Sem saberem muito bem o que dizem, os nossos políticos, de vez em quando, enchem a boca com a expressão Estado pluralista; depois, emendando-se na passada, falam em democracia pluralista. O pluralismo é hoje em Portugal uma palavra de passe e de magia como foi o socialismo; renegado este, agarram-se hoje os demagogos ao pluralismo como o náufrago se agarra ao cabo duma navalha. Quem não é pluralista não é democrata, quem não é democrata, ou é fascista, ou é comunista.
Tudo se passa como nos velhos tempos do maniqueísmo gonçalvista. O pluralismo, todavia, devendo ser uma opção fundamental, é muito mais complicado e deve ser mais profundo do que o pensam os democratas indígenas. Exige uma reforma estrutural e revolucionária do Estado e da sociedade.
No pensamento primário dos políticos portugueses, pluralismo quer dizer partidocracia, ou seja, o governo dos partidos para os partidos, restringindo-se a pluralidade das opções populares às formas de organização e conquista do poder político pelos partidos.
Como os partidos portugueses se limitam a querer a posse do aparelho de Estado, sem projectarem a sua reforma essencial, o pluralismo neste país reduz-se à luta livre pelo poder, à luta entre os partidos pelo aparelho de Estado uno, sem se encararem os problemas da sociedade múltipla e, portanto, transcendendo o fenómeno político referido só ao Estado e alargando em concreto o leque das opções possíveis.
Não há liberdade sem diferença. A igualdade, tal qual a postulam todos os partidos portugueses, é estruturalmente antidemocrática. Só há liberdade quando se pode escolher; só se pode escolher havendo por onde. O figurino único que nos oferece a partidocracia releva ilegitimamente a qualidade e, portanto, violenta e restringe a liberdade.
Sendo assim, é fácil verificar como falácia o pluralismo apregoado pelos nossos partidocratas de Direita, já que os de Esquerda — comunistas e socialistas — nem sequer nele falam.
Tal e qual o concebem os políticos portugueses, o Estado pluralista redunda, inevitavelmente, na prática, num Estado fraco e na feudalização da sociedade civil onde os partidos exercem o poder de facto. O que nos dão a escolher aqui não é, na verdade, um modelo de sociedade livre e multiplicada em múltiplas sociedades; o que nos dão a escolher aqui são programas de partido, referidos à organização do poder económico e oscilando entre o monopolismo capitalista e o monopolismo estatista. Onde esteve o sr. X, pessoa privada, pôs-se há quatro anos o sr. J, pessoa pública. Uns partidos pretendem manter esta situação; outros partidos procuram alterá-la. A uns monopólios querem substituir-se outros monopólios. A liberdade real das pessoas nem sequer é aflorada; tudo se desenvolve como se a colectivização, ou pelo capitalismo privado, ou pelo capitalismo de Estado, fosse um dado objectivo, irreversível e inevitável de organização social.
Escolher a escola onde devemos mandar os filhos — porque ensina diferente e melhor; escolher a casa, ambiente familiar, onde melhor cabemos, porque não foi standardizada; escolher a profissão, porque não foi planeada; escolher a própria qualidade de vida, fora da contaminação — tudo isso, que é tudo, porque é a escolha do nosso mundo, não preocupa os pluralistas portugueses. O que os preocupa conseguir é um modelo de sociedade, contrapondo-se a outro modelo de sociedade, sem margem para escolhas, definidas, ou pelo meio familiar, ou pelo meio geográfico, ou pelo meio cultural.
Como poder que é em si e para si, o Estado moderno, até por simples exigência de eficácia, tende naturalmente para o alastramento e, depois, para a concentração, para a centralização e para a igualitarização. São muitos os partidos que disputam a sua posse; são pouquíssimas as opções concretas que cada um deles nos oferece. O Estado, seja qual for o partido que o possui, é sempre uno; falar em Estado pluralista é uma contradição essencial porque não pode haver pluralidade onde a essência é a unidade.
Divertem-se os nossos políticos contando e recontando o número de poderes que constitucionalmente existem. Debruçando-nos com mais rigor sobre a autonomia intrínseca de cada um deles, chagamos todos, com facilidade, à conclusão triste de que são todos braços iguais do mesmo corpo estatal e, perseguindo o mesmo fim, todos se fundem num único ser jurídico, absorvente e dominador, que é o Estado, senhor supremo.
Uma ditadura não deixa de o ser porque o governo, em vez de ser exercido por um só, é exercido por cinquenta mil, executando as mesmas ordens e cumprindo as mesmas leis. Nem o facto de podermos escolher alguns desses cinquenta mil evita que a ditadura seja ditadura.
Ditar é impor — e nós, agora mesmo, estamos a viver a ditadura do parlamento que, impondo-se a todos os outros poderes estabelecidos constitucionalmente, altera as leis em função do interesse dos partidos para dominar os poderes locais, e a economia, e a comunicação social, e os tribunais, e os partidos adversos, e o próprio Presidente da República. Arruinamo-nos, gastando-nos ingloriamente na luta pelo poder. O pluralismo, tal qual se fala em Portugal, reduz-se aos cinco partidos com assento na Assembleia da República; para além da partidocracia, esgotou-se a pluralidade e entramos tristemente no reino fatal da unicidade, tipo de organização política do poder, cujo modelo nacional melhor acabado, depois do Parlamento, ainda é a CGTP-Inter de triste existência.
Não vale a pena discorrer muito sobre o assunto porque os factos históricos são evidentes. Ao bico de pena, como definição melhor, chega-nos a quadra admirável de António Lopes Ribeiro:
Já não é coisa que se discuta
Se a ditadura e o pluralismo são iguais:
Na ditadura há só um f. da p.
No pluralismo há muitos mais.Manuel Maria Múrias
(In A Rua, n.º 158, pág. 24, 21.06.1980)