Passado remoto
Ainda uma vez recorro a Papini para titular uns farrapos de memória.
Foi há muito, muito tempo. Alguns mocinhos inconscientes com que me orgulho de acamaradar então, foram por horrendos delitos levados a experimentar a arquitectura prisional deixada pelo Estado Novo, em estágio prolongado.
Lembro-me de ter chegado à Tomás Ribeiro, num dia assim como todos os dias, e ter dado de caras com um velho amigo (hoje por sinal com assento no hemicirco de São Bento), que em visível nervosismo andava afanosamente ocupado a fazer não percebi bem o quê – agora como tenho melhor instrução jurídica sei que estava a consumar um crime de destruição de provas (não tem importância, já prescreveu). Em tom imperativo e gritado incitou-me repetidamente a que me fosse embora, que não fizesse perguntas, que desaparecesse quanto antes – depois explicaria. Embora com cara de ponto de interrogação tive que aceitar contrafeito que aquilo era a sério, dado o tom do rapaz, e lá me fui embora, inquieto e decidido a tirar tudo a limpo o mais depressa possível. Corri então à Sampaio e Pina. Nessa época eu tinha o hábito de passar da Tomás Ribeiro para a Sampaio e Pina indo por São Sebastião da Pedreira e atravessando o topo do Parque Eduardo VII, o que fiz em velocidade acelerada. Chegado a esse outro antro apitei até me ser aberta a porta, o que tardou. Nem foi aberta, foi entreaberta, e lá de dentro espreitou a face magra de outro velho camarada, por sinal também António Maria (já faleceu, este). Com cara de caso, perguntou-me o que é que queria, sem abrir a porta e sem se desviar. Preocupado que estava já, notório como era que algo de grave se passava, disse-lhe que vinha falar com o Victor. Fez um ar de admiração, e exclamou espantado: “- Mas não sabe o que se passou?” Não, eu não sabia. Nesta altura ele hesitou, nitidamente a pensar que atitude tomar – só um instante, decidindo-se logo pelas cautelas. Acabou por dar-me com a porta, com o mesmo recado – “vá, vá, a ocasião não é boa, é melhor desaparecer, depois saberá”.
Obviamente, o meu estado de espírito não sossegou. Mas não me lembro que mais diligências fiz então nesse dia, a quem telefonei ou com quem me encontrei, para esclarecimento do mistério. Certo é que este acabou por esclarecer-se.
Lembrei agora este filme por causa de uns poemas que aqui tenho. É que, com efeito, a tal experiência prisional desse grupo acabou por traduzir-se num enriquecimento para o nosso património poético. Assim de repente serviram de musas inspiradoras a três poetas, que eu saiba.
Com a esperança que algum deles por aqui navegue, ou algum leitor amigo lhes leve o recado, cá estão os três poemas fruto dessa delinquência juvenil.
CANÇÃO PARA CAMARADAS PRESOS
Vale a pena estar preso nas mãos da mentira
Vale a pena – se é presa, connosco, a verdade.
Quando no céu de pedra, do cárcere, gira
Sobre as manchas dispersas, um sol sem idade.
Vale a pena escutar a noite das cadeias
Se as grades são pautas para um cântico antigo
Se as “cantigas d’amor” são “cantigas d’ameias”
De espada a clavejar no metal inimigo.
Vale a pena descer o degrau do degredo
Se relumbra, nos fundos, minaz, o minério
Se na teia das sombras se encerra o segredo
Como em bosque, doirado, um fruto de império.
É livre o que é preso. E astros, sóis, pensamentos
São livres se presos, a um centro, a rodar.
São cativas, da águia, as asas nos ventos
A adejar, são cativas as ondas do mar.
Vale a pena estar preso nas mãos da mentira
Vale a pena pesar as grilhetas adversas
Quando no céu de pedra, do cárcere, gira
Um sol sem idade sobre as manchas dispersas...
LUÍS SÁ CUNHA
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SOB O SIGNO DE PIRANESI (E DE PESSOA)
(Ao Victor Luís e a tutti quanti...)
Só de quanto vos escrevo sou escravo,
e, se até com a esperança fiz as pazes,
foi graças a vocês. A vós o devo. – Bravo,
rapazes!
Que a pátria os predestine
E que um dia Deus lhes pague!
(Nem só o Soljenitsine
conhece os cantos ao Goulag...)
Agora sei de que maneira
é que a gente recupera
a primeira
primavera!...
Se a rua o quiser (e quererá!)
triunfaremos – na calma...
Pois venha o que vier, nada será
maior que a vossa alma.
RODRIGO EMÍLIO
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CANÇÃO ÀS GRADES
(Para o meu sobrinho José Pedro)
Porque é que o dia demora?
Prenderam a madrugada:
A noite ficou cá fora
Parada.
Porque é que tarda em florir?
Prenderam a Primavera:
O Inverno não quis partir,
À espera.
Porque é que a pátria envelhece?
Prenderam a mocidade:
Seiva, sol, que fortalece
A idade.
Porque choras, Portugal?
- Prenderam o meu futuro:
Jamais terei ideal
Mais puro.
ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA