terça-feira, novembro 30, 2004

1º de Dezembro

Deixemos o acidental, e olhemos o permanente.
Amanhã, 1 de Dezembro de 2004, celebra-se de novo a Independência de Portugal.
A Sociedade Histórica da Independência de Portugal convoca todos para as cerimónias de homenagem aos Heróis da Restauração, a realizar junto ao monumento dos Restauradores, pelas 16 horas.
E pelas 18.30 horas realiza-se Missa Solene de Acção de Graças, na Igreja Paroquial de São Nicolau, em plena baixa lisboeta.

Balbúrdia no Oeste

Como era óbvio, não se podia manter indefinidamente a criança na incubadora.
Ou se verificava alguma viabilidade ou era forçoso decidir - e desligar a máquina.
Agora aí temos a grande confusão. Eleições legislativas antecipadas? Pois, é isso, mas então e o referendo, e as autárquicas, e as presidenciais...
Vem aí tudo a trouxe-mouxe? Entrámos num longo período de instabilidade?
Eu não sou capaz de ler nas estrelas, mas só me apetece citar Santana Lopes (a propósto de outro assunto) - isto estava escrito nas estrelas. Devia estar. tanto estava que assim que ele apareceu por artes mágicas à boca do palco houve logo um pressentimento geral. Vinha aí trapalhada das grandes. Não foi preciso esperar muito.
E agora? Um país é suposto ter um governo. Estes não faziam ideia do que isso fosse. O PS, segundo Roseta (e nós sabemos que é verdade) não está preparado para governar.
Na verdade não se vislumbra quem esteja.
O regabofe promete continuar. Espantosa terra que a tanto resiste.

Nos cuidados intensivos

Aprecie-se a extraordinária parábola do Primeiro-Ministro em funções:
"Este é um Governo a quem ninguém deu quase o direito de existir antes dele nascer, e que, depois de nascer através de um parto difícil teve que ir para uma incubadora e vinham alguns irmãos mais velhos e davam-lhe uns estalos e uns pontapés".
"Tem sido difícil para quem está na incubadora, ver passar a família e, em vez de acarinhar, haver membros da família que dão uns estalos no bebé."

(Santana Lopes, discursando em Vila Pouca de Aguiar)
Um Primeiro-Ministro pode dizer isto de um Governo a que preside?

Amigos, companheiros, camaradas

Mantenho actividade blogadora há precisamente um ano e quatro meses. Não me posso queixar do balanço: escrevo o que quero, que é o que gosto de fazer, publico o que e quando quero, afixo da escrita alheia aquilo que me agrada por qualquer razão.
Tivesse eu tido esta sorte há anos atrás...
Sei que sou lido, que retomei diálogos há muito interrompidos com gente que estimo, e descobri outros que passei a estimar. Estou satisfeito por isso. Os ecos que me chegam trazem-me a compensação do esforço.
Porém, todavia, contudo... confesso: uma frustração trago comigo, e traz-me ela em desgosto por não ver forma de lhe dar a volta. É que eu queria mais! Não quero só ser lido, receber cumprimentos de longe, abraços pelo correio. Queria ter na blogosfera a gente de que sou parte, aqueles que partilham comigo sensibilidades e gostos, um itinerário comum, ombro com ombro em comunhão fraterna. Queria ter aqui com o mesmo entusiasmo blogueiro os que num momento ou em outro viveram comigo sonhos e projectos em conjunto, ergueram bandeiras, sentiram poemas, hinos e canções - lutaram as mesmas batalhas e choraram as mesmas derrotas.
Queria aqui a toda a volta uma comunidade blogueira onde a gente se encontrasse, e falasse. Falasse entre nós, e urbi et orbi. Diz-se que um alentejano nunca canta sozinho. Se não o faz é porque descobriu que a força do canto está toda no conjunto, na conjugação de uma mar de vozes que se juntam e cantam, em polifonia pois claro, que cada um tem voz própria, mas em harmonia também, que ninguém gosta de escutar desafinação ou cacofonia.
Aqui deixo o desabafo, em tom de lamento e de desafio. Venham de lá do silêncio emsimesmado ou da tertúlia rotineira, ergam ao sol da net palco e tribuna, e afinem as vozes. Estou farto de cantar sozinho. Venham, e levantemos um cântico novo sobre a Cidade.

CARTA DO CANADÁ, por Fernanda Leitão

Senhor Presidente da República
Lamento dizer que pertenço ao número crescente de portugueses que, tendo-lhe dado ao menos o benefício da dúvida, estão desagradados com as últimas posições tomadas pelo Chefe do Estado. Sabendo embora que a democracia é um aprendizado moroso e difícil, por vezes consumindo uma vida inteira, não é fácil aceitar actos que mal assentam num cidadão com largos anos de luta contra uma ditadura.
Não me refiro à comédia rasca que decidiu oferecer ao país depois da fuga de Durão Barroso para Bruxelas, sob a forma dum (des)governo da firma P&P. Tendo por hábito colocar-me no lugar da pessoa que tomou uma decisão aparentemente extraordinária, numa tentativa de perceber, também nessa emergência perguntei a mim mesma o que faria eu se me chamasse Jorge, se fosse socialista e presidente da República. A resposta foi clara a ponto de me deixar desinteressada do que aconteceu depois: pois eu não convocava eleições antecipadas, como o Senhor Presidente não convocou, dava o governo à troupe em palco, como o Senhor deu, e deixava-os afundar completamente, até o PS ter tempo de lavar a cara e meter ao menos umas obras sumárias na arruinada casa. Era assim mesmo que eu fazia se me chamasse Jorge, se fosse socialista e PR.
Mas não sou Jorge, nem socialista, nem republicana. Os governos tenho-os por arranjos conjunturais, aceitando que umas vezes têm de ser à esquerda, outras à direita ou ao centro. Com os partidos extremistas fora de jogo, felizmente, os governos têm a pouca transcendência de uma administração de empresa. Quere-se obra feita e contas certas, e mais nada. Não perco tempo a dar aos governos mais importância do que esta.
Já assim não encaro a Chefia do Estado. Essa é que me preocupa e, na prosa presente, me ocupa. Porque a Chefia do Estado tem tudo a ver com a soberania do país – essa soberania que custou aos nossos antepassados muito sangue, suor e lágrimas, o que nos obriga a um grande escrúpulo com a manutenção da herança.
E é neste passo que eu entro a discordar frontalmente do Senhor Presidente depois de o ter ouvido afirmar que a Europa tem de ser uma federação de estados e que, por isso mesmo, todos temos de dar o Sim à Constituição Europeia a ser referendada na Primavera próxima.
O Dr. Jorge Sampaio, advogado, militante socialista e chefe de família, tem todo o direito de assim pensar. Mas porque decidiu ser presidente da República, e apesar da abstenção e dos votos noutro candidato, se afirmou “o presidente de todos os portugueses”, não pode fazer declarações destas ao país. Nada o autoriza a tal, muito menos o respeito que deve aos portugueses. Sabemos todos, na carne e na alma, quanto a República Portuguesa tem abusado da fazenda da Nação e da paciência do Povo, não sendo demasiado lembrar que foi durante o regime republicano que se abandonou um império ultramarino ao comunismo pró-soviético então vigente, seguido da rapina das multinacionais, em concubinato com os corruptos líderes das regiões, assim engrossando as legiões de famintos e miseráveis que se arrastam nas antigas possessões portuguesas ou nos guetos de imigrantes. À República devemos a circunstância de vivermos em ditadura desde 1910, após o banho de sangue em que os republicanos sepultaram uma Monarquia secular, isto é, duas ditaduras de partidos corruptos com uma ditadura tout court, mas nada curta de 48 anos, pelo meio. Porque tudo foi decidido e feito sem consultar a opinião do povo.
Não tenho notícia de algum Rei, de qualquer das monarquias da União Europeia, ter feito um discurso do trono, ou outra fala pública, declarando o sentido do voto no próximo referendo. Os Reis, pelo menos, sabem respeitar o povo e as regras do jogo.
Dizer Sim, cegamente, como o Senhor Presidente se afadiga em preconizar, é tão pouco inteligente e decente como, em 1986, nos Jerónimos, foi entregar o país à União Europeia, sem curar de saber se o povo queria, como fez um antecessor seu, por sinal o mesmo socialista que entregou o império. O necessário, o urgente, o digno, é explicar, dia e noite, em palavras claras, o que contém aquela Constituição de benéfico e de danoso para Portugal. Porque o que está em causa é aquela Constituição, não é a Europa em si mesma. À Europa pertencemos desde tempos imemoriais. Mas temos de saber se aquela Constituição nos convém e nos garante a soberania.
Até agora, o que o povo pôde perceber da União Europeia foi que acabou, em Portugal, com a agricultura e as pescas, nestas tendo ido ao apuro de nos tirar a zona marítima exclusiva, mandou milhões a jorros que, somadas as contas, não modernizaram nem incrementaram a indústria, mas deram origem a várias fortunas mal explicadas, ao mesmo tempo que abriu autoestradas que deixaram o interior mais interiorizado.
Temos todos assistido à invasão do capital estrangeiro e, principalmente, espanhol, sem que o desemprego tenha diminuído e as condições habitacionais, educacionais e de saúde do povo tenham melhorado, donde se pode concluir que foi investimento de puro saque da mão de obra. Nada impede, chegadas as coisas a este ponto, e com o aconselhado Sim do Senhor Presidente, que tenhamos as grandes empresas, principalmente as de pesca, nas mãos dos espanhóis, com frotas apetrechadas e já batidas em roubalheiras várias. No Canadá, por exemplo, tiveram de ser expulsos à ponta de espingarda e algemas – mas este é um país esquisito, uma monarquia parlamentar e senhora do seu nariz.
Este quadro é perigoso. O Senhor Presidente da República Portuguesa sabe muito bem, como qualquer um de nós, que em Portugal só o povo é fiel. As élites produzem sempre traidores. Nao é prudente dar a essas élites ensejo de, a exemplo do que já aconteceu no passado, haver um perdido, um infeliz, um desgraçado, que vá propor a União Ibérica ao Rei de Espanha. Que representaria, como se sabe, a dominação de Portugal. Não é aceitável proporcionar a essas élites que elementos seus, destituidos de carácter, vão aos bastidores de Bruxelas propor aos países ricos a transformação de Portugal numa vasta estância de casinos, bordéis, bares, estádios, hipódromos, com as máfias a controlar tudo, contra chorudas contas nos paraísos fiscais pela brilhante iniciativa, reduzindo os portugueses que não emigrarem a simples criados.
Resumindo, Senhor Presidente: foi muita pena ter-nos desrespeitado deste modo. O nosso voto no referendo pertence-nos, é parte da nossa liberdade. É secreto. Ele apenas servirá para avaliar uma Constituição e não para condenar a Europa. Ao Senhor Presidente cabe saber estar calado nesta matéria. Nós não somos mentecaptos, não precisamos de tutores nem de pisteiros.
Fernanda Leitão

“O anti-catolicismo substituiu o anti-semitismo"

Numa entrevista concedida ao diário italiano "Il Messagero", o escritor Vittorio Messori denunciou que, na Europa, o anti-catolicismo substituíu o anti-semitismo, mas expressou a sua confiança de que esta "fúria anti-católica" permita aos crentes redescobrirem a sua identidade.
Devido ao caso de Rocco Buttiglione, o político italiano recusado pelo Parlamento Europeu por causa das suas convicções católicas, Messori assinalou que alguém disse que os católicos – de par com os fumadores e os caçadores – são uma das "três categorias não protegidas pelo politicamente correcto e daquelas de quem, portanto, se pode falar mal livremente".
"Graças a Deus, o anti-semitismo acabou. Mas foi substituído, na cultura ocidental, pelo anti-catolicismo", explicou o escritor na entrevista também publicada pela revista espanhola "La Razón".
Segundo Messori, Buttiglione "passou a ser digno da incorrecção política, a dobrar. Dantes, os objectos de sarcasmo eram os negros, as mulheres, os judeus e os homossexuais. Agora, felizmente, já não se podem atacar estas categorias. Mas não percebo porque se têm de injuriar outras".
Agora, explicou, "apesar de os muçulmanos degolarem pessoas, ninguém ousa falar mal do islamismo". Em contrapartida, os ataques contra os católicos gozam de aplauso público, incluindo em "equivocadíssimos" filmes como "A Má Educação" ou "As Irmãs de Madalena".
Segundo Messori, estes "são a prova do que dizíamos antes: aos católicos pode-se, ou mesmo deve-se fazer dano. Os padres retratados por Almodovar são todos, sem excepção, pederastas. As "irmãs de Madalena" – e sabe-se lá quantas mais fora do filme e dentro de colégios e conventos – são doentes terminais. E assim por diante".
"O assunto Buttiglione insere-se, desgraçadamente, neste clima. Um clima em que ninguém roda um filme sobre um guru budista ou um imã muçulmano que abuse de menores", acrescentou.
Razões de esperança?
Neste contexto, Messori não só não lamenta, mas antes sustenta que nós, os crentes, "temos de estar contentes com esta fúria anti-católica" e considera "providenciais o anti-catolicismo da cultura ocidental e do Islão".
"O cristianismo, e o catolicismo em particular, precisa de um antagonista para redescobrir a sua própria identidade, a sua própria força", explicou o escritor.
Actualmente "os católicos correm o risco de converter-se em personagens banais de talk show, que debitam um bla-bla bondoso e estão dispostos a dialogar com todos, incluindo os que lhe querem cortar o pescoço. A esta espécie de pensamento débil contrapõem-se verdades fortes. E quando se dizem verdades fortes sobre os gays, ou sobre qualquer outro assunto, logo se organiza um escândalo. O que redunda em favor dos católicos".
"Quando a Igreja diz coisas neutras ou banais, do tipo pacifista, todos ajoelham. Mas quando João Paulo II, no seu múnus de Papa sai completamente do politicamente correcto, como foi o caso do documento do Cardeal de Ratzinger sobre as mulheres dentro da Igreja, então explode, mais ou menos disfarçado, o anticlericalismo de todos os azimutes", afirmou Vittorio Montessori a finalizar a entrevista.
(In NOVEDADES FLUVIUM)

segunda-feira, novembro 29, 2004

A duas vozes

I – Desafio...
Certo dia 29 de Maio de 1991, no Porto, Goulart Nogueira reescreveu o poema, "de memória", e endereçou-o: "esta cópia manuscrita vai para o Rodrigo Emílio com muito afecto" .

Meu Deus! Só quando renunciar ao mundo
Abarcarei o mundo
Sei isto e muitas coisas mais
Que me dizem dos sítios onde vais.
Sei isto e os compêndios de escolar
Que ensinam os caminhos por Te achar.
Sei isto; e a inteligência mostra que é.
Só não sei o gosto ao amor. Só não sei a força à fé.

Meu Deus Senhor! Renunciar ao mundo,
Nada querer pra Te querer a Ti.
Nessa empresa me gasto e me confundo,
Mas moras muito alto ou muito fundo,
Que sinto o mundo e nunca Te senti.

Ó dono dos exércitos - vencido!,
Inerte, quando a terra me conquista!
Só me chamas nas coisas escondido.
E eu nas coisas me perco, ó som perdido,
Ó eco enganador, ó falsa pista!

Meu Senhor, que encontrei na inteligência
E explicando o insucesso dos meus passos;
Que conheci - de nome - nos regaços
De Mãe, Tias e Avó - com negligência...
Senhor intemporal que não tens pressa,
Que envenenas os sítios onde beijo,
Que me afogas de dor no que desejo,
Meu Deus Senhor! Por onde se começa?

II - Parada...
E da sua casa de São José, lá na Beira Alta, Rodrigo Emílio retorquiu com esta "Saudação" dirigida "ao meu bemquerido Mestre Goulart Nogueira".

Ó meu irmão siamês
meu irmão gémeo -
como eu, português
e, como eu, boémio:

- a teus braços me arremesso,
como quem se atira às águas,
procurando dar início a um bom congresso
de mágoas.

Se és um dandy,
cinge o fraque,
manda vir brandy
e cognac,

- que eu, pecador, me confesso
de nadar nas mesmas águas
do amor e do excesso
de mágoas.

Já das noitadas de sexo
pouco a pouco me despeço...
Já começo a alar das águas...

...E contigo as atravesso,
desafiando-te, em verso,
a um bom congresso
de mágoas.

Ó meu irmão siamês,
meu irmão gémeo -
- como eu, português
e, como eu, boémio:

faculta-me acesso
a terras e águas
e a um bom congresso
de mágoas.

III - ... E resposta
Após o que, já em Lisboa, a 16 de Julho de 1991, Goulart Nogueira respondeu com este "Recado em Prece", "inteiramente, e inédito, para o Rodrigo Emílio".

Pois, Rodrigo, te respondo
Num mesmo jeito de verso
Que, cada qual com seu estrondo,
Chegámos ao mesmo berço,

E um mais alto, outro mais baixo,
Um mais velho, outro mais novo,
Tomámos o mesmo enfaixo,
Como sendo o mesmo ovo.

Nem se nota a diferença,
Com tamanha luz acesa.
Espantosa é a parecença
E é semelhante a magreza.

Minguadinhos, desmedidos,
Cada qual seu rosicler...
Como são tão parecidos?
Como é que isto pode ser?

Marcas o lugar que eu marco,
Neste pinho que nos veste.
Nem sei se é berço, se é barco,
Se uma astronave celeste.

Órfãos, no campo enjeitado,
Velhinhos na escuridão,
Fazemos choro dobrado,
Presos na mesma aflição.

Se eu te pregar a partida
De partir antes que queres
- "Avé Maria bendita
Entre todas as mulheres!" -,

E se tu me prespegares
Duas chapadas "zás! trás!"
Prosseguirei nos teus ares
Pra qualquer sítio que vás.

Se desarvorares, triste,
Mais negro do que um tição,
Correrei, de pranto em riste
A chamar-te: "Irmão! Irmão!".

Por enquanto, deixa, deixa!
Grão na terra... Sal no mar...
Não faças nenhuma queixa,
Tudo se há-de arranjar.

Pelos sóis, pelos buracos,
Arrastámos nossa cruz.
Tanta travessia aos nacos!
Tantos planetas, Jesus!

E, chegando ao mesmo berço,
Ó Virgem Santa Maria!,
Já, cada qual com seu terço,
Andamos pela agonia.

Que Nosso Senhor louvado!
Se nos traçou rumos tais,
Nos ponha aos dois, lado a lado,
Com brancas asas iguais.

O REINO E BUTTIGLIONE

Uma das referências-chave no estudo da mutação cultural na história da humanidade é o versículo 20 do capítulo 13 do Evangelho de S. Lucas, o qual diz: “A que compararei o Reino de Deus? É como o fermento que a mulher põe em três medidas de farinha e leveda toda a massa”. Talvez em toda a memória colectiva nenhuma outra frase tenha tido maior repercussão do que esta em que Jesus Cristo levanta o véu sobre um aspecto essencial do anúncio do seu reino, isto é, a aspiração católica.
A diferença capital para a interpretação da cultura cristã, que é ao mesmo tempo o que a distingue da cultura judaica, está na sua missão universal. O judaísmo gira à volta do fundamento da exclusão, e por isso a cultura judaica é sectária. A lei judaica era uma lei para os judeus, e o judeu aspirava e desejava poder reger-se pela sua lei no seio de outra cultura com excepcionalidade reconhecida. Mesmo nos nossos dias a cultura judaica tem traços de cultura de gueto, de separação, de mundo à parte. O cristianismo está bem distanciado desta tradição, deu corpo a outra que tem como sinal de identificação precisamente o contrário: a aspiração de dar a identidade cristã a toda a humanidade. É o que significa o vocábulo católico.
A missão do católico é a de fermentar o mundo. Para isso aí está a Igreja. A sua razão de ser não é satisfazer os pedidos de conforto espiritual que os fiéis possam apresentar, o que a transformaria, mais do que numa empresa de serviços especial, num verdadeiro marco da cultura consumista. Não, a missão da Igreja é de índole civilizadora e cultural: transformar o mundo prégando o Evangelho.
Não deixa por isso de chamar a atenção que, actualmente, haja alguns católicos que desejem, ou implicitamente trabalhem para a edificação de um gueto cristão no seio de uma sociedade de cultura neopagã. São cristãos que querem para os seus filhos a segurança da fé verdadeira e a procuram em colégios separados, ou que aspiram a que as leis reconheçam a sua excepcionalidade no que se refere ao matrimónio e à família, e que ao mesmo tempo, talvez por isso mesmo, perderam a esperança de fazer do conjunto uma massa levedada pela fé em Cristo.
Buttiglione não pertence a estes católicos com problemas de identidade. Provavelmente foi por isso que o Parlamento Europeu o escorraçou. Porque aqui há algo mais do que política: trata-se de um posicionamento cultural explícito que pretende reduzir o cristianismo à marginalidade. Mas isto é coisa muito distinta do Reino de Cristo. João Paulo II, faz agora um ano, propôs aos cristãos os cinco mistérios da Luz e entre eles, “o anúncio do Reino”. Este afirma a aspiração do universalismo católico e é um mandato evangélico.
Haverá alguns católicos vendo o caso de Buttiglione como uma amarra para a política católica. Um fiel vê precisamente o contrário: esta é a hora de deixarmos aos políticos todo o poder e, em concreto, a sua capacidade de manipularem a cultura. Por esta razão, entre muitas outras como a de saber que a cultura cristã é também a melhor para os cristãos, votarei NÃO à Constituição Europeia que se anuncia para referendo.
José Perez Adán
(Professor de Sociologia na Universidade de Valência /Espanha)

Trapalhadas e santanices

Os últimos episódios passados com o grupo recreativo que se vestiu de governo de Portugal lembraram-me irresistivelmente as peripécias de uma certa associação de estudantes, vai para uns vinte e seis anos.
Entre avanços e recuos, dizer a uns uma coisa, a outros o contrário, e a todos não digas que eu disse, mais efeitos de retórica para a galeria e hesitações e inacção por outra, armou-se uma tal baralhada que a Associação de Estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa acabou nas mãos da União dos Estudantes Comunistas, num tempo em que estes eram francamente minoritários naquela escola.
Pelo meio ficaram trapalhadas revisteiras, como votos organizados tão mal organizados que até incluíram quem sabidamente estava no hospital, e mais uns casos anedóticos de detecção rápida e inevitável.
Os patuscos e desastrados politiqueiros aprendizes, que até na batota se saíam mal, coincidem em boa parte com as cabeças visíveis da novela agora em cena.
A mim serviu-me de vacina: nunca mais acreditar em Santana Lopes seja o que for que ele diga. Ele fala sempre sinceramente, mas muda de sinceridade cada vez que fala.
Mesmo assim fiquei sem palavras perante o extraordinário comunicado do amigo Henrique Chaves. Eu se chegasse a tão drásticas conclusões sobre alguém em quem confiei (já aconteceu) calava-me acabrunhado e envergonhado. Como podia eu ter falhado tão radicalmente?
Pelos vistos Henrique Chaves não está afectado por nenhum sentimento de culpa. Sorte dele. Só o outro é que não presta.
Será que isto já bateu no fundo ou ainda estaremos a afundar?

domingo, novembro 28, 2004

Chuva de domingo

Nesta manhã, como já se viu, estive entretido a remexer memórias. De gente passada, dos ecos e dos lugares das suas vidas. Lembrei Elvas, de António Sardinha, de Tomás Pires, Torres de Carvalho, Picão Telo, Santa Clara - e de Afonso Costa preso no Forte da Graça.
Lembrei-os nos escritos de Azinhal Abelho, o estalajadeiro de Santa Luzia, o poeta da Orada, e também, com Orlando Vitorino, o homem do Teatro de Arte de Lisboa ou das incursões no cinema ("O Alentejo Não Tem Sombra" chegou a receber o Prémio Paz dos Reis).
Sinto que, tirando eu, estas minudências não interessarão a mais do que três ou quatro. Não é blogação, é arqueologia. Seja. Por detrás de um blogue tem que haver alguém; este é o meu. Com fixações e obsessões, gostos e desgostos, sou eu.
Não é que a actualidade não me mantenha curioso, não é que não goste das pessoas (os vivos). Na verdade gosto (desejo que sejam todos muito felizes) e estou sempre curioso do que se passa à minha volta. Mas não encontro aí lume que aqueça. As gentes de agora parecem-me bem pouco interessantes. E os tempos cinzentos e baços.
Como este domingo, o primeiro deste ano em que vejo o Inverno assentar e ficar. Aqui em Évora o dia nasceu chuvoso e triste. O silêncio pesado do céu de chumbo e a chuvinha persistente e teimosa encheram-me a alma, até ao osso. Na rua os enormes plátanos largaram à pressa os mantos de folhas amarelecidas, lembrados de súbito do Inverno. Elas amontoam-se por aí, enchendo tudo, lixo inútil do que foi fresco e palpitante. Eles encolhem-se, enregelados, nus e hirtos, a aguardar que um Sol distante venha um dia trazer-lhes de volta a luz e a vida.
E está frio. O frio que sinto só eu sinto.

ANTÓNIO SARDINHA E A CIDADE DE ELVAS

Quem a avistar ao longe, Elvas amuralhada e fortificada, com o casario a fulgir coloridos claros, parece um presépio. Cá dentro, as ruas são estreitas, íngremes, ruas que parecem ainda talhadas por um Machado de Castro com mãos de gigante, criando incidentes e viventes na forma, imaginados pelo escultor castiço.
Em 1936, quando iniciava a minha curiosidade sobre escritos e escritores conheci aqui, nesta Elvas, um museu que foi para mim uma revelação. O arquivo era extraordinário; quadros, espécimens de arte popular, manuscritos, enfim, todo um recheio que estava bem longe de deparar na província, com admiração. O edifício pertencera ao antigo Colégio dos Jesuítas com um alpendre e lá dentro, entre pó e papeladas, vivia o seu director — um velho simpático de cabelos brancos, dando-se inteiramente às lides dos livros. A figura irradiava parecer romântico. No meio dos outros mortais, num café por exemplo, onde se falasse de todas as coisas utilitárias, negócios, etc., distinguia-se à distância — pelo vestir desprecocupado, pela barbicha branca, pelos traços vincados pelo tempo — tudo a respirar vida interior. Muito se assemelhava a uma figura de composição dum dos tais presépios populares, completando a nossa impressão de quem visita este burgo, com os olhos frescos. António Torres Carvalho era o seu nome. Possuía um jornal e uma revista; fora editor de variadíssimas obras; era bibliotecário e dirigia o museu de Elvas e toda a gente tivera e tinha pela sua pessoa um respeito e veneração digno de nota. Para adquirir uma biblioteca, que legara à cidade, gastara parte da fortuna que possuía em bens de raiz. Dessa primeira visita guardo na memória este pedaço de diálogo bem vivo.
— E António Sardinha?
— Morreu a tempo, diz-me. Doutro modo a fortuna da mulher ter-se-ia sumido e esta ficaria na miséria.
Não quis ouvir mais. Não era isso que esperava. Perguntei pelo Mestre a Torres de Carvalho na esperança de saber qualquer revelação que me contentasse outra sede que não aquela. Numa tabacaria tinha comprado o "Roubo da Europa" que repousava na mesa onde conversávamos. O volume bailava-me na frente, enquanto as palavras do diálogo me atormentavam. «Morreu a tempo...» E era Torres de Carvalho que me dizia isso, a pessoa que eu julgava ser capaz de me elucidar em Elvas, com mais competência sobre Sardinha! Eu que julgava essa morte uma catástrofe! Gelou-me tal comentário a respeito de Sardinha. Após isso, a nãos ser nas páginas dos seus livros, tenho sempre medo de falar com alguém sobre a personalidade do autor de "Glossário dos Tempos". Mas Janeiro aproxima-se e nesta época, em Elvas, aparece-nos sempre a evocação do Mestre.
Um oficial miliciano que por aqui passou a dizia-me: - Que estranho caso o de Sardinha! Em Elvas pouca gente fala dele!
Em princípio talvez pareça ser assim. Mas se aprofundarmos bem, existem devotos que lhe guardam fanaticamente a memória.
Conhecem o José Picão Telo? É o tipo mais completo e perfeito de arraiano peninsular, que a Natureza criou. Esse e outros (poucos mais, valha a verdade) consagram ao Mestre a veneração merecida. Era José Picão Telo o seu discípulo dilecto. Na sua escrivaninha se guardam, como relíquia, fotos e autógrafos de António Sardinha. Quando nos encontramos, eu e ele, neste marasmo quotidiano que é a contemplação da mesma paisagem, sem cambiantes violentos, a nossa conversa é sempre sobre Sardinha. Foi José Telo que me ajudou a explicar a razão, para mim enigmática, da opinião de Torres de Carvalho sobre Sardinha. A política não perdoa. Torres de Carvalho era impotente para compreender a personalidade de Sardinha, no que ela tinha de transcendente e heroicamente nacionalista. Profeta e poeta, o âmbito da figura de Sardinha tinha que ser mais amplo do que a estreiteza dos muros das muralhas citadinas. Só quem militasse na mesma fé (boa fé, aliás) poderia cavalgar lado a lado com ele. E depois ninguém é profeta na sua terra...
Um dia, no arquivo do museu municipal, o bibliotecário actual — senhor Domingos Lavadinho — indicou-me um molho de cartas endereçadas por Sardinha a Torres de Carvalho. Li-as e reli-as com interesse sôfrego. Data a primeira de Monforte em 1902. Uma letra miudinha, de colegial ainda, com caligrafia certa e inclinada à direita. Sardinha era novo e andava no liceu por essas alturas. Mas já a história local o preocupava. Recortamos um excerto que merece registo pelas conclusões que se podem tirar para o estudo do seu vulto.
«...Confundido agradeço a V. Exa. a subida fineza com que me honrou na manhã de 27 e o adeus que só nós os dois compreendemos, pois pela auto-sugestão ele me foi comunicado quando eu volvia lacrimosos os olhos a essa heróica e ínclita cidade, dirigindo-lhe as minhas despedidas e fixava as torres de Al-kasova, parecendo-me lobrigar, através das brumas de miopia o minarete limítrofe da porta de Tempre! Mais agradeço a V. Exa. o cuidado que teve com que m`as enviou. Rogo-lhe que me alcance a cópia do período do manuscrito do Pires que trata da estada de Afonso IV em Santa Maria a velha, do castelo desta vila.
Se puder no dia 16 ou 19 do próximo irei ver V. Exa. Incluso remeto a V. Exa. uma fotografia de N. S. da Conceição não enviando mais porque, quando tirava a da ponte, também para a enviar a V. Exa., assim como muitas mais, deixei cair a máquina que se partiu toda. Paciência!
Parto no próximo dia 2 para Portalegre, indo residir na Rua da Mouraria n.º 136
».
Devia ter quinze anos o rapaz que escrevia esta carta. Partia para Portalegre e no ano seguinte, de Coimbra aparece-nos editado em estreia literária o seu entreacto dramático "Serão Ducal". É pomposamente enternecedora esta carta quase colegial. Desconfia o mundo sempre dos meninos precoces. Sardinha porém desmentiu a regra, o que só serve para a confirmar.
A tendência renovadora do futuro historiador que viria a ser assinala-se já nessa estreia literária, numa nota que nos chama a sua atenção escrevendo:
«Reconhecendo-a por boca de D. Joana, ilibada da culpa, porque morreu, no Serão Ducal sigo a versão por muito tempo sustentada, mas afinal desmentida pelos valiosos estudos sobre ela, de Luciano Cordeiro, e a lenda ainda hoje corrente em Vila Viçosa. Desvio-me, pois, da verdade, por assim me convir mais à ficção, avisando aqui para que me não tachem de ignorante e pouco lido no assunto».
A correspondência de Sardinha com Torres de Carvalho acentua-se. Nesse tempo, o segundo possuía uma tipografia editando obras de vulto.
António Sardinha de Monforte concorre aos jogos florais de Salamanca, quando se encontra já na Universidade de Coimbra. A sua "Lírica de Outono" granjeia-lhe o primeiro prémio, concretizado numa salva de prata lavrada, que ainda hoje se encontra na Quinta do Bispo, em setecentas e cinquentas pesetas e um alfinete de safiras e rubis que lhe segurava a flor simbólica na lapela da batina, que o deviam ter deslumbrado. Eugénio de Castro apadrinhara-o e prefaciara-lhe o "Tronco Reverdecido". Em Elvas, no seu Correio Elvense, Torres de Carvalho saudava a entrada no templo, em primeira página, com fotografia e prosa de louvor.
Como não podia deixar de ser, Sardinha, nado e criado em terras de Monforte, é em Elvas, bem antes dos jogos florais de Salamanca, que vem nas férias e aqui trava relações.
Com Torres de Carvalho já as vimos numa carta. O meio era pequeno, mas duas ou três pessoas sempre se encontram consagradas às letras. O Dr. Francisco de Paula Santa Clara, latinista notável, morando numa casa cheia de legendas eruditas na língua de Virgílio (casa esta que nos sugere um castelo situado no largo do Pelourinho) chamava a Sardinha, num preciosismo de linguagem — é José Telo que mo diz — esperançoso mancebo! Sardinha porém, como se demonstra por outra carta a Torres de Carvalho, quer muito à memória do Dr. Santa Clara.
«Exmo. Senhor
Acuso a recepção da apreciável carta de V. Exa., dizendo que com a notícia do falecimento do erudito clássico, o Exmo. Dr. Francisco de Paula Santa Clara, meu chorado amigo, fiquei como interdito, como fulminado.
— Maldita parca que roubas à Humanidade vidas tão preciosas! —
Pensei em escrever um necrológio, que V. Exa. honrando-me extraordinariamente, faria inserir nas colunas de O Correio Elvense, mas vai tarde, — razão porque rogo a V. Exa. a subida fineza de o fazer publicar num dos próximos números. Para que o indefeso trabalho do consumado latinista não fique sepultado nas penumbras do esquecimento, ofereço-me, mesquinho, para anotador do Hissope, prestando sincero preito à memória do abalizado literato e investigador. Associo-me, como do meu telegrama V. Exa. depreenderá, à sua profunda e intrínseca dor.
Sou de V. Exa.
Att.º Ven.dor e Adm.dor
António Maria de Sousa Sardinha
»
Mais outra ainda sobre o mesmo tema:
«Portalegre, 10 de Outubro de 1902
Exmo. Senhor
Acuso em meu poder um manuscrito do malogrado Dr. Santa Clara, — manuscrito que diz respeito aos priores de Monforte.
Rogo a V. Exa. a fineza de me ceder todo e qualquer apontamento do nosso chorado amigo, referente a Monforte, ou ao seu concelho assim como a cópia d`uma diatribe manuscrita que diz respeito ao bispo Azevedo Coutinho, se me não engano.
Sobre o necrológio diga-me V. Exa. se se digna publicá-lo. Vou prestes dar uma biografia do Dr. Santa Clara, razão porque rogo a V. Exa. algumas fotografias do mesmo, da sua habitação, etc.
Creia-me V. Exa.
Muito Att.e e Adm.dor
António Sardinha
»
As viagens a Elvas e as suas cartas continuam com propostas editoriais, que, creio bem, não chegaram a ser efectuadas. Para Torres de Carvalho são sempre dirigidos os seus escritos.
«Illmo. e Exmo. Senhor
Tendo devidamente compiladas para dar à estampa todas as poesias conhecidas de António de Sousa Maldonado, que suponho ainda parente de V. Exa., venho propor-lhe, Illmo. Exmo. Senhor, a sua edição.
O Senhor Dr. Teófilo Braga, a cuja opinião as submeti, afirmou-me que a sua publicação seria um belo serviço, pois constituiriam um altíssimo documento da poderosa influência literária de João de Deus.
São precedidas dum breve estudo biográfico da minha lavra, que saiu no último número da Revista de O Século, onde V. Exa., o poderá ler, tomando na devida conta horrorosas gralhas que o deformam quase por completo.
Estou crente que V. Exa. não deixará de anuir, tanto mais que segundo me consta, já em tempos esteve para o fazer. É atendendo a isso que em primeiro lugar me dirijo a V. Exa., e também a não temer as explorações do costume, de que usam e abusam os nossos editores, que só pegam no que cheire a escândalo e em mais nada quase.
Eu desejarei apenas da amabilidade de V. Exa. alguns exemplares para oferecer a amigos e escritores das minhas relações. Depois a venda do livro há-de ser razoável —sempre é poeta morto! E com meia dúzia de artigos de boas firmas pelas quais me responsabilizo, a despesa estará garantida.
Brevemente terei ensejo de oferecer a V. Exa. um exemplar de um estudo histórico sobre o Poeta Cristóvão Falcão; que com prefácio de Teófilo Braga está nos prelos da casa editora do Porto, Lello & Irmão, e outro dum livro de versos, também prefaciado, e por Eugénio de Castro. Então pedirei a V. Exa. permuta com as obras do mestre Dr. Francisco de Paula Santa Clara, recentemente publicadas.
Sem mais, aguardando o favor duma resposta breve
Sou com toda a consideração
Att.º Vend.or e Obg.do
António Sardinha
»
Os desmandos da República estão no auge. Se consultarmos o Correio Elvense lá vemos Torres de Carvalho a dar guarida e louvores ao regime a que aderira desculpando-os, ou por outra esquecendo-os. Sardinha vai-se desiludindo.
«Vamos a ver! O que me choca são as intolerâncias. O assalto à redacção do Ilustrado envergonha um partido republicano».
«».
Meu prezado amigo
Remeto-lhe a versalhada que me pediu. Como outro dia lhe anunciava, não é uma coisa declamatória nem chauvinista. É um apelo à alma da terra por um povo de lavradores, que lavrando e cantando fez a sua história. Lavrando a charneca ou cortando as águas do mar — o que se equivale. Ora pois.
Dado o meu temperamento de lírico e a orientação que preside à minha Arte, outra coisa não se poderia esperar de mim. Ficará satisfeito?
Não sei, quem dá o que tem mostra o que deseja! Outro dia com a pressa com que lhe escrevi não lhe agradeci nem devolvi os seus desejos para comigo em face do ano que entrava. Faço-o hoje e muito calorosamente. Ajunto-lhe os meus cordiais parabéns pela justiça que fizeram, nomeando-o para essa administração. Bem sei que o cargo, no actual momento, é de responsabilidade. Mas é um motivo para me aplaudir como seu amigo que sou, pois tenho a certeza do belo lugar que vai fazer.
Aceite, pois, um apertado abraço.
Quanto às coisas políticas sinto-me descontente. Esperava mais! No entanto, não descri. Vamos a ver! O que me choca sempre são as intolerâncias. O assalto à redacção do Ilustrado envergonha um partido intelectual como o partido republicano.
Se houver de imprimir a poesia peço-lhe provas.
Estou aqui até 15 à tarde.
Um abraço do seu amigo certo
António Sardinha

Tomás Pires era outra afeição de Sardinha, em Elvas.
Convivera com ele e aprendera-lhe as lições. A morte do coleccionador das Cantigas Populares Portuguesas vai achá-lo em Monforte, a vila dos três castelos, como ele canta, já formado em Direito, casado e relacionado com os projectos do Integralismo.
A caligrafia desta carta é segura, inclinada à esquerda, rápida, nervosa e varonil, largamente desenhada. Reparando nesta forma de letra e no seu último manuscrito ninguém nota diferença. Parecem da mesma data.
«Meu caro Amigo
Não me demoro a dizer-lhe a impressão profunda com que recebi a notícia inesperada do falecimento do bom António Pires. Dou-lhe os pêsames pela perda que duplamente hoje deploro — como elvense e como amigo. Eu não fui ao funeral porque não soube do triste acontecimento a tempo de partir. Por meu sogro conheço a maneira como Elvas se portou para com esse seu ilustre filho.
Indigna e obscurece o coração roubando-nos o desejo para tudo. É meu fim prestar ao morto a homenagem que lhe devo. Venho pedir-lhe por isso a primeira página do seu jornal para o número de sábado a oito dias. Quero escrever um largo artigo em que estude a obra do nosso querido amigo e lhe assinale o seu altíssimo valor nacional. A crónica do meu Amigo Hipólito Raposo na próxima segunda-feira no Diário de Notícias é-lhe também consagrada. Não haverá um retrato capaz para eu o fazer sair no mesmo jornal?
Pode o meu Amigo no próximo número do seu jornal anunciar a saída dos dois artigos.
Monforte, 7-VIII-913
Com um cordial aperto de mão,
Seu amigo certo
António Sardinha
».
A distância entre António Sardinha e Torres de Carvalho vai-se estabelecendo.
Este fora companheiro de Afonso Costa, no Curso de Direito em Coimbra. As suas convicções romântico-liberais não atingiam o trilho de Sardinha. Fora um dos primeiros administradores republicanos do concelho de Elvas. O regime parecia consolidar-se. Ninguém percebia onde Sardinha queria chegar. O seu grupo, que havia de exercer tamanha influência nos destinos da Nação, esse sim, sabia o fim que pretendia.
«Meu prezado amigo
O artigo sobre Tomás Pires excedeu as marcas duma simples comemoração de jornal e vou-o concluindo agora com mais de cinquenta linguados. É a apreciação da obra do morto em face do movimento nacional que a nova geração levanta sob o título de Integralismo Lusitanista. Como a promessa lhe está feita diga-o o meu Amigo se mesmo com essas dimensões o quer. Ao seu jornal lhe pertence. E no caso afirmativo sairá num número ou dois — como melhor puder — fazendo-se uma separata a seguir — claro que por minha conta. O meu Amigo decidirá desculpando-se para com os seus leitores de qualquer forma no número próximo.
Sabe que o Teófilo Braga num dos últimos livros — a Idade Média (recapitulação 5.ª) faz a Vasco de Lobeira uma referência extensíssima?
Monforte, S. C., 15-VIII-913.
Sem mais
Seu velho amigo e agradecido
António Sardinha
».
Com esta correspondência cava-se mais fundo a diferença entre a maneira de pensar de Torres de Carvalho e António Sardinha. Este combate por uma ideia contra-revolucionária. Carvalho tem por cima da sua secretária o retrato de Vítor Hugo. Não apreende os voos de inteligência desse rapaz que vive a batalhar nas hostes das letras portuguesas.
«Meu bom Amigo
Estou com um forte ataque de influenza que mal me deixa associar duas ideias — são justos os motivos da sua ponderação. No entanto sem deixar de os reconhecer eu prefiro não publicar o artigo a modificar-lhe uma só palavra.
Desde que o meu espírito se desembaraçou das mentiras liberalistas, eu não me prescrevi outro dever que não fosse o combatê-lo. Sem dúvida que António Tomás Pires nunca atribuiu à sua obra o intuito integralista que a nova geração lhe confere. Mas como escritor de tradição era natural que se decidisse entre duas ideias em choque. Republicanos se diziam com Rocha Peixoto e Severo os principais trabalhadores da Portugália. Todavia se algum dia se alevantar o edifício que eles delinearam, só com a monarquia pura será possível. Também não é um propósito de ataque a referência a esse embusteiro literário que é o sr. Abílio de Guerra Junqueiro, mimoso poeta de Freixo de Espada-à-Cinta. Eu quero significar com essa alusão a faina desnacionalizadora dos nossos literatos encartados, enquanto o grupo modesto dos folcloristas nos salvava da perda total das riquezas tradicionais tão somente.
Dou-lhe estas explicações porque mas merece. Quanto ao facto de dizer mal da república, bem pior se tem dito nas colunas de A Fronteira que é um periódico mais militante que o seu. De resto como o meu artigo ia assinado, uma nota da redacção alimpava de qualquer juízo menos certo o meu Amigo. Mas eu respeito os seus escrúpulos tanto mais que não faltaram a António Tomás Pires homenagens condignas. Mas não respeito menos a integridade do meu pensamento e das minhas convicções.
Eis porque — repito — prefiro ficar no silêncio a alterar uma expressão só que seja da minha prosa.
Agradeço-lhe a sua lealdade e desculpe-me a maçada inútil que lhe preguei.
5-4-914.
Sem mais e com cumprimentos
de minha mulher
seu amigo certo e grato
António Sardinha
P. S. — Não recebeu a Nação Portuguesa?
A. Sardinha
»
Em Dezembro de 1917 a revolução de Sidónio Pais triunfa e Afonso Costa vem para Elvas, como prisioneiro. Como isso já nos parece distante!
É da história local que nos temos de socorrer. O jornal Vida Nova, jornal das direitas, relata o acontecimento assim:
«Afonso Costa. Vindo em comboio especial, chegou debaixo de uma escolta sob o comando de um subalterno, a esta cidade, o chefe da formiga branca, que ficou internado numa dependência do Forte de N. S. da Graça. Na estação ninguém o esperava e até hoje não nos consta que algum dos seus administradores desta cidade se tenha informado do estado do heróico defensor da guerra.
É momento oportuno para lembrar à autoridade competente que a Exma. esposa do ex-presidente de ministros tem feito chegar às mão do prisioneiro umas malas que pelo seu excessivo peso se tornam suspeitas. Olho vivo; olho vivo e pé leve é que a guarnição do forte da Graça deve ter
».
A Fronteira, semanário republicano democrático, opõe-se, grita, combate e conta-nos como chegou D. Alzira Costa: «No comboio de quinta-feira passada chegou a esta cidade a Exma. Senhora D. Alzira Costa, esposa do sr. Dr. Afonso Costa, acompanhada dos seus extremosos filhos. Da estação ao Hotel Central, onde se encontravam hospedados, foram os ilustres hóspedes conduzidos no landau do sr. Raul Rebelo, que acompanhado do sr. António Henrique Pinto os esperou na gare do caminho de ferro.»
Das grades do seu cativeiro o ex-presidente de Ministros, como ironicamente lhe chama o Vida Nova, contempla uma cidade em que ele talvez não tivera nunca reparado. Os influentes locais agitam-se. Do Hotel Conceição, sua esposa escreve cartas para os jornais desmentindo boatos. Torres de Carvalho lembra-se agora do seu companheiro dos bancos da Universidade e manda-lhe livros da sua editorial. Os agradecimentos de Afonso Costa são do seguinte teor:
«Exmo. Sr.
António José Torres de Carvalho
Meu caro antigo condiscípulo:
Agradeço-lhe muito a amável e valiosa oferta das suas excelentes edições da Jornada da Universidade de Coimbra, muito curiosa e digna de apontar-se aos nossos contemporâneos, do Cancioneiro Popular Político, que também contém esclarecimentos para certos rumores de hoje, semelhantes a algumas trovas de outrora, dos Sucessos de Aires de Varela, que estou lendo com emoção, e dos Capítulos do Concelho de Elvas, em que certamente encontrarei um eloquente testemunho da nossa vida municipal de outras eras.
Terei muito prazer em o abraçar como antigo condiscípulo, que já não vejo há tantos anos.
Pedia-lhe ainda o favor de me emprestar da sua biblioteca particular ou da Câmara qualquer publicação ou memória descritiva sobre este Forte da Graça, e ainda os seguintes livros:
— Estudos e Notas Elvenses, de Tomás Pires;
— O volume da História de Pinheiro de Chagas que se refere às nossas guerras com a Espanha de 1640 a 1667 (creio que é o 10.º ou 11.º); e
— O Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins.
Se sair daqui directamente para a liberdade, irei visitá-lo, e aproveitarei a ocasião para lhe pedir que me mostre as antiguidades, as muralhas, os monumentos e o Museu Arqueológico.
Com um abraço, sou, seu Ant.º
Cond.º e const.º amigo,
Afonso Costa
».
Numa cidade de Província, como é Elvas, estes assuntos tomavam aspectos belicosos. À distância em que os vemos hoje têm o sabor das memórias jornalísticas de Correia Marques.
Mas se Elvas pode ser tomada como cidade de Província, é inconfundível sob outros aspectos. A sua situação fronteiriça, ela mesma armada em praça forte, povoada por regimentos que dominam toda a vida quotidiana, dava-lhe e dá-lhe ainda hoje importância de primeiro plano na vida da Nação.
Quando refugiado em Portugal, Marcelino Domingo avistava, acompanhado, das ameias do castelo, o forte da Graça — é sempre José Telo o nosso companheiro de elucidações — mostram-lhe o citado monumento acrescentando: — daqui saem todos para as cadeiras do Ministério! Marcelino vai para Espanha com a República triunfante e manda um telegrama a José Telo onde dizia: «El fuerte me ha dado buena pata». Tem sabor a anedota e alguma coisa mais está nas entrelinhas disto tudo.
Não admira pois a atenção que Elvas merecesse a Sardinha. Afonso Costa, preso, quer saber-lhe a história. "No Forte da Graça" era o título da resposta com que Sardinha o acusou. Não conheço maior libelo histórico do que esse. Nunca Sardinha foi tão violento, nem mesmo quando acusava Junqueiro ou Teófilo, ou demonstrava como traição os feitos de Gomes Freire de Andrade.
«Mas que dirão essas páginas — escreve, referindo-se à história de Elvas — a um estrangeiro da nossa tradição, que outra coisa não fez durante uma existência perdida senão desmenti-la e espezinhá-la? Debruçado das varandas da sua cela, Afonso Costa há-de sentir que toda a paisagem o acusa, e cresce para ela, interpretando o sentir de quantos passaram e na pedra morena da velha cidadela fronteiriça deixaram insculpidos o seu gosto heróico em serem obedientes até na sepultura. Assim, se na meia sonolência da sua sensibilidade moral, as leis supremas do sangue podem erguer ainda a voz, Afonso Costa talvez se esteja a estas horas confessando a si próprio como réu de traição imperdoável.»
Sardinha era assim violento. Ai de quem lhe caísse nas mãos como adversário!
Torres de Carvalho, o primeiro a amparar os passos literários desse adolescente que chegaria a águia real, não previra o alcance dos seus voos. Hoje era ele (aquele que lhe pedia conselhos e notas e espaço para os seus artiguelhos de principiante) a dar-lhe lições de cátedra.
É possível que sua velhice se tornasse azeda. Ele Torres de Carvalho que falhara e que ali estava resumido a secundária tarefa de coleccionador de papeis, sem saber sequer tirar ou prever o alcance transcendente da sua própria missão, ele Torres de Carvalho, ia eu dizendo, estava ali naquela casa forrada de livros, no meio de pó, com o retrato de Vítor Hugo por cima da secretária e as recordações dum autógrafo de Zola a fazerem a admiração dos visitantes. Era simpático este homem, mas impotente para acompanhar e compreender a personalidade de António Sardinha.
À distância de uma dúzia de anos, após a morte do autor da Epopeia da Planície, quando perguntei a Torres de Carvalho por ele, mal compreendi o que se passara através das suas respostas.
As cartas da sua correspondência foi, com a ajuda de alguns — José Telo já citado — que conheceram bem quer Sardinha quer Torres de Carvalho, quem me decifrou o comentário da primeira tarde que passámos juntos — eu e o Torres de Carvalho.
É possível que estas questões provincianas não tenham interesse de maior. Mas se o Chiado é Portugal — como o afirmou o nosso Forjaz Trigueiros no seu duelo de carapinhadas com o José Régio — saiba-se por lá também que nós, os provincianos, temos que nos entregar a um passatempo favorito — ou palavras cruzadas, ou jogo de azar, ou estudo de dialectos, ou ainda colecção de armas brancas — como diz o Régio no Príncipe com Orelhas de Burro. Eu dei-me a essa deambulação: averiguar, analisar e comentar as cartas de António Sardinha. Em vez de ir às montras da Portugália, às Exposições do S.P.N., aos concertos no S. Carlos, ando por aqui por esta cidade de Elvas...
E no mês de Janeiro em que estamos! No aniversário da morte de Sardinha!
Tudo o que fica o é em louvor da sua memória, pelo interesse que nos merece — tudo por bem se faz e se escreve, saibam outros, sem ser os do Chiado, que não é só por passatempo.
Elvas, 10 de Janeiro de 1943.
Azinhal Abelho
In «Acção», n.º 101, págs. 3/4, 25.03.1943

ELVAS — QUINTA DO BISPO

Elvas, oh! Elvas!
Badajoz à vista...
E a paisagem desenrola-se numa melancolia latina, com manchas de tonalidades secas, côr de cinza, próprias deste mês de Agosto.
Quem avistar Elvas avista Badajoz; Olivença, nossa irmã de sangue a dizer-nos adeus da outra margem do Guadiana; Campo Maior, a terra mais quente de Portugal; Vila Boim, a terra boa onde nada é ruim, e outras urbes secundária do Alto Alentejo a branquejarem na tristeza do Suão.
Elvas, chave amuralhada do Reino, é ponto de partida privilegiado. Três estradas importantes, saindo de três portas armoriadas, portas seculares, talhadas em blocos de pedra, que são a cédula pessoal desta cidadinha que apetece trazer ao colo.
Cada cidade tem uma ou meia dúzia de imagens que fazem o seu ex-libris, que a diferenciam, que nos acodem à memória mal a relembramos. Elvas, além da latinidade, que a torna irmã-gémea de Évora, de Cáceres, de Toledo e de Beja, tem as ruas estreitas, perfumadas, ruas que ainda hoje se cobrem de espadana e rosmaninho na procissão de S. Jorge, ruas que nos evocam a contenda do Hissope, por onde decerto passaram os partidários do Deão e do Senhor Bispo. Mais do que elas só as muralhas, nobres castelãs cobertas de verduras, que pendem como enfeites sumptuosos. Pelas portas já citadas, que em tempos idos estavam vedadas às arremetidas belicosas dos inimigos, deslizam prosaicamente as camionetas ajoujadas de passageiros utilitários. De vez em quando um turista, mas só um. E esta cidade bela merecia também a sua atenção. A paragem é sempre num café, debaixo duma arcaria, café que bem podia ser típico e ter outro rótulo. Baptizaram-no de Internacional só porque ali estacionam às vezes gentes de Espanha. Peninsular é que seria o verdadeiro e mais condizente apelido. As muralhas, íamos nós dizendo, cercam Elvas e o Aqueduto da Amoreira leva-lhe a água através da arcaria monumental.
Mas quem vai a Elvas tem de ir à Piedade, para cumprir o programa da cantiga popular, mais um cartaz turístico do que desabafo de descante. De facto, aquilo que é a prenda mais bonita da cidade.
E se forem, como eu fui agora, à Piedade, peçam, como eu pedi, alguém que os leve à Quinta do Bispo.
Eu não sei se este nome está popularizado entre os que tratam de escritores em Portugal. É possível que sim. Já tantos têm falado dela!
Quinta do Bispo, como S. Pedro de Muel, S. Miguel de Seide, Vale de Lobos, Belinho, Torre de Anto, são paragens que estão ligadas à literatura portuguesa.
Quinta do Bispo foi moradia de mestre António Sardinha, «aquele bom português» que segundo a lápida do aqueduto «amou e muito serviu» esta cidade.
Entrámos silenciosamente. Aquela voz mansa, companheira do mestre durante a sua vida de casado, acompanhou-nos na peregrinação.
O escritório em que o poeta da Epopeia da Planície trabalhava está ainda na mesma.
Dir-se-ia que o tempo, desde 1925 para cá, desde esse Janeiro trágico, nunca mais andou. Os mesmos retratos, os mesmos livros, a última carta escrita ao Troveiro amigo da Praia de Muel, a última página do livro que não chega nunca mais a ser lido até ao fim, tudo, tudo permanece saudosamente estático, numa suspensão que não sabemos se inda é vida, se é já morte. O que se conclui facilmente é que esta oficina nunca mais serviu a ninguém. A tarde tomba enquanto nós falamos. As alas de buxo e as folhas dos lilazes e glicínias agitam-se através dos vidros. E voltamos atrás, folheamos datas, recordações desse 1925, quando Portugal estava à beira do abismo. Voltamos à época de inquietação que deu motivo à brilhante cruzada do Integralismo Lusitano.
Os frisos dos soldados ali estão todos alinhados em efígie: Almeida Braga, Hipólito, Pequito, Alberto Monsaraz, Lopes Vieira, Alexandre Cabeças e muitos mais. Não faltam até grandes de Espanha. Se nos for permitido ler os frontespícios dos livros das estantes, lá vemos o testemunho da época nas dedicatórias de inúmeras admirações de Eugénio de Castro, nos Oaristos, nas Cartas de Torna Viagem, com uma consagrada a Elvas, até Manuel Ribeiro, o mais novo na chegada, com a sua conversão religiosa que deu brado. Mas Sardinha esteve exilado. Quase que íamos a escrever — esse bendito exílio. De facto, só a dor permite a criação. Do pão do exílio trouxe o escritor a sua lusitanidade mais requintada, mais aguçada. Foi da deambulação forçada por terras de Espanha que nasceu a Aliança Peninsular, tão mal compreendida nesse tempo, e de que um discípulo seu, o embaixador Pedro Teotónio Pereira, está seguindo a trilhagem deixada pelo mestre.
Sardinha chorou lágrimas de sal e sangue na Casa del Greco. Sim, chorou, e dessas lágrimas nasceu o cântico lírico de Na Côrte da Saudade. Ninguém, como o mestre, soube evocar Toledo. «É cada pedra uma alma e cada alma um segredo...»
Em poucos escritores há uma obra tão unitária como em Sardinha. Veja-se o início, na dissertação do Valor da Raça, até Ao Princípio era o Verbo, até aos seus poemas da Chuva da Tarde, da Epopeia da Planície ou do Roubo da Europa. Há sempre a mesma voz cristã, o mesmo saudosismo das eras do apogeu, confiando cegamente nos destinos da Pátria.
A casa dum intelectual, dum artista criador, poeta, músico ou pintor, é, tanto mais do que a sua obra, a síntese da sua alma, da sua sinceridade. O cenário da nossa torre de marfim, que às vezes é perfeita torre de Babel, é tão necessário para o espírito como o pão para a boca. A casa de António Sardinha, aqui, na Quinta do Bispo, era o complemento da sua obra.
Cá estão os retratos de Carlota Joaquina e de D. João VI, reabilitados por ele, cá se encontram os tapetes de Arraiolos, os pucarinhos de Estremoz, os cobres portugueses, as jarras, os móveis, os panos, tudo a respirar lusitaníssimo bom gosto.
Nem outra coisa era de esperar do maioral e mentor do Integralismo Lusitano.
Afirmou-me a Esposa do Mestre que aquela Casa era o ideal para ele. Só de vez em quando lhe dizia: precisava que ela tivesse uma porta para o Chiado, por causa dos amigos. Sim só por causa dos amigos, porque de resto a paisagem, o ambiente de cristandade franciscana, que por ali paira, deviam satisfazer-lhe as aspirações espirituais necessárias às suas tranquilas meditações.
Foi-lhe possível então extrair das coisas a lição de sensibilidade, profunda, imprescindível. Dessa forma nasceu o mestre que dissertava sobre a linguagem das pedras do aqueduto de Amoreira; não só pela cultura mas também por isso, pela sua emoção histórica, a sua capacidade conseguiu fazer nascer luz sobre factos que pareciam assentes. Assim a personalidade poética de Junqueiro, a preponderância intelectual de Teófilo Braga, o vulto de Gomes Freire e, mais do que isso, a resposta a Afonso Costa, quando esse enclausurado no Forte de N.S.ª da Graça pretendeu conhecer a História de Elvas, tudo Mestre Sardinha analisou sob um critério que revelava os pés de barro dos ídolos endeusados do Liberalismo.
António Sardinha foi bom português, como dizem as letras da lápida do Aqueduto de Elvas, como dizem os seus poemas, os seus ensaios e como diz esta sua casa, lar verdadeiro, exemplo da família portuguesa.
Esta Elvas, senhores! Esta Elvas, depois de tudo, desta paisagem, deste casario, desta melancolia, desta latinidade castiça, depois de tudo, ainda tem a mais a casa onde António Sardinha viveu, e que é uma grande lição.
Oh! Portugueses! Oh! português que foste aprender a Belinho e em S. Miguel de Seide o que era e como era a província do Minho; tu, que vais a S. Pedro de Muel ouvir as palestras dos búzios de Afonso Lopes Vieira sobre o mar das descobertas e sobre o pinhal do Rei, vem, vem também aqui ouvir o mestre da Epopeia da Planície. Ele ainda está ali vivo, na sua mesa de trabalho a escrever a sua última carta. Ana Júlia, a excelente chaveira desta pousada «que tem um ar de igreja», está lá, sempre vigilante. Enchem-se-lhe os olhos de água quando perpassam nas suas falas as sombras históricas que ali moram. Oh! a jornada de Monsanto! O Natal do exílio em Badajoz! Os jogos florais salamantinos! Enevoa-se-lhe o parecer, mas depois, com gentileza fidalga, aos fiéis à memória do Mestre, os portões da Quinta do Bispo abrem-se sempre. E merece a pena. A emoção é tão grande!
Azinhal Abelho
In «Acção», n.º 38, pág. 5, 08.01.1942

sábado, novembro 27, 2004

A tasca do bloguista

Se algum compadre se perder por estas bandas de Machede e lhe chegar a vontade de dar ao dente, ou só de petiscar e dar de beber à dor, não esqueça: o Sulitânia, casa de comes e bebes, sucursal do Alentejanando.
Blogar é preciso, mas há mais vida além da blogosfera: provem e digam de vossa justiça, ao blogueiro responsável, que ele gosta de críticas e sugestões.

O blogue do crítico

A quem siga as controvérsias do PCP e tenha visto as notícias de hoje recomendo a visita ao blogue do autarca em foco no congresso: ALVITRANDO, do Lopes Guerreiro que falou esta manhã no congresso. Da Vila de Alvito, pois claro.
Pode sempre ler as teses em primeira mão!

Lembrar o 1º de Dezembro

Em Évora, que não se atrasem os interessados, de perto ou de longe, a contactar o sítio dos Antigos Alunos do Liceu Nacional de Évora.
Em Lisboa, lembrem-se das cerimónias nos Restauradores: contactem o Grupo dos Amigos de Olivença, e juntem-se ao grupo. Pela terra alentejana de Olivença.
Em Lisboa, ainda, é preciso aderir às actividades promovidas pela Sociedade Histórica da Independência de Portugal (é uma vergonha mas realmente ainda não tem um mísero sítio na internet!). Dirijam-se todos directamente ao Palácio da Independência, no Largo de São Domingos, junto ao Rossio (entre os edifícios do Teatro D.Maria II e da Ordem dos Advogados). Ao menos conheçam o Palácio.
E antes que me esqueça: no Alentejo mais profundo o Dia da Restauração vai ser assinalado condignamente, como é tradição, na aldeia heróica de Santo Aleixo da Restauração!

Exposição no Pró-Évora

Hoje às 18 horas, na sede do Grupo Pró- Évora, na Rua do Salvador n.º 1, será inaugurada uma exposição colectiva de gravuras, promovida pela Associação de Gravadores de Évora.
Ficará aberta ao público de 27 de Novembro a 12 de Dezembro.
Se não sabiam agora já sabem. Ficamos à espera da visita.

"O Bloco é a esquerda de Cascais"

Caracterização do Bloco de Esquerda segundo um militante do PCP entrevistado pelo "PortugalDiário": "São o partido da moda, a esquerda de Cascais. Nunca vi ninguém do Bloco de Esquerda na fábrica onde trabalho. Eles não falam com os trabalhadores. Como se diz agora, o PCP e o Bloco não têm o mesmo "target". Eles falam com uma juventude que em vez de um "Game Boy", quer outro jogo de computador."
O Dr. Louçã e o Dr. Portas poderiam replicar que também nunca encontraram nenhum labrego da fábrica onde este trabalha nos bares do BA onde se reune a malta do Bloco. E a única vez que apareceu um com aspecto disso lá na sede do Bloco cheirava a suor que tresandava e tinha as unhas que era um nojo. Perceberam, ó seus cavernícolas? Sectários!

FADO PESSOA

Anda, Pessoa:
anda-te deitar...

A noite e Lisboa
já deram, por hoje,
o que tinham a dar.
Olha a Madragoa,
quase a madrugar...!
Anda, Pessoa:
anda-te deitar...

Caminharmos à toa...,
andar por andar,
no teu passo, Pessoa,
assim..., devagar...
bem vês que destoa,
faz mal, se calhar...
A idade não perdoa,
e começa a esfriar...
Onde, uma canoa,
para divagar?...
Anda, Pessoa:
anda-te deitar...

Também não é boa
a ideia vulgar
de jogar car`ou c`roa
num retiro ou num bar.
O fado atordoa,
dá-nos que pensar...
E é tarde, Pessoa,
para passear,
é tarde: Lisboa
`stá mesmo a acordar!
A vida ressoa
e já agora povoa
o cais e a gare.
Olha a Madragoa,
quase a madrugar!...
Anda, Pessoa:
anda-te deitar...


Rodrigo Emílio
(In Viola Delta, vol., XXVIII,
de Janeiro de 2000, pág. 41.)

CARTA DO CANADÁ, por Fernanda Leitão

A FIDELIDADE DO POVO
Os portugueses vão a caminho de celebrar 800 e muitos anos da sua soberania, graças à coragem despojada, audaciosa e rara dum príncipe, D. Afonso Henriques, que decidiu pôr termo ao jugo castelhano sobre a velha Lusitânia, antes optando por colocar o novo país ao serviço de Deus. Não degenerando quem sai aos seus, bem podemos dizer que o príncipe rebelde honrou a memória de seu tio-avô, São Bernardo, esse santo que, de facto, foi quem iniciou a construção da Europa, por muito que o negue e risque em constituições que o diabo dá e o diabo leva um Giscard d´Estaing ou outro criado de quarto da maçonaria. Um povo assim nascido fica marcado para sempre com a centelha do céu. Pode andar tresmalhado uns tempos, tresnoitado por ladaínhas de políticos manhosos que sempre deslumbram quem tem gerações de mau passadio atrás, mas acaba por acordar e ficar sempre do lado da Pátria que a Deus foi oferecida à nascença.
Traír, em Portugal, nunca o povo traíu. Isso de traição é para os das altas esferas que, por dinheiro ou bastardos interesses políticos internacionais, algumas vezes se desgraçaram, e nos envergonharam, indo pela calada oferecer o país à Espanha ou aos impérios que trabaham a petróleo, como os fogareiros antigos, e que por isso engasgam e depressa rebentam. Perdidos, desgraçados, traidores, nunca entre o povo os houve.
O homem do povo, mesmo quando emigra e fica longe muitos anos, leva consigo os valores de Pátria, neles incluídos os da educação religiosa, que guarda sem desfalecimento e transmite às gerações que o sucedem. São estes os verdadeiros batedores culturais de Portugal, na maior parte dos casos ignorados, ou mesmo espezinhados, por uns intelectuais de torna-viagem que, por vaidade e cupidez, se vendem por qualquer prato de lentilhas e, por isso mesmo, são impingidos às comunidades emigrantes através dos consulados, das embaixadas, dos leitorados, dos serviços de comércio externo.
Quantas vezes, nas mãos destes mercenários, a Língua e a Cultura não se transformam num farrapo, onde limpam as mãos, ou num trampolim de circo, donde saltam de poleiro em poleiro.
Estas reflexões assaltaram-me de forma acutilante ao assistir ao 18º Ciclo de Cultura Açoriana que, recentemente, teve lugar no belíssimo salão da Casa da Madeira, dirigida por pessoas que puseram o maior brio e gosto nesta jornada do espírito. Dezoito anos seguidos a organizar e realizar um ciclo de cultura por onde têm passado larguíssimas dezenas de cientistas, pensadores, escritores, artistas, artesãos, autarcas, jornalistas, homens de boa vontade que dão o melhor de si às suas Ilhas, e realizá-lo com orçamentos frugais, às vezes quase ridículos, porque orçamentos largos são em geral para as manifestações partidárias encapotadas debaixo do manto cultural estendido pelos tais intelectuais de serviço à situação política, realizar eventos nestas circunstâncias é uma tarefa dolorosa e arriscada como não se calcula. E no entanto, este Ciclo de Cultura Açoriana, de Toronto, tem sido obra de um português, Manuel Oliveira Neto, o director-proprietário do jornal on line Portugal Ilustrado. É ele um superhomem? É ele milionário? É ele um freguês da gamela partidária? Nada disso. É, apenas e só, um português que, emigrado, longe da Pátria há muitos anos, guardou consigo os valores da terra e ao transmiti-los de forma genuína, demonstra que só fala do que sabe. Um açoriano, quando emigra, leva consigo uma fita de nastro, enroladinha, com o tamanho da imagem do Senhor Santo Cristo, que coloca por dentro da roupa, junto ao coração. E não se envergonha de o dizer. Pouco depois de chegar, entra para a irmandade do Espírito Santo, faz os bodos de leite, faz os desfiles do Pentecostes, com as Coroas quinhentistas, distribui as Sopas a centenas de pessoas. E tem o maior orgulho em fazê-lo.
Açorianos, continentais, madeirenses, que trabalham arduamente para sustentar a família, e não enjeitam mais trabalho nas horas vagas, e aos fins de semana, para celebrarem o Senhor da Pedra, o Senhor Bom Jesus, Santa Maria dos Anjos, Nossa Senhora do Monte, Nossa Senhora de Fátima, com procissões solenes, que por vezes de tão grandes obrigam a cortar ruas em Toronto e outras cidades, e à presença da polícia motorizada, são portugueses que têm dentro de si um grande sentimento de fidelidade. Que não sabem ser portugueses sem serem fiéis à herança espiritual e cívica que receberam.
Com estes portugueses, que são povo, a Pátria pode contar. Os mesmos que estão no interior do país. Os mesmos que vivem dificuldades imensas nos bairros das grandes cidades portuguesas. Todos eles acabarão por ser o trigo a que anda misturado um certo joio que não resistirá à peneira do tempo.
Fernanda Leitão

FERNANDA LEITÃO

Aerograma lírico de Rodrigo Emílio, com um terno aceno, a bordo, e a mais transatlântica das mágoas...

Esta voz
que nos vem
do Canadá
lutou por nós;
bateu-se bem.
Perdurará.

Foi uma chama
de fé, no mapa
da derrocada;
e clarim, até:
clarão d`alvorada!
— É uma dama
de capa
e espada.

Lá cama,
papa
e roupa lavada
na CEE,
não são calçada
para a passada
do seu pé.

Outra é a gama
da sua harpa;
outra, a toada.
— Só, e de pé,
é uma dama
de capa
e espada.

Detrás de si, traz
— sempre rapaz...,
e muito em segredo... —
a sombra do meu velho Tomaz
de Figueiredo,
a sacar da caneta,
a ripar de papel,
a embeber-se com ele
no fel do tinteiro,
e, como o Pimenta,
a arriscar a pele
p`lo Senhor Dom Miguel

e por Paiva Couceiro!...

Que mundos
imundos
tem tal madrepérola
topado defronte...!

Por isso, dá urros
de génio; e dá murros...
Por isso, anda a monte,

e a dar com os untos
nos ossos de muitos...
Daí que reponte,

por mais e mais duros
que sejam os rumos
que a Terra lhe apronte...!

Mas
surdos e mudos
é o que hoje gera
todo o horizonte...

Vivos ou defuntos
que o céu nos encontre,
— aqui juro, a pés juntos,
que estaremos juntos
em Évora-Monte!

... E até pode ser que venha a calhar
num outro lugar...

(— Tomara, tomara que fosse em Tomar...!)

Rodrigo Emílio
(Casa de S. José, em Parada de Gonta, aos 5 de Setembro de 1991.)

sexta-feira, novembro 26, 2004

Quem são eles?!!!

Verifico por este blogómetro que haverá em Portugal vinte e cinco (pelo menos, já que alguns não alinham em contagens) blogues com mais visitantes do que este.
Espelho meu, espelho meu, mas haverá algum blogue mais belo do que o meu?!!!

Rumo à imortalidade?

No seu discurso ao congresso do PCP, o secretário-geral cessante Carlos Carvalhas rejeitou que o partido "esteja condenado à morte lenta ou à morte rápida".
E sublinhou que para o partido a renovação não significa "capitulação ieológica" mas sim "renovação nos métodos, nas análises, nas respostas aos novos problemas, renovação dos seus quadros e dirigentes".
Ficou toda a gente descansada. O partido é imortal. E perpetuamente se renova.
Só é estranho que seja preciso dizer isso ao congresso.
Mas coerentemente anuncia-se que Álvaro Cunhal, que recentemente completou 91 anos, vai ser reconduzido no seu lugar no Comité Central.

A estupidez é invencível

A estupidez é um monstro cabeçudo e agressivo. Na disforme cabeçorra, inteiramente protegida do exterior por negra e pétrea carapaça, nada entra que não caiba nos estreitos canais por onde o bicho recebe do exterior a pouca luz e o escasso oxigénio que lhe mantêm vivo o rudimentar amontoado de células cinzentas que lhe comanda os movimentos.
Digo movimentos, não pensamentos; na verdade o animal não atinge aquele grau de sofisticação em que se passa a dizer que existe pensamento pensante, e antes permanece ao nível das reacções e impulsos primários, ao sabor do exterior.
Tem no entanto o sentimento interior da sua inferioridade; e dói-lhe, e sente vergonha, humilhação, perante tudo o que o transcende e ultrapassa. E então reage à humilhação, insurgindo-se e investindo contra o que sente superior, ainda que o não entenda; é o modo instintivo de combater a sensação incómoda da sua própria incapacidade.
Causa estragos terríveis, a fúria da criatura. Como se percebe do que ficou dito, o objecto da sua revolta não é senão o que o ultrapassa. Ataca e destrói por ódio puro, e sempre aquilo cujo valor inveja.
E o pior é que o monstro é invencível. Podemos sobreviver-lhe, mas vencê-lo não.

A IDEIA NOVA

Há impulsos e sentimentos humanos que nalgumas pessoas agem com mais intensidade e maior imposição. Entre eles, podemos assinalar os seguintes: o sentimento de solidariedade; o impulso para a criação activa; o sentimento da encarnação, do enraizamento e da concreção, e nele a consciência e a apologia do corpo do tempo em que se vive, da terra própria; a dupla atracção: permanência, duração e fidelidade às origens — a aventura geradora, renovação, avanço para o futuro; o gosto pelos ideais alevantados, onde o homem se espiritualiza, comunga com a Beleza e é atraído pela Verdade.
Foi principalmente a intervenção dominante destes sentimentos e sua reunião que constituíram a fonte para o novo rio: a mentalidade nova.
Deve ficar esclarecido, desde já, que esta mentalidade não é inteiramente original, desligada de antecedentes, mas, antes pelo contrário, tem (quanto a algumas das suas linhas de força ou elementos componentes) vários indivíduos, grupos, doutrinas, que a antecedem no mesmo sentido de afirmações e crenças. A diferença é que a nova mentalidade é nova por reunir todas essas tendências e pelo modo com que as reúne. Realmente, a nova ideia pode contar entre os seus precursores ou fautores agentes tão diversos como Platão, Aristóteles, os estóicos, Roma, os Germânicos, o Cristianismo, Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino, Dante, Castiglione, Maquiavel, Giambattista Vico, Fichte, Goethe, Schiller, Hegel, Schlegel, Otão III, o Papa S. Silvestre, Bismarck, Frederico, o Grande, o Socialismo, a Revolta Ideal, Alfredo Oriani, Georges Sorel, etc. Mas só a nova ideia, reclamando uma nova ordem, evidencia a uma nova luz o valor daquelas tendências e lhes dá uma significação real, ao inseri-las num corpo harmónico, lógico e vivificante.
Vejamos, pois, como certas premissas e certos propulsores conduziram a determinadas afirmações. Comecemos pelo sentimento da solidariedade. Por ele, as pessoas buscam a camaradagem, a amizade e a colaboração; por ele desprezam o egoísmo; por ele amam, como que naturalmente, como que instintivamente, as sociedades em que se criaram e desenvolveram. O sentimento da solidariedade é um dos motivos de respeito e amor às sociedades que, sucessivamente englobadas umas nas outras, se chamam Família, Nação, Continental Comunidade Geográfico-Cultural (por exemplo: Europa). O sentimento da solidariedade transmite, ainda o valor da unidade superior à multiplicidade e à dispersão; e revela o valor da História que, embora criando e renovando, também conserva unidas e coesas as sucessões através dos tempos, além de esclarecer e criar comunidades e unidades. Realmente, é um sentimento de solidariedade sentir que as gerações se encadeiam umas nas outras, intimamente; que nós estamos ligados aos nossos ancestrais e aos nossos descendentes e que somos, na carne e no espírito, produtos dos primeiros, como os segundos serão produtos nossos: que uma enraizadora força nos intensifica e uma purificadora emoção nos invade, quando damos por nós reunidos a outros e sobretudo na medida em que os outros são também nós, têm algo de comum connosco.
Muito aparentado a este, existe outro sentimento: o da encarnação e concreção. Por ele nos sentimos ligados ao limitado, à forma, ao terrenal, à parcela, ao momento, à natureza. E, ao mesmo tempo, por ele nos sentimos integrados, nos sentimos parcela reunida a outras, tonalizados por elas, inseridos num processo. Quer nos observem como sujeito, como actuante e transformador — é o primeiro caso —, quer nos observem como objecto — e é o segundo caso —, há sempre a necessidade do limitado, da forma, do terrenal, da natureza. Quando sobre tudo isto agimos para o transformarmos, aperfeiçoando-o, todo o limite, toda a forma, toda a natureza são ultrapassados pelo constante aperfeiçoamento, e eles são potencializados constantemente a sucessivos novos graus de si próprios. Também nós possuímos a nossa verdadeira realidade nesta concreção: ligamo-nos ao limitado e à natureza para os ultrapassar e fazer com que eles se ultrapassem; somos sujeito e objecto, em sucessivos termos ascendentes. Sentimos o corpo, consciencializamo-lo, pensamo-lo; e sentimos que ele é uma realidade modificável, talvez um objecto, um meio, um instrumento e um material: mas sentimos também que não devemos desprezá-lo, que não podemos anulá-lo. Sentimos, quiçá, que pensamos com o nosso corpo. Aqui temos uma concreção: o corpo. Outra é a terra, continuação do corpo, ainda. Sentimos, com entrada por todos os sentidos, com moldagens e antenas e adequações geradas por memórias físicas, sentimos a atracção da terra onde crescemos de corpo e de espírito, a atracção do sangue a que pertencemos, da família onde nos formamos, daquilo onde o eu é maior por ser nós. Eis, portanto, outra concreção: a terra, desde a aldeia ou cidade, até à província, ao país, à pátria. E outras concreções ainda: a família, a raça. E o tempo. Sentimo-nos filhos do tempo em que vivemos, filhos e pais também. Sentimos que respiramos nele o seu ar, que ele nos fornece ideias, comportamentos, gostos, sentimentos; que ele nos dá acontecimentos e proibições e acicates, que nos martela com certas coisas e nos oculta outras. Sentimos que é dentre tudo isto que nos temos de mover, que é sobre tudo isto que temos de agir, que nós e o nosso tempo estamos ligados quase como irmãos siameses.
E falemos agora do impulso para a criação activa. O Homem sente dentro de si o desejo de prolongar-se e de ser demiurgo: ter o poder, criar, ter o poder de criar — aqui está uma exigência tipicamente humana. Avaliar-se-á, pois, a qualidade humana, a fidelidade às características humanas, pelo grau de vontade criadora, de domínio sobre as coisas e sobre a estaticizante coisificação, pelo grau de acção, com a qual objectivamos, transformamos, movemos e orientamos, Mas a acção é, por natureza, contínua, porque, de contrário, passaria a acto, ou melhor, a objecto. A acção é movimento. O constante impulso humano de criar, de agir, é impulso para constante movimento. Por ele, assim, cada momento da acção é ultrapassado por um novo momento. Deste impulso resultou a consciência de que ser humano é agir constantemente, é criar, é ultrapassar a estaticidade, a conservação que não seja processo, é ultrapassar cada momento.
Com os sentimentos e impulsos já referidos relaciona-se essa dupla atracção da permanência e fidelidade às origens e da renovação e avanço ao futuro. Ambas as forças são profundamente humanas: uma quer durar, ser eterna; a outra quer criar, conhecer e englobar de novo. A primeira força relaciona-se mais com a unidade e a solidariedade: a segunda com a acção. A primeira liga-se mais ao passado, a segunda ao futuro. Uma significa paz, a outra significa luta; uma diz lar, outra diz viagem. Uma ou outra predomina, geralmente, em cada pessoa; e às vezes a tal ponto que chega a ocultar a sua complementar. Mas as duas forças são profundamente humanas, e à definição do humano pertence a igual presença de ambas elas. Pela primeira, amamos o que nos precedeu através do tempo, na casa, na Família, na região, na Pátria, na civilização a que pertencemos; por ela, amamos o que a infância nos deu, o que nos deu a adolescência; por ela, amamos o que se torna coeso e uno e duradoiro, amamos as paredes de granito que nos defendem das intempéries, a lavoura onde nos continuamos com a nossa marca, a propriedade onde nos perpetuamos com a nossa posse, os encadeamentos criados pela Natureza ou pela História, como a Família, a Província, a Nação, etc. Mas a segunda força nos impede que nos prenda, cada forma que nos feche, cada satisfação onde caiamos em rotina e fiquemos parados como coisas. Esta segunda força dá o desejo de perpétua juventude, a ânsia de descoberta, a exigência de mais além.
O gosto pelos ideais alevantados ergue o homem do domínio da Natureza bruta, liberta-o da escravidão aos instintos e faz com que ele não se reduza à satisfação das necessidades materiais, antes valorize, sobretudo, aquilo onde se reflecte o Bem, a Beleza e a Verdade. Esse gosto é espiritualidade, é a noção de que o Bem, a Beleza e a Verdade estão na luta que travamos para emergir da bruta lei da necessidade, para nos não submetermos à matéria, para nos negarmos ao egoísmo. Esse gosto é a noção de que podemos ser melhores e isso consiste em nos darmos ao que é melhor. Sabemos que a procura e a afirmação destas coisas aparecem em cada um em grau diferente, ficamos a ter consciência de um gradualismo, de uma hierarquia segundo essa procura e afirmação. Os que vão à frente são personalidade excepcionais. Os que mais lutam, que mais renunciam à egoísta satisfação, que correm mais riscos e vencem mais obstáculos — são os heróis. Deste gradualismo resulta um sentido de Justiça.
O que chamamos aqui sentimentos é também pensamento. Mas, seja como for, estes sentimentos articulam-se entre si para constituir um pensamento novo. A solidariedade e a unidade ficam livres de qualquer abstracção, por obra e graça da encarnação, da concreção e do enraizamento; e assim se exprimem em Família, Nação, Continente, etc. E estas realidades concretas ficam livres do seu egoísmo, por obra do próprio sentimento de unidade e do idealismo. É ainda a unidade e o idealismo que requerem uma autoridade que lhes seja garante. E é a solidariedade junta com a encarnação que impede a perda num futurismo desenraizado, assim como o idealismo e o impulso para a criação impedem a perda num passadismo mineralizador ou dissolvente. É também a reunião de encarnação e idealismo, e ainda a de unidade e de activismo, que dão o verdadeiro e total sentido de Justiça.
Da colaboração destes sentimentos surgiu, pois a mentalidade nova que poderia apresentar assim alguns tópicos da Ordem Nova que requer:
Cada um de nós vale na medida em que cria, em que constrói a realização dos valores mais altos; vale na medida em que se dá aos outros, ao que o ultrapassa; vale na medida em que se integra nas realidades que exprimem a unidade e a actuam. As famílias são colaborantes na Nação, como as Nações na Europa, como a Europa com outros continentes no Mundo. E, quer sejam indivíduos quer sociedades, requerem-se personalidades de excepção, o que não significa acção contra os demais ou alheada deles, mas sim a favor dos demais e potencializando-os, conduzindo-os, ajudando-os a realizar-se. A renúncia, a solidariedade, a heroicidade, o aperfeiçoamento constante são virtudes fundamentais. A Justiça Social ordena um gradualismo, uma sobrestimação do espírito, uma satisfação às necessidades materiais e espirituais do homem concreto, uma extensão destes bens a toda a comunidade, a toda a gente, uma obediência à unidade. Não se pode desprezar o contributo do passado, o legado da História, o imperativo dos mortos, nem furtarmo-nos às seduções do futuro, à ordem de constante renovação, actualização, empreendimento criador.
Goulart Nogueira
(publicado em Tempo Presente, n.º 8, págs. 3 a 7, Dezembro de 1959,e de novo em Agora, n.º 335, pág. 9, 16.12.1967)

quinta-feira, novembro 25, 2004

ANTÓNIO SARDINHA E OS QUE VIERAM DEPOIS

Recordando Múrias pai, e a sua devoção a António Sardinha, leia-se agora um outro artigo sobre o mesmo tema.

ANTÓNIO SARDINHA E OS QUE VIERAM DEPOIS
Quando António Sardinha morreu ia fazer 37 anos. Tão moço ainda, legava-nos, porém, no seu espólio literário, cinco volumes de versos publicados e material para mais quatro; cinco livros de ensaios de História e Crítica também publicados e revistos (e alguns tão complexos e extensos como Valor da Raça, o prefácio à segunda edição da Teoria das Côrtes Gerais do Visconde de Santarém, e a Aliança Peninsular) e o material disperso por jornais, revistas e outras publicações, que deram ou darão, à vontade, onze ou doze volumes.
Falaremos, primeiro, dos ensaios, — para os explicar; quer dizer: — para lhes fixar o sentido geral apesar da diversidade dos temas.
...Não lhes chamámos nós nem lhes chamou António Sardinha — ensaios, — porque se trate do género literário relativamente moderno, em que se versa um tema já de si limitado ou propositadamente circunscrito e que o autor não pensa em desenvolver ou integrar em obra de maior tomo: — trabalhos que não são, em si, verdadeiros ensaios de outras obras maiores.
Os estudos de António Sardinha foram quase sempre verdadeiros ensaios, — isto é, estudos preparatórios, principalmente de duas obras em que pensou nos últimos anos de vida: — a História de Portugal e a História da Sensibilidade Portuguesa.
Reuniria na primeira destas obras as conclusões novas, todas as erratas à História de Portugal em que assentara no decorrer dos seus estudos e de que nos deixou sinal nos seus ensaios de carácter histórico; na segunda, procuraria em primeiro lugar pôr a lume as características fundamentais da sensibilidade portuguesa, como se manifesta na Literatura, na Arte, na Cultura e até nas ideias políticas e na Cultura através da História, e sublinhar a sua influência tantas vezes inesperada, e deformada, nas Ideias, na Arte e nas Literaturas estrangeiras.
Quando a morte o surpreendeu (e nunca este verbo para casos idênticos se pode usar com maior propriedade!), António Sardinha completava as suas notas de pormenor para a História de Portugal, preparando ensaios sobre a expansão ultramarina, especialmente. Se chegasse a escrevê-los, poder-se-ia organizar hoje, a bem dizer, uma História de Portugal com trechos das suas obras, sem que se lhe pudessem notar grandes falhas essenciais.
...Porque, realmente, poucos homens, se algum houve, na sua geração, escreveram tanto, com tão sôfrega ansiedade de concluir, como António Sardinha. Dir-se-ia recear que lhe faltasse, por fim, a Vida... (Dir-se-ia, que adivinhava!)
E, contudo, António Sardinha não era espicaçado por necessidades de ordem material. Não estudava e escrevia para viver... Vivia para estudar e escrever! E para reconduzir a Nação, pela sua Juventude, à compreensão da sua missão histórica...
Satisfazia sua vocação e o gosto da companheira amantíssima, devotadíssima, que a Providência lhe destinara na Vida, — e foi a inspiradora dos seus entusiasmos, a fada benéfica que deliberadamente escolhera para si o papel de Marta (como Sardinha gostava de dizer) guardando para o Esposo o papel de Maria...
Repare-se que António Sardinha conhecia muito bem os riscos a que se sujeitava com a publicação dos seus ensaios, que outros guardariam ciosamente em esboços à espera de tempo para fazer a obra definitiva. Conhecia-o tão bem, que ao falar com os amigos e discípulos costumava chamar-lhes antes — as suas sebentas, retomando para o seu preceptorado pessoal a velha palavra coimbrã.
Riscos de toda a ordem... Até o da variabilidade do mérito intrínseco dos estudos, dada a quase precipitação com que escrevia. Até o de, às vezes, ter de sujeitar-se às imposições da oportunidade, podendo concluir-se a impressão de que se deixava levar a confusões de valores na ordem das ideias como na dos factos.
Sardinha compreendera, porém que muitos rapazes por esse País fora viviam as mesmas inquietações de espírito e tinham as mesmas dúvidas — que ele próprio ia procurando resolver para si e para os outros. (A evolução de Sardinha corresponde, por isso, à evolução do País, para o reencontro de si próprio...)
...Nunca um homem se inclinara com ternura semelhante para os rapazes cheios de ansiedades. Nunca houve maior animador, mais disposto a levantar para si a juventude, a guiá-la, incitando-a ao estudo, ao trabalho constante, pondo à sua disposição os seus livros, as suas notas, as suas ideias, — com tal desinteresse, com tais extremos de amizade e de esperança, que, ao lembrá-lo agora, quem o conheceu, mal o poderá fazer sem lágrimas nos olhos.
Eu descobri um dia a razão dessa ternura de Sardinha pelos rapazes desamparados de tudo, — somente ricos, em regra, de aspirações ou de possibilidades, que a dureza da vida poderia afogar... — e que, tendo-o ouvido, logo o seguiam com dedicação e entusiasmo: — eu o descobri ao perceber que ele diluía por nós as esperanças que perdera com o filho, que Deus lhe dera e lhe levou menino.
Ninguém jamais esperou um Filho como mais viva, mais fervorosa, (diremos) mais piedosa ansiedade: e o recebeu com mais íntima convicção de que lhe fora dado como benção do Senhor ao Lar Cristianíssimo, que formara. António Sardinha sabia que o homem só vive verdadeiramente quando, cumprindo o preceito de Deus, se prolonga... Ele esperava um Filho e desejava-o como garantia de permanência para si e para os seus mortos, — para o sangue que lhe veio às veias através dos séculos...
Por isso logo então, ao nascer Lopo, seu filho único, escrevia no admirável poema do Cântico de Sangue:

Floriu a árvore! Louvado seja
o Senhor Deus na Sua Imensidade
mais vil de que o pó do chão, oh, quem não há-de
louvar a Mão suprema e benfazeja,
da Qual é filha a própria Eternidade!
.........................................................

Louvado sejas tu que deste à minha Raça
Com mil promessas um rebento forte,
Que me tocaste com o teu sinal!
Por ti, Senhor, eu triunfei da morte,
não se extinguiu em mim o espírito ancestral.

Defuntos que jazeis em cinza e nada,
avós desfeitos em poeira fria,
vinde, acordai na cova
dentre essa sonolência enregelada!
Deus concedeu-vos um terceiro dia,
que a Árvore floriu, — louvado seja Deus! —
e em dons de maravilha se renova
p`ra duração dos Meus!


Recordam-se de que precisamente este poema era consagrado: — «Aos que depois de mim vieram»? E quem mais profundamente compreendeu algum dia o valor transcendente do mistério do Espírito que se prolonga no Sangue do passado, pelo homem que vive e luta e sofre, para o futuro?
Todavia, a formação cristã de António Sardinha não o deixava iludir-se, — e sob este aspecto, a Toada do Menino, um dos mais enternecidos poemas líricos da língua portuguesa, é incomparavelmente expressivo. O Pai, no entusiasmo de se ver prolongado, podia escrever:

Nasceram dois dias juntos,
nunca se viu coisa assim!
Nasceu um dia para o mundo,
nasceu outro p`ra mim!


Logo, porém, acrescentava:

Nasceste em roupas de preço,
— onde é que irás acabar?
Eu peço a Deus que te leve
se te não há de guardar!


...E agora se compreende a angústia de Sardinha, quando o Menino morria! Angústia de quem, de certa forma, se sentia mutilado no seu destino...

Por ti o osso sangue foi liberto
desse pavor de não me tornar a ser!
Mas quando eu via em ti um fruto certo,
quis-te o Senhor por Suas Mãos colher!

Hoje sem ti não sei se Deus me empraza
a ser eu próprio o ramo derradeiro
da árvore ancestral a que presido...


Era a limitação! E contudo não desespera... Mas quem pode apagar a dor do Pai que perdeu o filho? Se foi o filho único da casa!

O nosso sangue é antigo,
são bem antigos os meus.
Por isso louvo e bendigo
o santo nome de Deus!

Vivendo sempre do trigo
tivemos gado e lebreus.
Oh! Se te visse comigo,
a quem sairias dos teus?

Com um poder que não passa,
tu deste a prova da raça,
quando te foste do mundo!

Ó neto de lavradores,
na sementeira das dores
deitaste o rego bem fundo!


Pouco a pouco, o amor e a saudade se alargam em ternura às criancinhas... A própria dor se alarga a novas esperanças, a renovadas alegrias:

Andam crianças na rua,
— filhos dos outros, que pena!
E a minha dor continua,
mas continua serena.

Cada casal leva a sua.
(Seja o que Deus nos ordena!)
Andam crianças na rua,
— muita criança, que pena!...

Por entre vidas tão mansas,
neste caminho que eu trilho,
as mágoas medem-se a rodos!

Sorrio a essas crianças,
porque o amor do meu filho,
abrange os filhos de todos!


Não parece que pouco a pouco as esperanças que o filho lhe suscitara na alma, se vão transportando para os filhos dos outros, — como quem busca um prolongamento do Espírito mesmo que se não faça pelo próprio sangue renovado?...
Pensava, fundindo a esperança com a saudade:

Seria um moço trigueiro,
de grandes coisas capaz,
se o não levasse primeiro
quem tudo faz e desfaz!

Punha-se, a rir, prazenteiro,
mostrava um ar de rapaz
quando passava o leiteiro,
com as vaquinhas atrás.

Era a costela rural
de que nasceu Portugal
por obra e graça de Deus!

Em toda aquela alegria
via-se que ele saía
ao sangue honrado dos seus!


Esta transposição da Esperança, alargando-se do sangue herdado às gerações que iam surgindo (que ele ia vendo surgir...), explica, se me não engano, o afecto enternecido de António Sardinha pelos rapazes do seu tempo.
E explica certas afeições transitórias da sua obra...
Ele foi o precursor, — ele próprio quis ser o precursor, — duma Ordem moral e espiritual renovada. Via nos seus discípulos os continuadores do ímpeto transfigurador para a arrancada em que se empenhou...
Mas por isso mesmo é maior a nossa responsabilidade. Não começámos, — prosseguimos a longa, dolorosa, mas, simultaneamente, arrebatadora caminhada que Sardinha nos apontou. E não somos poucos os que, nas horas mais angustiosas em que é preciso decidir, perguntam de si para consigo, com quem vai continuando o diálogo patético que a morte, há dezoito anos, interrompeu:
— Seria assim?....
Acreditamos sim, — acreditamos que seria assim também com ele.
Manuel Múrias
In «Fradique», n.º 143, págs. 1/7,13.01.1944.

ADIANTE!

Mais esquecido ainda do que Manuel Maria está seu pai, o grande jornalista e homem de cultura que foi Manuel Múrias. Para amostra aqui fica um velho artigo onde ele dava conta da sua admiração por António Sardinha. Recordemos então o poeta de Monforte, através do estilo inspirado de Manuel Múrias, em palavras dadas às novas gerações.

ADIANTE!
Quando António Sardinha morreu tinha 37 anos — ia principiar a sua obra. (Não penso agora no Poeta...).
Preparava-se febrilmente para a História de Portugal, de que chegou a traçar o plano, e para a História da Sensibilidade Portuguesa; mas nem de um nem de outro escreveu sequer a primeira página. O que nos ficou e nós consideramos a sua obra são os apontamentos, as meditações, — ensaios, verdadeiramente, no exacto sentido desta palavra. Por isso chamava aos seus estudos — «as minhas sebentas».
Quem não souber isto não percebe nada de António Sardinha.
Passou anos a esquecer o que lhe tinham ensinado, como quem cura as cicatrizes de combates inúteis... Sentia dolorosamente o peso da cultura morta (não cultura), que lhe haviam imposto nas escolas sem alma. E desatou a buscar por outros caminhos, que ninguém sabia, a sua própria salvação.
Simplesmente, em vez de se encerrar no seu gabinete, acumulando notas e observações, desatento à vida que passa, egoísta e frio, António Sardinha resolveu salvar consigo as novas gerações, que surgiam entontecidas, desalentadas e tristes, sem rumo e sem esperança. E por isso ia lançando nos seus ensaios, não apenas as conclusões do seu próprio esforço resgatador — mas também as marcas da sua avançada em procurada da Verdade.
Eis porque a transformação de António Sardinha, que outro qualquer guardaria para si até que amadurecesse em frutos louros e sumarentos, ele a divulgava e proclamava para que todos aproveitassem do seu próprio sacrifício, e pôde corresponder à transformação moral e espiritual da sua época neste País.
Foi melhor assim! O seu esforço, o seu pensamento, o seu entusiasmo não ficaram enterrados com ele no cemitério de Monforte, — para onde o levámos numa romagem espantosa desde Elvas... Desciam os camponeses à estrada, a chorar e a rezar. Dobravam a finados todos os sinos das igrejinhas do percurso infindável. Os homens, que haviam sido os meeiros dos seus brinquedos infantis, saltaram ao caminho, levaram nos ombros a enterrar o corpo do companheiro morto...
E toda a gente (senhores, até os que o não conheciam!) tiveram a impressão de que alguma coisa de essencial se quebrava em Portugal.
No Brasil, Jackson de Figueiredo, que para tantos brasileiros fora o que nos havia sido António Sardinha, — escrevia ansioso:
— Que será de Portugal sem António Sardinha?...
E Afonso Lopes Vieira, com a trágica serenidade habitual dos seus conceitos, escreveria depois que, sem António Sardinha — Portugal ficou mais pobre.
Mas agora já se pode ver que não era assim. A confusão proveio de se ter julgado que a acção transfiguradora de António Sardinha terminara com a sua morte — de se ter esquecido que ele considerava a Morte a verdadeira Vida. A dúvida provinha de se não reparar que o pensamento de António Sardinha andava já então, vivo e seguro, no coração e no espírito melhor da gente nova.
Precisamente, porque António Sardinha preparava a sua obra mas não chegara a realizá-la, não era um círculo fechado ou um colete de forças — havia de ser antes, como foi, uma sementeira imensa, que o semeador não poderia ceifar, mas que outros, entretanto, poderiam tratar e defender. Uns guardariam a seara, com efeito — outros enceleirariam os grãos. Mas foi António Sardinha quem lavrou a terra e com o gesto largo lançou a semente ao longe...
E isto foi o que se não viu imediatamente. Nós mesmos, os que tínhamos a consciência de nos termos salvo por António Sardinha, sentíamo-nos desamparados e sós, sem o mestre, o guia, o animador... Sabia-se que não teríamos sido o que éramos se António Sardinha não tivesse aparecido no caminho, que seguíamos, a lidar o seu combate; e pensámos um momento que tudo se perdera, afinal...
Mas a semente lançada à terra não se perdeu entre fragas e António Sardinha, pelo que iniciara e não completou, continuaria vivo entre nós. Continuaria em nós o seu esforço resgatador...
Ele teve ainda vida para reconhecer as condições do triunfo — proclamando já a nossa vitória nos domínios augustos do Espírito. Agora, porém, será preciso ir mais longe... Será preciso guardar dos interesses, que entre nós se insinuam, a lareira acesa pela antecipação genial de António Sardinha. Será preciso fazer como se António Sardinha vivesse, não lhe tomar os conceitos como conclusões mas como princípios: — o perceber que principiámos com António Sardinha em lugar de pensarmos que nele se lançaram as fronteiras limites das nossas aspirações.
Ir adiante, sempre. Saltar, sem hesitações, por sobre os cadáveres, que dançam entre os vivos os bailados macabros dos autómatos seguidores dos mesmos ritmos — sempre os mesmos ritmos, baloiçados e tontos, monótonos, que aprenderam um dia e não são capazes de esquecer!
Estar com António Sardinha, tê-lo entre nós, não é ficar, inerte, em 1925, é recolher-lhe a herança e continuar-lha... É ser o que ele sempre quis que fossemos — Gente viva e forte, capaz de erguer e levantar alto, mais alto sempre, a bandeira que a morte fez inclinar, mas não cair.

Manuel Múrias
(In «Gil Vicente», Vol. XXIII, nº 1/2, Janeiro/Fevereiro de 1947, págs. 5/6/7)