralé, a chinelo ou pé descalço, demasiado demagógico, demasiado conotado com a Esquerda.
— Pois é nisso mesmo que constitui o seu valor — retorqui-lhe.
Não me pareceu, no entanto, muito convencido com o argumento.
Mas uma viagem ao Norte, de visita ao heróico Arcebispo de Braga, D. Francisco Maria da Silva, para que este lhe abençoasse a iniciativa editorial, decidiu-o, por fim.
D. Francisco, a quem eu devia tanto de apoio e gentileza, quando ele ocupara o lugar de Assistente Religioso da Mocidade Portuguesa, elogiou grandemente o nome de "A Rua", indo mesmo buscar a uma estante um volume que registava os títulos de todas as publicações da imprensa portuguesa, onde não encontrou nenhum igual. O que mais valorizou o meu candidato.
E o jornal ficou "A Rua" e eu o seu orgulhoso padrinho.
Passou-se, então, à aliciante, mas difícil, tarefa de o maquetar, de desenhar-lhe o título.
Múrias entregara esse encargo a uma pessoa extremamente simpática, mas de limitado gosto gráfico. Pelo menos, do meu ponto de vista. Não me sorria, em nada, aquela maqueta, por isso, perguntei ao Manuel Maria se via inconveniente em entregar esse trabalho ao arquitecto Marcelo de Moraes, em quem eu tinha total confiança.
Ele achou a ideia magnífica.
Telefonei ao Marcelo, afastado, há anos, da Televisão, e, nessa mesma noite, ele, o Múrias e eu reunimo-nos num jantar no N.º 1 da D. Francisco Manuel de Mello, em que o meu caríssimo colaborador artístico no "Camarada", e no Teatro da Campanha Nacional de Educação de Adultos, escutou, com atenção e prazer, o convite do Manuel Maria.
Tudo concertado a contento dos três, a arte notável de Marcelo de Moraes deu originalidade e beleza à Rua, ficando, para sempre, célebres as suas páginas de desenhos comentadores dos momentos da política nacional e as caricaturas flagrantes das suas principais figuras. Os mais castigados eram o Cunhal e o Mário Soares.
O número zero do jornal saíu a 30 de Março de 1976, e constitui, pelo aspecto e pelo conteúdo, um êxito de vendas.
Mas não se deveu tal êxito (e os que se lhe seguiram) somente às criações de Marcelo de Moraes. Cabe ele, sobretudo, às editoriais do Múrias, primorosamente escritas e pensadas, com acutilantes golpes de humor, que eram a mais saliente e singular característica do autor.
Tinha Manuel Maria, aliás, na convivência diária, uma graça espontânea que quadrava com a asa de loucura que eu tanto prezava, que era o seu encanto, e de que ouvia contar deliciosos episódios, ditos de génio.
Era-me alegre e proveitoso o trabalho, sob a sua direcção.
E o jornal lá ia, número a número, ganhando cada vez mais influência na vida portuguesa.
Decerto por blague, Múrias queixava-se, durante a paginação e revisão de provas que, na véspera da edição, realizávamos na tipografia instalada em Santa Cruz da Damaia (ele, o Dr. Jasmins Pereira, o Vitinho, o jovem e dinâmico Vítor Rodrigues, que viera, também, de Caxias, sendo um utilíssimo artista plástico, e eu) queixava-se de o jornal estar a durar demasiado, pois apostara, apenas, em meia-dúzia de números de vida!
A minha dedicação à família deve-lhe, ainda, meia página para as excelentes crónicas ou estórias de minha Irmã Maria Manuela, intituladas "Encruzilhada(s)", parte delas publicadas, depois, pelas "Edições do Templo", e as ilustrações de meu Filho, Juan Soutullo, quer para os textos da Maria Manuela, quer para os do Amândio, "Provisórios & Definitivos", que preenchiam a outra meia página.
Meu Filho tinha, igualmente, a seu cargo, as ilustrações das poesias da página literária.
Ambos haviam sido convidados pelo Múrias, sem que eu haja interferido em tal.
E, a propósito de poesia:
Manuel Maria quis que, no primeiro número d`a Rua (aspecto gráfico do cabeçalho), viesse publicado o meu poema "Escrito no Sangue", onde se lamenta a tragédia dos retornados que traziam, com eles, «cinco séculos mortos» da nossa História.
Todavia, achou que, em matéria de poesia, o jornal ficasse por ali, com grande pesar meu. Mas, qual não é o seu espanto quando os seus amigos extra-redacção o aconselham a inserir, em todos os números, ao menos, uma, para além da gazetilha em verso, "Cantiga da Rua", devida à portentosa inspiração de António Lopes Ribeiro.
E foi isso que me pediu.
E foi isso que eu fiz e constitui, em cinco anos de existência do jornal, um valioso «cancioneiro» da resistência.
Aliás, a página literária d`a Rua primou pela boa qualidade, quer poética, quer ensaística, como constantemente me afirmavam escritores da Esquerda não facciosa.
Defendi-a frequentemente perante o director, pouco interessado no campo literário (pecha da Direita), decidido a suprimi-la, logo que faltasse espaço para qualquer artigo político, até de reduzida importância. Eu fazia valer, nessas circunstâncias, alguma autoridade que tinha sobre o Manuel Maria, já que ele, decerto por blague, dizia ser eu, de entre os redactores, o único de quem tinha medo!
Também a página de espectáculos conquistou leitores interessados. Para ela, escrevi muitos pequenos ensaios sobre dramaturgos e peças portuguesas esquecidos, apesar do seu real valor.
Um dia, José Miguel Júdice gabou-ma, dizendo estar ela a divulgar uma História curiosíssima do nosso Teatro desconhecido, jamais levada a cabo. Assim era, em parte.
A dada altura, o Múrias, empurrado pelo agrado demonstrado pelos leitores da produção poética d`a Rua, sugeriu a edição de uma Colecção de Poesia, sob a égide do jornal.
Claro que aceitei, assim como o Amândio César e o Rodrigo Emílio (colaborador de mérito do semanário), esta óptima sugestão. Todos três tínhamos livros inéditos e, estes, publicados na "Colecção Camoens" (título meu, como já disse), foram sendo publicados com geral aplauso. O meu "Nado Nada", o primeiro a aparecer, esgotou-se num ápice.
Mais tarde, o Manuel Maria instigou-me a recolher, em volume, todos os meus poemas aparecidos n`a Rua, e garantiu-me conseguir-lhe um prefaciador, na pessoa de Franco Nogueira, que o jornal, por essa ocasião, propunha para a Presidência da República, julgo que sem a aquiescência (ao menos, declarada) do estadista.
E, de facto, o meu livro "Ponto de Não Regresso" veio a lume com um estudo sobre a minha obra poética, da autoria de Franco Nogueira, regressado, assim, à sua respeitada cátedra de ensaísta no domínio das Letras, que a política havia silenciado.
Quando Amândio César adoeceu com um preocupante problema vascular, foi substituído na chefia da redacção por António Maria Zorro, a quem me ligavam, desde 1946, laços de amizade e de relações profissionais.
Por esse tempo, a Rua sofria uma dura crise. Múrias estava encerrrado na cadeia do Linhó, acusado de abuso de liberdade de imprensa. Quase diariamente, o Zorro e eu visitámos a cadeia, a receber sugestões e ordens do director, que nem sempre era possível cumprir.
Íamos encontrar o Manuel Maria bem disposto, galhofeiro, contando anedotas dos seus companheiros de cárcere, refinados criminosos com quem convivia fraternalmente, e de quem nos dava retratos vivos e pitorescos.
Por vezes, acompanhávamo-lo, a pé, num passeio generosamente permitido, em torno do edifício prisional, entre arvoredos densos.
Em 1976, havia eleições parlamentares, e o Manuel Maria pregou-me a partida de me propor para encabeçar a lista do P.D.C. para o círculo de Viana do Castelo!
Nessa época, tal Partido tinha grande implantação, grande número de aderentes no Norte, principalmente entre os chamados Retornados.
Confesso que não me atraiu nada esta situação, avesso como sou à política e aos partidos.
Acabei, no entanto, por aceitar, por consideração para com o Múrias, que alimentava a esperança (e nós também) de se ver eleito pelo círculo lisboeta, graças ao prestígio crescente do jornal, e onde a sua inteligência esclarecida e a sua irreverência iriam, decerto, animar as bancadas parlamentares.
Impus, todavia, a condição de não me envolver em comícios e campanhas eleitorais. E, de facto, a minha participação limitou-se a uma entrevista n`a Rua, serena e objectiva.
O resultado é sabido: o P.D.C. não conseguiu deputados em qualquer dos círculos. E eu perdi por cerca de mil votos, o que, vamos!, foi uma derrota honrosa.
Em 1980, novas eleições para a Assembleia da República levaram Manuel Maria Múrias a organizar, em conjunto com outros «nacionalistas», uma "Frente Nacional", que iria apresentar candidatos nos principais círculos do país.
E lá sou eu proposto, mais uma vez, e a rogo do Múrias, pelo círculo vianês.
E, mais uma vez, fiquei de fora. Mas, também, uma vez mais, foi por um triz que não entrei na Assembleia.
Eu conto:
O C.D.S. do Distrito de Viana supôs, talvez, que o meu nome e o da minha família poderiam favorecê-lo nas eleições. E temia, ainda, que a força da F.N. na região lhe roubasse votos. Então, propôs ao meu Partido a desistência no círculo, compensada pela minha inclusão na lista do C.D.S. por Viana, como suplente, embora com a garantia de vir a ocupar, muito em breve, cadeira em São Bento.
Esta proposta foi-me comunicada pelo telefone, por intermédio do então Governador Civil de Viana do Castelo, o Dr. Manuel Coutinho.
Igualmente pelo telefone, dei a conhecer ao Manuel Maria Múrias aquela proposta «com pernas para andar» e, daí a umas horas, era-me transmitida a resposta do Partido:
A F.N. concordaria com a combinação, se o mesmo acontecesse em três ou quatro pequenos círculos mais.
Claro que isso não interessava ao C.D.S., que não via, em qualquer outra modesta lista da F.N., um nome suficientemente capaz de lhe aumentar a votação, nem perigo de competição.
A F.N. teve uma derrota estrondosa. E eu um alívio imenso.
"A Rua" sofria de um mal crónico: a falta de dinheiro que, frequentemente, atrasava o pagamento à tipografia, aos redactores e colaboradores. Debalde o Múrias se esfalfava a visitar, na Província, entidades ou empresas direitistas que lhe estendessem a mão salvadora. Mas, quanto obtinha, levava logo sumiço, quiçá por culpa de uma administração desastrosa, ou uma distribuição ineficaz.
E, a 2 de Maio de 1981, com o n.º 257, "A Rua" desaparecia das bancas, com o pesar de muitos e, acima de tudo, dos proprietários (eu era um deles), fundadores e trabalhadores.
Após esta data triste, raro vi o Manuel Maria. A minha ida, durante três anos, para Macau, aumentou esse afastamento.
Voltei, apenas, ao seu abraço amigo e camarada, quando do aparecimento da Editora "Nova Arrancada", onde, tanto ele como eu, iríamos ter obras publicadas.
Múrias sofrera um acidente vascular e encontrava-se convalescente quando do lançamento, no Grémio Literário, dos nossos respectivos volumes.
Declarara que não rubricaria os seus exemplares, por impossibilidade de movimentar a caneta. Mas esforçou-se por assinar o que me ofereceu, com uma dedicatória gentil.
Depois, fui eu a adoecer, a submeter-me a uma grave intervenção cirúrgica. Ainda em tratamento, recolhi-me à Casa do Artista. Foi aqui que o telefone (esse aparelho que sempre odiei!) me trouxe a notícia amarga da sua morte. Por dificuldades de deslocação, faltei-lhe ao enterro. Mas incluí-o, fervorosamente, nas minhas orações quotidianas, onde ele continua vivo, na minha profunda admiração, na minha profunda saudade.
Muitas vezes, fui testemunha abonatória do Manuel Maria Múrias, nos inúmeros processos que acusavam "A Rua" de abusos de liberdade de imprensa, de que o director era sempre o responsável perante a lei.
Em pleno tribunal, sob o juramento solene, eu considerei o réu uma inteligência incomum, um talento fulgurante, a lisura de um carácter.
Repito-o, aqui e agora, sem necessitar de jurar por Deus ou pela minha honra.
António Manuel Couto Viana(Excerto, inédito, de um livro de memórias)