sábado, janeiro 31, 2004

Missas segundo as tradições católicas

No rito latino-gregoriano:
Neste Domingo 1 de Fevereiro: em Fátima, às 11.30 horas, na Casa do Menino Jesus de Praga
Rua da Imaculada Conceição, n.º 8, Moita Redonda
Todos os Domingos: às 11 horas, no Priorado São Pio X
Estrada de Chelas, 29-31 (junto à Avenida D. Afonso III), em Lisboa
Segunda-Feira a Sábado: às 19 horas, no mesmo local

No rito greco-bizantino:
em Fátima, na capela bizantina do Exército Azul
Todos os dias às 10.00 da manhã

Relativismo

"Uma espécie de teósofo me disse: "O bem e o mal, a verdade e a mentira, a loucura e a sanidade, são apenas aspectos do mesmo movimento ascendente do Universo". Já nessa época me ocorreu perguntar: "Supondo que não exista diferença entre o bem e o mal, ou entre a verdade e a mentira, qual é a diferença entre ascendente e descendente?"
(G.K.Chesterton)

JUNTOS PELA VIDA

Aos meus leitores que além de ler querem fazer, e que sabem que as causas são tão precisas como o pão (um homem vale pela norma que serve), remeto-os para uma campanha vital: Mais Vida Mais Família, no Movimento Juntos Pela Vida.

Descobertas

Hoje acordei virado para as frases lapidares. Depois de Alexandre Franco de Sá, deparei com o grande Carl Schmitt: “Auctoritas non veritas facit legem.”
Ora pensem lá se ainda fica alguma coisa por dizer a propósito de direito internacional, tribunais internacionais, e temas afins.

Ballet Gulbenkian em Évora

Para duas únicas apresentações, está em Évora o Ballet Gulbenkian. A primeira foi ontem à noite, e a segunda irá decorrer hoje, sábado, dia 31, às 21.30 horas, no Teatro Garcia de Resende.
Fico contente com o facto, e deixo a informação, para algum eventual interessado que passe por aqui.
Mas não consigo evitar a crítica que se impõe, e que aliás já tem sido feita por outros (o mal é antigo).
O meu conhecimento sobre isto foi pefeitamente acidental. Vi um papel colado junto à ombreira de um café por onde passei ontem ao cair da noite. Depois, para alicerçar a minha irritação, verifiquei que o acontecimento tinha sido divulgado no final da semana finda por meio de uns míseros cartazes de formato A4 colados em quatro ou cinco locais da cidade, e estava anunciado na agenda cultural que os serviços do município distribuem de dois em dois meses.
E foi tudo. Mais nada. Mesmo um cidadão que não está entre os mais desatentos (recebo e leio todos os jornais da cidade!) não teve conhecimento atempado desses espectáculos. Nada foi feito para divulgar como merecia uma realização deste teor, que ainda por cima é um acontecimento raro no meio cultural eborense.
Repetidamente têm ocorrido situações destas: numa cidade onde poucas coisas acontecem, surgem oportunidades quase únicas para assistir a acontecimentos culturais do maior interesse artístico; e fica às moscas a sala onde se realiza o espectáculo que em qualquer capital europeia arrastaria uma multidão exigente.
Não sei de quem é a culpa, nem isso me está a ocupar agora; mas lá que é preciso pensar na questão da divulgação da realidade e da vida cultural em Évora, isso parece-me evidente.
Tão absurdo como andar a alardear realizações que não existem é esquecer a divulgação do que, ainda assim, vai acontecendo.

Paradigmas

No Caminhos Errantes, o fulgor de Alex: "O señorito satisfecho de Ortega, com as suas virtudes (que as há) e os seus defeitos, é hoje, em todo o lado, um paradigma - o paradigma de vida".
A frase fez caminho e agitou os meus neurónios, um tanto perros, despertando uma revoada confusa de imagens associadas.
Querem ver que Santana Lopes (o "Kennedy português") é capaz de ganhar as eleições?

sexta-feira, janeiro 30, 2004

O Rui Povinho

O Rui é português. Nasceu e vive em Portugal. Sempre viveu em Portugal. Portugueses são todos os seus. Fala e escreve em português. Sempre falou e escreveu em português. Vibra e sofre com os problemas dos portugueses. Aliás, é um apaixonado pela coisa pública: não passa um dia sem que recorde a inépcia da governação que temos, o desastre das nossas finanças, o desconchavo da nossa economia, o miserabilismo da nossa cultura, o baixo nível das nossas élites, a decadência irreversível da nossa sociedade, o inevitável “finis patriae”. Zanga-se com a Pátria, renega esta choldra, resmunga e pragueja, despreza a gentinha inculta e mesquinha que povoa o rectângulo, descrê de qualquer mirífica regeneração. Proclama solene que desconhece o que seja identidade nacional. Diz que não há perigo espanhol – porque eles não querem isto, nem nós merecemos tanto. Aponta com admiração e êxtase para o progresso americano, a democracia inglesa, os filósofos austríacos, os êxitos espanhóis, o milagre irlandês, o whisky escocês.
Palavras para quê? O Rui é o retrato castiço do português típico.

Azares e incompetências

De passagem estive a olhar para os títulos. Então não querem lá ver que uns meliantes andaram a assaltar a Rita Salema? Não se admite! Já aqui há uns tempos tinham assaltado a Lídia Franco, e foi uma bronca de todo o tamanho. Isto é mais do que azar: é burrice e incompetência. Aconselho os rapazes a terem o cuidado de verificar muito bem a identidade dos assaltados, porque erros destes prejudicam grandemente toda a classe.
Desde que tenham o cuidado de só assaltar cidadãos desconhecidos, evitando a Lídia Franco, a Rita Salema, ou outra gente de algo, terão certa a compreensão dos media, sempre solícitos perante os problemas sociais que vos afligem; e dos políticos, ansiosos por figurar na galeria sorridente dos aprovados pelo sistema opinativo instituído.
Ora qualquer grupo, profissão ou empresa sabe como é importante na sociedade contemporânea ter o que se chama boa imprensa. Se continuarem a incomodar apenas o vulgar cidadão têm todas as hipóteses de brilhar nos programas do Herman José, da Fátima Lopes, da Judite de Sousa, ou da Júlia Pinheiro – e de merecer a compaixão da deputada Teresa Morais. As vossas acções serão apresentadas como aventuras fascinantes, ou como desventuras do destino.
Com argoladas destas é que estragam tudo.

Cortinas de fumo

Os dois escritos anteriores foram motivados, muito seriamente motivados, pelo que aos meus olhos se apresenta como um verdadeiro "golpe de estado constitucional", que estou convencido terá o seu momento culminante na próxima revisão constitucional (já existe, sem que a isso tenha sido dado qualquer destaque, uma comissão parlamentar a preparar a dita). Entretanto, e no que se apresenta mais urgente para os promotores do projecto em marcha, estão desde já sobre a mesa as propostas legislativas que se afiguram viáveis mesmo sem alteração constitucional (daí a minha chamada de atenção para o anteprojecto do PS sobre o processo penal).
Quem conhece o pensamento comum entre a casta política comprende perfeitamente o que estou a tentar dizer. Não são de há um ano as ideias que agora vão ser lançadas no papel - há muito que elas eram consensuais e eram habitualmente murmuradas em off. Só que nunca parecia oportuno avançar, os custos e riscos políticos afiguravam-se elevados, e tudo ia sendo adiado.
O choque provocado pelo caso da Casa Pia e pelo caso de Felgueiras (sim, que este não teve menor impacto entre a casta dominante do que o primeiro) acabaram com os últimos pruridos; o estado de espírito entre a classe política é de avançar, agora ou nunca.
O povinho será o último a perceber, quando a coisa estiver consumada; entretanto os usuais comentadeiros continuarão a discorrer sobre o que não interessa, para distrair do que efectivamente importa.

quinta-feira, janeiro 29, 2004

Finalmente as reformas!

Nem de propósito, estava eu aqui a escrever sobre a deputada Teresa Morais (sabendo muito bem que as convicções dela são generalizadas na classe política), e por coincidência o PS apresentou hoje em conferência de imprensa na Assembleia um anteprojecto de reforma do Código de Processo Penal (CPP) que põe em letra de forma tudo (quase...) o que andava no ar já há muito – mas ainda não tinha havido coragem para atirar cá para fora.
Para quem saiba ler, está lá tudo. Infelizmente muita gente não sabe.
Os fantasmas à solta são atacados frontalmente: as escutas telefónicas são dificultadas de modo a que se tornem garantidamente inaplicáveis e ineficazes; a possibilidade de prisão preventiva apertada e condicionada de modo a ficar de todo inadequada à gente que conta; os delitos ligados à toxicodependência são empurrados para as “exigências de recuperação, tratamento e aplicação de medidas alternativas à prisão”, a libertação condicional de reclusos condenados surge expressamente facilitada para proporcionar o almejado esvaziar das prisões; as autoridades judiciárias são ameaçadas com processos de responsabilização intimidatórios ...
Enfim, um festival de “reforço dos direitos, liberdades e garantias” e “clarificação dos requisitos exigidos da constituição de arguido e das condições de exercício da defesa".
Segundo essas insuspeitas autoridades que são António Costa e Jorge Lacão (também Costa, mas não usa), "o país está consciente da necessidade da reforma", e há que "ajustar a complexidade do processo penal à realidade da criminalidade (portuguesa), que é de baixa intensidade.”
Dizem eles, que também nunca a viram – como a deputada Teresa Morais.
A justiça penal irá finalmente poder dedicar-se em exclusivo à canelada do Sr. Belmiro na D. Anastácia, à peixeirada que fez à janela a D. Engrácia da mercearia, ao furto da galinha da vizinha Balbina.
Processos tipo Casa Pia, redes de corrupção, tráficos de estupefacientes, associações criminosas, crime organizado, delitos com um mínimo de sofisticação ou complexidade, são coisas que não irão atrapalhar mais a necessária eficácia no tratamento dos desassossegos da ralé.
E prisões preventivas, era o que faltava, voltar a ver gente de bem misturada com essa gentalha mal lavada que se encontra nas prisões!
Estás a entender - ó Portugal Profundo?

Gente Fina

De vez em quando lembro-me do suspiro fundo do Prof. Martinez quando lhe apareciam esforçadamente a papaguear sebentas certas meninas da Faculdade: - "mas, com os atributos que a natureza lhe deu, para que quer ela estudar Direito..."
Uma das colegas que me recorda o desabafo é a deputada Teresa Morais, não sei se ainda Melo ou já não Melo, ornamento vistoso do social-civilizadismo PPD.
Agora a senhora deputada foi visitar uma cadeia do Norte e à saída, chocadíssima, claro, que lá no meio que ela frequenta nunca se tropeça em coisas assim, vá de desabafar com os jornalistas.
Mas acontece sempre o mesmo quando a direita radical-chic tenta formular uma ideia: esta sai muita parecida com os habituais slogans do Bloco de Esquerda.
A senhora deputada, evidentemente, está preocupadíssima com o desproporcionado número de presos existentes em Portugal, pais onde, segundo a informam, a taxa de criminalidade é das mais baixas da Europa mas a taxa de encarceramento é das mais elevadas (ouve-se isto em todos os debates televisivos, não há jornalista nem papagaio que não o saiba repetir, com ar profundo e grave).
Claro que não lhe ocorre pensar na relação entre um e outro indicador: provavelmente se for reduzido o número de presos para metade, o que é fácil decidir na Assembleia, a taxa de criminalidade poderá em poucos meses subir para o dobro.
Qualquer desses indicadores é tão manipulável que não significa nada, nem esclarece nada sobre a situação real.
Os presos estão lá porque geralmente não há outra solução: o sistema não disponibiliza outra alternativa, e se não for aplicada essa eles também não têm cá fora alternativa senão continuar a carreira. São em geral criminosos de repetição, como se constata se for verificada a taxa de reincidência, ou conhecidas as realidades sociais a isso ligadas. A doença não está ali, é muito mais grave, e está a montante...
Pois sim... sabe lá da realidade social a senhora deputada! A explicação que ela encontrou para a tal anomalia é simplesmente que os juízes estão possuídos por "uma cultura judiciária virada para encher prisões". Nem mais. Os juízes é que deliram a prender gente. Na imaginação dela os juizes têm uma espécie de quadro de honra para distinguir quem prende mais. E rebolam-se de gozo quando podem dizer a um colega: - "O quê? Só prendeste cinco hoje? Pois fica sabendo que eu mandei hoje quinze para a choldra!"
Portanto, a solução que a senhora deputada deixa entrever para os nossos problemas prisionais está à vista: é preciso trocar os juízes. Por outros, com outra "cultura judiciária", bem diferente da condenada. E, suspeito eu, de preferência empossados pelo Ministro da Justiça e nomeados por uma comissão parlamentar.
Depois, evidentemente, esvaziar as prisões, sermos um país moderno e progressivo, com uma população reclusa reduzida ao mínimo.
Saberá a senhora deputada o abismo que a separa da massa dos seus eleitores? Não sabe, certamente. Ela nem anda de metro porque não suporta o cheiro a sovaquinho.

Trapalhadas

Por o Ultimo Reduto ter falado no jornalista e escritor Armando Boaventura, meti-me a comentador e saiu asneira.
O Nova Frente chamou-me a atenção e já procurei corrigir: na precipitação troquei os dados referentes a Armando Boaventura com aqueles que se referem a Manuel de Boaventura, seu primo-irmão, escritor que Esposende homenageou, o qual faleceu em 25 de Abril de 1973 num acidente de viação (o dia de São Marcos, santo que é aliás padroeiro dos cornudos, sempre foi muito propenso a azares).
Quanto a Armando Boaventura, que foi jornalista do Diário de Notícias, escritor, desenhador, pintor, remeto os curiosos para a página que lhe é dedicada pelo filho Fernando Boaventura (afinal há mais filhos orgulhosos de celebrar o nome dos pais!).

Eborênsias

Tendo aqui falado, por várias vezes, a propósito do aniversário do Coral Évora e do desaparecimento do Dr. Alegria, da música polifónica em Évora, constato que omiti a referência justa que se impõe ao Grupo Vocal Trítono.
Sem esquecer o Coral Évora e o Eborae Musica, mais antigos, este é o agrupamento que mais intensa e meritória actividade desenvolve nessa área. Ainda por cima tem uma interessante página na internet; está aqui.
O Eborae Musica também teve, mas parece padecer de inanição. Está aqui.
Desejo-lhes os maiores êxitos: é preciso manter o fogo da música, como dizia o Cónego Alegria.
Já agora, para quem se sentir tentado: o coral está muito precisado de vozes masculinas!

quarta-feira, janeiro 28, 2004

A DIREITA NUNCA EXISTIU

Desde sempre - e mais agudamente, como é natural, nas épocas de crise - é costume observar-se que a “direita” não se sabe organizar, não tem capacidade para se defender, nem mostra a menor habilidade para assaltar o poder; que a “direita” não aparece, não vai votar quando é preciso, nunca promove esmagadoras mobilizações de massas; que a “direita” é apática, passiva, não se mexe, não se agita nem agita quem quer que seja. Quem não ouviu já estas ou parecidas acusações, repetidas - com desencantada tristeza por uns, com feroz alegria por outros – não apenas em Portugal, é claro, mas em Espanha, em França, na Itália... por toda a parte?
E atrás das criticas, a grande interrogação: Porquê? Porque se passa tudo isso com a “direita”? Porquê essa inoperância, essa falta de organização e actividade da “direita”? A resposta é provavelmente muito simples. A resposta, provavelmente, é que a chamada “direita", como entidade política, não existe e nunca existiu.
A que é uso, com efeito, chamar em política “a direita”? Sabe-se por demais como tudo começou: com o famoso acidente geográfico de se sentarem uns senhores à direita e outros à esquerda da sala nos Estados Gerais de que nasceu a Revolução francesa. Não tinha, então, o termo qualquer espécie de conteúdo ideológico e menos ainda qualquer tipo de consistência estrutural. Mas os que pretendiam subverter os esquemas da sociedade tal como ela se encontrava naturalmente organizada viram aí, na etiqueta simplificadora, um excelente instrumento de combate que souberam imediatamente aproveitar com astuta eficácia: a “direita” passaria a ser o nome que se havia de dar a tudo quanto se pretendia, justa ou injustamente, desmantelar e destruir: privilégios supostos ou reais, discriminações razoáveis ou irracionais, imobilismos estioladores ou tradições estimulantes.
Porque, realmente, naquilo a que é costume chamar “a direita” o que fundamentalmente se encontra condensado é, pura e simplesmente, a vida natural - tal como ela é na realidade e merece a pena ser vivida: o trabalho em paz, a propriedade honradamente ganha, a preparação cultural suficiente para o acesso decente às fontes de receita necessárias, a família sem abortos nem divórcios, os ócios gozados sem agressões interruptoras; tudo isto, é claro, com as também naturais injustiças, abusos, erros, desvios, - para os quais a indispensável estrutura jurídica, mais a dimensão e a maturidade da sociedade a que se aplica, terá de estabelecer os não menos indispensáveis mecanismos correctores. A “direita” é a naturalidade, a normalidade, o livre e espontâneo desenvolvimento das potencialidades orgânicas do Homem integral - alma e corpo. E por isso nunca pensou em criar nem organizações, nem defesas, nem mobilizações - como ninguém se lembra de estabelecer as normas e os exames que levem um pai a tratar
de dar de comer aos filhos ou uma dona de casa a lavar as camisas com que o marido há-de ir para o trabalho.
A “direita”, aquilo a que se convencionou chamar “a direita", nunca sentiu a necessidade de se estruturar em termos de combate, porque a única reivindicação que tem a apresentar é a de que se permita a todos uma vida “normal”, a de que se respeitem os valores “naturais” do Homem.
E “a esquerda”? As “esquerdas”? Essas, sim. Como do que tratam é de submeter a sociedade a esquemas construí-dos abstractamente, a formulações jurídicas aprioristicas (de onde acaba sempre por nascer o famoso divórcio entre "país legal" e "país real", de que sempre acabam por se queixar os povos dominados por elas), que não são naturais - têm fatalmente de montar máquinas destinadas a impor (à força: militar, económica, psicológica...) as ditas estruturas artificiais a situações naturais que elas contrariam por definição. Por isso as “esquerdas” se organizam, se defendem, se mobilizam, se infïltram, procuram assaltar o poder, procuram fazer tábua rasa do que encontram de normal e natural pela frente. E precisam de ter um “inimigo”, que mantenha tudo isso permanentemente em tensão, em alerta, precavido contra a famosa verificação de que “chassez le naturel, il revient au galop”; e o inimigo precisa de ser reconhecível com etiquetas simples, que evitem análises e reflexões (posto que estas imediatamente revelariam o truque), como podem ser - por ordem cronológica de invenção... - a “direita”, o “capitalismo monopolista e latifundiário”, o “fascismo”, o “imperialismo”...
A “direita política” é, efectivamente e assim, apenas uma grosseira embora eficaz inovação da esquerda. A “direita política” nunca existiu e só cristaliza como reacção, também natural, a quanto pretende destruir pela força tudo quanto é natural no Homem.
E se procurássemos institucionalizar a normalidade? Se organizássemos a naturalidade, para vivermos e sermos governados em termos naturais?

EDUARDO FREITAS DA COSTA

Dicionários do Diabo

Durante muito tempo, fez curso entre os portugueses letrados a ideia que uma maldição qualquer afectava sem remédio a meritória intenção de organizar para a língua portuguesa um dicionário, como as demais foram tendo.
Nasceu essa desconfiança das peripécias e azares (parecia bruxedo!) que comprometeram o bom sucesso do empreendimento pioneiro, o célebre dicionário da academia que nunca passou do primeiro volume. O volume que era dedicado à letra A. Tal significa que o famoso dicionário da academia terminou em "azurrar".
Essa falta de continuação gerou até um anedotário próprio. Todos os que na escola tiveram que ler “A Dama Pé-de-Cabra” estão lembrados que Alexandre Herculano, que não estava muito de amores com a academia, aproveitou o seu enredo para lançar uma farpa à já veneranda instituição.
Também é verdade que esta desde os primórdios estava habituado aos ataques, à má língua, à sátira chocarreira. Basta ler os versos que Bocage repetidamente lhe dirigiu.
Mas regressando a Herculano: como é sabido, no desenvolvimento da narrativa “A Dama Pé-de-Cabra” surge perante os leitores um onagro, que terá papel primordial na tramitação subsequente. O bicho era mesmo coisa do mafarrico, produto de um encantamento maléfico... mas quanto a isso remeto para as “Lendas e Narrativas”. O certo é que o animal, logo para sua apresentação, principiou por azurrar. Como é de seu natural, digo eu; um onagro, como saberão, é um jumento selvagem, um burro, um asno vulgar. Não conhece outra linguagem, nem tem outra forma de expressão.
Ora como é próprio da espécie, o onagro começou por azurrar. E nesse ponto Herculano coloca uma chamada para a nota de pé de página e nesta vá de escrever que "assim começou o onagro onde às vezes as academias acabam".
Esta estória me lembra a mim outro dicionário, que começando por aí nunca todavia daí passou.
E o caso é que os académicos não mereciam o achincalho, já que não era deles a culpa pelos sucessivos impedimentos que determinaram a falta de continuação do dicionário. Mas a graçola lá ficou a ornamentar as “Lendas e Narrativas”.

Bispo-Conde, porquê?

Uma vez que a plateia começa a refilar, vamos lá a esclarecer essa designação de Bispo-Conde.
Pois efectivamente, como informaram de pronto os papa-concursos do costume, a razão dessa denominação prende-se com o facto de o Bispo de Coimbra ser por esse cargo também Conde de Arganil.
Aconteceu que no ano de 1471 o Bispo de Coimbra de então acompanhou o Rei D. Afonso V na sua expedição ao Norte de África, e ao que parece teve actuação meritória na conquista de Arzila e Tânger. Em reconhecimento o Rei concedeu-lhe a 25 de Setembro de 1472 o título de Conde de Arganil, para ele e seus sucessores. Enquanto o mundo for mundo...
Mas, direis vós, quem era esse Bispo de Coimbra que mereceu tal distinção? Respondo que era o ilustre eborense D. João Galvão, e foi um dos mais eminentes homens públicos do seu tempo.
Pertencia a uma importante família desta cidade de Évora, da qual saíram outros notáveis da nossa história local e nacional, nesses tempos recuados dos séculos XV e XVI.
Lembro Duarte Galvão, cronista-mor do reino, e embaixador de D. Manuel em Roma, Paris, Viena e Abissínia; os filhos deste, Jorge, Rodrigo, Manuel e Simão, mortos no combate de Achem, no Mar Vermelho; o quinto filho, António Galvão, lendário governador das Molucas, autor do “Tratado dos diversos caminhos da pimenta e especiarias vindos da Índia” e da “História das Molucas”; as três irmãs Galvoas, fundadoras do Convento do Paraíso, no local onde se encontram as ruas de Machede e de Mendo Estevens; Frei Inácio Galvão, religioso dominicano...
O nosso João Galvão era filho de Rui Galvão, escrivão da Fazenda e escriturário de D. Afonso V. Moço de corte, cedo ingressou na vida política, chegando a ocupar o cargo de escrivão da Puridade do mesmo Rei D. Afonso V.
Mesmo ministro e filho de ministro, decidiu-se porém a ingressar na vida religiosa. Entrou para o Convento de Santa Cruz, de Coimbra, em 1448. Não perdeu todavia as ligações políticas, já que três anos depois, apesar de frade agostinho, foi um dos fidalgos que acompanhou a irmã do Rei até à Alemanha para concretizar o negociado casamento desta com o Imperador Frederico III, coisa da maior relevância diplomática. Sobre essa viagem escreveu a “Jornada da Imperatriz D. Leonor”. Era aliás considerado pelos seus contemporâneos homem culto e talentoso, dedicado à letras.
No decurso dessa excursão, que durou muitos meses, fez amizade em Siena com o Bispo desta cidade, futuro Papa Pio II, o que viria ser decisivo no seu futuro.
Regressado a Portugal, foi em 1459 eleito Prior de Santa Cruz, cargo que durante séculos foi uma das mais cobiçadas dignidades eclesiásticas do Reino. Logo a seguir, em 1460, foi nomeado Bispo de Ceuta e pouco tempo depois Bispo de Coimbra, cargo que ocupou entre 1460 e 1481. Além dessa distinção, foi ainda nomeado pelo Papa Pio II “legado a latere” em Portugal, em 1462, pelo que entre esta data e 1464 governou a Igreja em Portugal em nome do Pontífice Romano.
Sendo Bispo de Coimbra, foi escolhido para Arcebispo de Braga, em 1480, por falecimento do Primaz. Foi o seu último cargo, já que morreu a 5 de Agosto de 1485, em Coimbra.
E chega, que com tanta erudição até eu estou cansado. Os óscares vão directamente para as prateleiras do “Nova Frente” e do “Último Reduto”, se ainda tiverem espaço.

terça-feira, janeiro 27, 2004

E o Algarve?

Não será preciso reproduzir aqui a já célebre entrevista de José Manuel de Mello, em que este faz umas propostas ousadas sobre o destino de Portugal, na sua visão futurante.
Com tanta referência que mereceu, já não há quem não a conheça de cor.
A mim a única perplexidade que me ficou é quanto ao destino reservado ao Algarve; a proposta não esclarece, só diz que é preciso dividir o país em duas ou três regiões, deixando o Algarve de fora... mas afinal para quem seria o Algarve?
As tais duas ou três regiões seriam para Espanha; pronto, está feito. Negócio arrumado. Escusamos de nos maçar com elas.
Mas então e o Algarve? Ficar de fora quer dizer o quê? Algum Gibraltar aumentado? Um gigantesco projecto imobiliário de luxo? O tal casino monstro ou o bordel europeu, de que falava Junqueiro? Estou realmente sem perceber o que está na mente do retalhista José de Mello. O destino do Algarve preocupa-me.

O pessoal político

Na edição de hoje de "O Diabo" o Prof. Costa Andrade declara a dado passo que "de uma maneira geral preocupa-me muito o abaixamento progressivo de nível dos agentes políticos, particularmente no Parlamento, onde de legislatura em legislatura a qualidade das bancadas parlamentares tem vindo a reduzir-se".
Ora aí está um tema da mais transcendente importância e significado, a que não vejo dar qualquer atenção, e muito menos analisar nos seus significados, causas e consequências.
O abaixamento "progressivo" do nível dos agentes políticos! Coisa extraordinária, esse tal progresso! Referiu o Parlamento, mas podia falar no Governo, nos Partidos ...
Já repararam os portugueses nas pessoas que actualmente os pretendem representar e governar? Já fizeram um estudo comparativo, fornada por fornada, geração por geração?
Certamente que não. O resultado assusta. Desde há muito tempo já, parece que os que entram são sempre piores que os anteriores.
Um degrau mais e ainda teremos uma classe política formada exclusivamente pelo Zé Maria de Barrancos, a Fátima de Felgueiras, o Marco do Big Brother, o Tino de Rans, o Jardim da Madeira, o Curto da Guarda, a Cinha do não sei quem mais, o Herman da Sick, a Catherine Deneuve, o Ferro do Gastão, e o Gastão do Ferro - e mais aqueles senhores das filas de trás que servem para bater palmas, rir ou patear, conforme as indicações da realização.

O Cónego Alegria na cultura portuguesa

O labor de José Augusto Alegria sobre o canto coral polifónico português dos séculos XVI e XVII pode comparar-se ao de um arqueólogo que sozinho, sereno na sua determinação, se entregasse diariamente durante décadas a escavar no deserto a areia que vários séculos tinham depositado sobre um precioso tesouro artístico, de que já não restava lembrança, e após anos e anos de constante e ininterrupta escavação, descobrisse para o mundo em toda a sua magnificência o tesouro que o tempo tinha sepultado.
Actualmente, em todo o mundo culto, a polifonia portuguesa, centrada na Escola da Sé de Évora, está considerada como a mais elevada realização artística da arte musical da sua época. Entrou no repertório dos mais exigentes corais que se dedicam ao canto polifónico religioso. Os nomes de Manuel Cardoso, Mateus de Aranda, Duarte Lobo, Filipe Magalhães, Francisco Martins, Diogo Dias Melgaz, D. Pedro de Cristo, João Lourenço Rebelo, António Fernandes, António Marques Lésbio, são conhecidos e reconhecidos em todo o mundo em que os estudos musicais ainda merecem alguma atenção. Hoje podemos facilmente ouvi-los em gravações de coros estrangeiros especializados, v. g. ingleses ou holandeses. Organizam-se festivais e encontros sobre o tema. Só em Portugal continua a não existir um coro que seja capaz de executar esses trabalhos.
Mas não era assim quando há décadas atrás o Dr. Alegria começou o seu trabalho; na verdade, tudo jazia no universal esquecimento, as incompreensíveis obras musicais entregues à poeira dos arquivos sem que ninguém as lembrasse ou sequer entendesse.
Com rigor e método de ourives, o Dr. Alegria decifrou, transcreveu, anotou, estudou, e foi publicando o fruto do seu trabalho. O filão era quase inextinguível, mas ainda assim sob a sua responsabilidade saíram na colecção “Portugaliae Musica”, da Gulbenkian, os milhares de folhas de composições musicais de que ele tanto se orgulhava.
São trabalho seu as publicações, com introdução e notas, de: “Frei Manuel Cardoso (12 trechos selectos)”; “Obras várias” de Manuel Cardoso; “Livro de vários motetos” de Manuel Cardoso; “Liber primus missarum” de Manuel Cardoso; “Liber secundus missarum” de Manuel Cardoso; ”Liber tertius missarum” de Manuel Cardoso; “Cantica Beatae Mariae Virginis: magnificat” de Manuel Cardoso; “Obra litúrgica” de Francisco Martins; “Vilancicos e tonos” de António Marques Lésbio; “Psalmi tum vesperarum, tum completorii. Item magnificat lamentationes et Miserere” de João Lourenço Rebelo; “Seis motetos e uma missa ferial” de Diogo Dias Melgaz; “Opera omnia” de Diogo Dias Melgaz; “Tractado de Cãto Llano” de Mateus de Aranda; “Tractado de canto Mensurable” de Mateus de Aranda; “Discurso apologético: polémica musical” de Caetano de Melo de Jesus; “Arte de musica de Canto D’orgam, e Canto Cham, & proporções de musica divididas harmonicamente” de António Fernandes.
Para servir todos aqueles que pretendam continuar o seu trabalho, deixou organizadas e publicadas as fontes principais: “Biblioteca Pública de Évora: catálogo dos fundos musicais”; “Biblioteca do Palácio Real de Vila Viçosa: catálogo dos fundos musicais”; e “Arquivo das músicas da Sé de Évora: catálogo”.
Paralelamente foi construindo uma obra em que o seu saber se espraiou por diversos campos. Publicou em livro: “As Cantigas d'amigo e d'amor dos cancioneiros galego-portugueses: da origem poética à prática musical”; “A problemática musical das cantigas de amigo”; “Évora e a sua cultura”; “A alma da Catedral”; “História da escola de musica da Sé de Évora”; “O ensino e prática da música nas Sés de Portugal: da reconquista aos fins do século XVI”; “O colégio dos moços do coro da Sé de Évora”; “O primeiro colégio de Évora”; “História da capela e Colégio dos Santos Reis de Vila Viçosa”; “Mateus d'Aranda mestre da capela da Sé de Évora e lente de música dos Estudos Gerais de Coimbra”; “Polifonistas portugueses: Duarte Lobo, Filipe de Magalhães, Francisco Martins”; “Frei Manuel Cardoso, compositor português”; “As angústias metafísicas do Prof. Fidelino de Figueiredo e as suas soluções musicais”; “A poetisa Florbela Espanca: o processo de uma causa”.
Existem ainda trabalhos seus incluídos no “Triomphe du Baroque”, para a Europália 91, e no “Dia mundial da música 1987: conferências pela oradora oficial” (com Maria Augusta Alves Barbosa).
Sobre a sua obra está também publicado pela Universidade de Évora o volume relativo ao “Doutoramento Honoris Causa do Senhor Cónego Dr. José Augusto Alegria”.
Os incontáveis artigos que foi publicando em jornais e revistas, portugueses e estrangeiros, ao longo de toda a sua vida, são impossíveis de enumerar.
Para um apagado padre de província, que se recusava a sair de Évora e a sacrificar a suas pequenas rotinas mesmo quando lhe acenavam com homenagens e honrarias, não está nada mal.
Era da Academia Portuguesa de História, e não ia a Lisboa nem ele se lembrava há quantos anos (praticamente deixou de deslocar-se quando cessou actividade o coro “Poliphonia”, de que foi responsável); pertencia à Academia Brasileira de Música, e nunca tinha feito nada por isso; nem ele sabia quantos organismos e associações internacionais o tinham feito seu membro, mais ou menos honorário. Lembro-me de o ver sempre interessado na Federação Internacional “UNA VOCE”, que acompanhava desde a origem. Mas era caso único; e compreensível, se pensarmos que se trata de uma organização dedicada simultaneamente à defesa da música sacra, do latim, e da liturgia tradicional romana.
De resto, achou sempre mais importante o café a meio da manhã com os amigos que o acompanhassem do que qualquer solenidade mundana. Não era modesto, e tinha a noção exacta da importância do que fizera e fazia; mas era de todo indiferente a rituais celebrativos e feiras de vaidades. Não tinha a menor contemplação perante o que lhe desagradava, e a paciência não era um dos seus pontos fortes. Mas de hipocrisia nunca ninguém lhe viu vestígios.

segunda-feira, janeiro 26, 2004

O CÓNEGO ALEGRIA E A MÚSICA LITÚRGICA

A caridade talvez aconselhasse a calar qualquer comentário ao que foi a cerimónia fúnebre de despedida ao Reverendo Cónego Alegria, no passado Sábado, na Sé de Évora.
Mas uma vez que essa virtude não esteve presente no oficiante, que aproveitou para dizer ao morto o que em vida nunca teve coragem para lhe dizer, sinto-me também desobrigado a esse respeito. Segundo o tal palerma, que também já é Cónego, numa triste demonstração do estado calamitoso em que está a Igreja Católica em Portugal, o falecido “era um espírito resistente à mudança – mas sempre com recta intenção”.
Seja pois; o oficiante em causa é um espírito aberto a todas as mudanças – e não sei da sua intenção, e até julgo que ele também não sabe.
O que vi, isso sim, foi um cerimonial que teve tudo o que o morto nunca teria tolerado, se pudesse protestar. Desde a concelebração, que ele recusava, às tristes cançonetas que ele abominava, passando pela circulação entre os presentes de uns indivíduos, que nem sei se eram padres, distribuindo hóstias pelas mãos dos interessados com a mesma solenidade com que se distribuem rebuçados.
Se em vida o afastaram, o ignoraram, o isolaram – numa solidão de décadas -, não tiveram pejo em levar à cena a última humilhação.
A certa altura, o meste de cerimónias em tom concessivo anunciou que o coral iria interpretar uma pequena peça de música litúrgica em latim, que o morto tanto insistia que era a língua da Igreja.
Creio que ecoavam nas pedras da Catedral, doendo nas consciências dos concelebrantes, as palavras que o sábio musicólogo fez imprimir no volume X do Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra (págs. 161-173), e que tiveram então ampla repercussão nacional e internacional (conheço eu publicações do artigo desde a Alemanha ao Brasil; e também em Portugal logo foi reproduzido na “Resistência”).
Tinha a Comissão Episcopal de Liturgia produzido a 22 de Novembro de 1985 uma “nota pastoral” a propósito da música nas igrejas; respondeu-lhe o Dr. Alegria desassombradamente com uns “comentários respeitosos (...)” que não digo que lhe valeram para sempre a inimizade dos senhores Bispos, pois essa já ele a tinha antes garantido, mas seriamente a reforçaram e consolidaram.
Dizia com dureza o Ilustre Capitular da Sé de Évora que na Igreja em Portugal permanecem "como verdades axiomáticas, a vulgaridade de mãos dadas com a mediocridade"; e examinando a Nota Pastoral concluia que "quando a Igreja em Portugal quis, de facto, valorizar a Liturgia com música de qualidade, fundou escolas junto das catedrais e dos mosteiros nas quais recolhia os aprendizes da arte, fornecendo-lhes o respectivo ensino perfeitamente disciplinado e protegido com regulamentos, alguns dos quais nos são conhecidos, revelando o altíssimo conceito em que, nesses tempos, era tida a função da Liturgia”. E prossegue apontando à Comissão Episcopal: "o que já não é de todo correcto é a referência aos nossos seminários apontados como alfobres do ensino da música quando a verdade, salvo honrosas excepções, é totalmente ao contrário"; "o que aconteceu também em Portugal, foi exactamente o contrário do estabelecido na letra e no espírito do articulado conciliar. (...) Todos foram juízes competentes na matéria, introduzindo, ao arrepio de toda a prática musical nas igrejas, os mais variados instrumentos (...). Aproveitando o silêncio da Autoridade, deu-se início ao reinado das violas que passaram em muitos seminários e casas religiosas, a ser o instrumento por excelência na prática da Liturgia (...). Mas, como era novidade e assumia uma forma de contestação da Tradição da Igreja, o processo violeiro propagou-se perfeitamente à vontade acompanhado de livrinhos, impressos ou policopiados com o título bizarro de Ritmos Religiosos destinados à cobertura de todas as ocorrências litúrgicas"; e isto pese embora "só a colecção Portugaliae Musica da Fundação Calouste Gulbenkian, já fez publicar até agora, nada menos do que 2774 (...) páginas de música litúrgica de autores portugueses! E todo este monumental acervo de música, pelos vistos, está condenado às salas de concerto e classificado como impróprio para o uso do tão badalado Povo Cristão (...)”
Infelizmente, nunca as suas palavras foram ouvidas; e se em 1985 já se tinha consumado de todo o abandono da liturgia, submersa na onda das mais insólitas novidades, e da música litúrgica, substituída pela tal praga violeira e pela “chansonette cléricale”, e da língua da Igreja (já não há clérigo que saiba latim ou que mais modestamente siga o Missal), desde então o panorama não cessou de se agravar. Hoje, em toda a vasta arquidiocese de Évora, e apesar das insistentes recomendações papais, para ver um padre diocesano com um simples cabeção, ou qualquer sinal que o anuncie exteriormente como tal, creio que será preciso encontrar o Paulo Cordovil – que não tendo certamente nascido o mais inteligente parece querer compensar permanecendo o mais fiel ao que recebeu.

ECOLOGIA VITAL

Não sendo conservador, encontro-me porém cada dia mais um conservacionista. Um pouco como Noé perante o Dilúvio.
Consola-me esta descoberta positiva, porque geralmente só era capaz de me definir pela negativa: sei muito bem o que não sou, mas tenho grande dificuldade em arranjar definição que me satisfaça e me represente.
Mas sim senhor: sou um conservacionista. As causas a que me apego partem todas do mesmo instinto de defesa das espécies.
Defendo a Pátria em que nasci, espaço ideal da ecologia humana a que pertenço. Defendo a Vida, onde a espécie se perpetua e expande. Defendo o Ambiente, a preservação do suporte físico da nossa existência terrena. Tudo realidades em perigo.
Quero dizer que para mim as recomendações que faço aos meus leitores resultam todas da mesma cosmovisão: esteja eu a solidarizar-me com a defesa da Costa Vicentina, como faz o “Ambientalista”, a recomendar o “Portugal e Espanha”, porque pugna pela liberdade e independência de Portugal, a batalhar contra o aborto, apoiando o movimento “Mais Vida Mais Família”, ou a elogiar a “ACAM”, porque luta pelas condições da nossa segurança, é sempre a mesma concepção do Homem e do Mundo, digo do Homem situado e do seu Mundo, que procuro traduzir e concretizar.

Morreu o Padre Alegria

Para os eborenses, para os antigos alunos do Liceu Nacional de Évora, chegariam as palavras do título.
Quero porém dizer alguma coisa mais. Desde Sexta-feira passada, à hora de almoço, que ando para o fazer. E todavia, mesmo aqui, no anonimato do blogue e na distância segura que a rede permite, um resistente pudor protege as dores mais íntimas e pessoais.
Na Sexta-feira, pelas 13 horas, morreu um amigo. Foi a enterrar no Sábado, após cerimónia fúnebre na Sé de Évora.
Não era um amigo qualquer. Para mim, que tenho poucos, todos os amigos são especiais; mas este era realmente especial. Era meu amigo há mais de trinta anos; e posso dizer que foi um amigo sem falhas. Apoiou-me sempre, no que eu fiz e no que não fiz; e sabem todos quantos me conhecem que isso não é fácil. Nunca pediu nem esperou nada em troca; aliás, era verdadeiramente desinteressado - o mundo não lhe importava, e eu nada tinha para lhe dar.
Para ele, que também teve sempre poucos amigos, e apesar da minha insignificância, creio que também fui um amigo com um lugar muito particular. Desde logo, fui sempre o amigo mais jovem de entre aqueles que ele contava como tal. Conheceu-me como aluno, e nessa posição o relacionamento foi complicado. Eu era um adolescente pretensioso, que entrava na vida em atitude de arrogância e desafio. Mesmo assim foi possível estabelecer uma ligação, por qualquer forma que só a providência explica.
Passámos a manter uma cumplicidade que durou para sempre, até ao momento em que partiu. E nessa prolongada cumplicidade me baseio para afirmar que era uma amizade especial. Desde os quinze ou dezasseis anos que frequentava a casa dele. Casa de pobre, a única riqueza eram os livros. Era uma casa cheia de livros. Não gostava de os emprestar; resmungava que as pessoas não têm o hábito de os devolver. Mas a mim emprestava. Nunca saía de lá sem trazer um livro na mão. À despedida atirava-me sempre: - “Leva este! Mas vê lá bem se não te esqueces de o trazer! ... E quando trouxeres esse levas outro...”
Livros e livros, que se prolongavam depois nas conversas, como cerejas, que cada um deles suscitava.
Há anos esteve doente pela primeira vez na vida. Aproveitei para o picar alarvemente, com uma inconveniência sobre a protecção que o Pai do Céu não dava aos seus servidores mais dedicados. Franziu a expressão, num jeito muito próprio, e com a temível facilidade de resposta que lhe era conhecida disparou-me: - “ Oh meu rapaz! Se o Pai do Céu desse uma protecção especial aos amigos tinha muito mais amigos.... mas também ficávamos sem saber quais eram os verdadeiros ...”
Com a profundidade teológico-filosófica da sentença me calei então; e calo-me agora também, prometendo no entanto voltar a escrever aqui sobre quem foi o meu amigo José Augusto Alegria.

domingo, janeiro 25, 2004

O trabalho prisional

Para Cavaleiro Ferreira, as penas não são o que a lei diz mas o que a execução faz. Daí a atenção particular que encontramos na sua obra escrita e na sua acção política e legislativa relativamente à problemática da execução das penas. A partir dele, nunca mais se viu em Portugal semelhante atitude.
Nos manuais, tudo se passa como se a questão das penas se esgotasse ou na especulação filosófica sobre os respectivos fins ou na dogmática relacionada com a sua fixação. O resto não é digno da atenção dos universitários. Fica para a secretaria e os serviços prisionais.
Declarada a pena pela sentença, é como se não houvesse mais problemas a merecer estudo. Dez anos de prisão – disse o tribunal. E a lei diz como se contam.
Mas o que fazer durante esses dez anos? O que se pretende e se espera?
No pensamento de Cavaleiro Ferreira ocupa lugar fundamental o trabalho prisional. Era esse o único modo de alcançar os fins proclamados: fazer do condenado um homem novo, pela organização, pela responsabilidade, pelo esforço, pela disciplina. Assim se podia falar em ressocialização – aproximando o homem detido do seu dever ser como homem livre.
O condenado deverá fazer a sua aprendizagem de homem livre, de cidadão honesto. No decurso da pena deve formar-se o «novo homem», útil aos seus semelhantes, igual a nós. O trabalho é o meio mais adequado da regeneração: desenvolve o espírito profissional, a responsabilidade familiar e social, cria a satisfação do esforço próprio, mantém a disciplina interior e exterior, eleva as qualidades positivas do homem”.
No seu desenvolvimento, a posição de Cavaleiro Ferreira levaria a que o trabalho estivesse no centro da execução da pena de prisão – e no limite se tornasse ele próprio, mesmo sem prisão, a pena por excelência.
Em coerência com a sua posição filosófica, desenvolveu durante os anos da sua governação os indispensáveis instrumentos para a levar à prática. Foi o caso da Inspecção do Trabalho Prisional e Correccional, que deixou pelo país fora mais obra feita, no âmbito do Ministério da Justiça, do que se conseguiu fazer nestes últimos trinta anos.
Em tudo se retrocedeu. Temos agora nas prisões portuguesas (boa parte delas construída nessa época pela mão de obra prisional) cerca de catorze mil presos, um número nunca visto antes, e quase todos em idade activa. Pois quase nenhum tem trabalho.
Os teóricos chegam a escrever que falar de trabalho para os presos é atitude cruel e desumana. E nenhum explica o que é, e o que faz a um ser humano recluso num espaço fechado durante cinco ou dez anos, a completa inactividade, a ausência de qualquer ocupação útil, para ele e para os outros.

Desencontros

Entre a minha pessoa e aqueles que por caridade, por curiosidade, por acaso, ou por azar, vão lendo o que aqui se publica, parece haver um irremediável abismo quanto a gostos e preferências.
Constato o caso repetido.
De vez em quando, publico eu algum texto, meu ou de outros, em que deposito o meu entusiasmo; não digo que esperasse a apoteose de uma multidão em êxtase (já expliquei que não sou de entusiasmos fáceis, e os que tenho são breves e ligeiros), mas confesso que o lanço às ondas cibernéticas com aquela sensação íntima da identificação mais funda; - este sim!! É certo e sabido: cai no pântano da indiferença. Nem a mais leve brisa se agita, nem um eco me responde.
De outras vezes, publico eu rotineiramente mais um postal para cumprir o programa que a mim mesmo tracei; faço-o com o distanciamento e o desinteresse de quem não descortina no gesto valia que mereça alheias atenções. Pois esse sim – lá consegue despertar algumas manifestações de apreço, uma ou outra discordância... enfim: vida!
Não sei o que faça. Há momentos em que me sinto como aquele soldado da anedota: não sei se sou eu que levo o passo trocado ou se são os outros dez mil que não acertam comigo.

O HOMO ECONOMICUS

Há pelo menos uma convicção que as correntes ideológicas que actualmente se debatem pelo poder, das mais liberais às mais socialistas, não hesitam em partilhar. Pode chamar-se-lhe o primado da função económica.
Esse pressuposto condiciona depois todas as concepções sobre o Homem e sobre o Estado que tais ideologias difundem.
O Homem fica a ser irremediavelmente concebido como um produtor e um consumidor. Escapa a essas visões do mundo tudo o que nele é irredutível a essa dimensão – que é afinal aquilo que nele é específico, próprio, singular.
E quanto ao Estado, este é sempre visto à luz de fins, económicos, que nunca podem ser fins últimos, fins em si.
Aquilo que deveria ser apenas meio, instrumento, sai absolutizado com esquecimento de tudo o mais.
Nada há nessas ideias que transcenda o estômago e a mercearia.

FREI BALTAZAR DA ENCARNAÇÃO

Um homem extraordinário, este Baltazar da Encarnação, curiosíssima personagem do nosso século dezoito, que teria relevo e projecção singulares se em Portugal houvesse a preocupação, como nos outros países, de valorizar aos olhos do Mundo as grandes figuras nacionais.
Não se sabe em que dia nasceu, mas conhece-se a data em que foi baptizado: 29 de Agosto de 1683, em Serpa, onde residiam seus pais - Pedro Álvares e Brites Correia. Baltazar Casqueiro - tal era o seu nome civil - ficou órfão ainda menino, e foi uma irmã da mãe quem o criou e lhe fez aprender o ofício de sapateiro, primeiro exercido em Évora, e depois em Lisboa, já como oficial.
Manifestando desde muito novo temperamento irrequieto e turbulento, adquiriu fumaças de valentão e divertia-se a provocar constantes desordens e rixas. “Ao anoitecer, depois de acabar o trabalho, percorria as ruas, armado, e provocava contínuas bulhas e contendas; e aos domingos, mesmo de dia, andava procurando os mais valentes para com eles brigar, e afugentando os oficiais de justiça que pretendiam prendê-lo”. Tornou-se, deste modo, conhecido e temível, parecendo que nada poderia fazê-lo arrepiar caminho. Muitas vezes era ferido nas brigas que provocava, mas cada vez mais se afundava na vida desregrada e libertina a que o seu feitio o impelia. Até que, em 1705, se alistou no exército. E durante seis anos andou pelo Alentejo nas campanhas da Guerra da Sucessão de Espanha, combatendo como soldado.
Ao ser desmobilizado, Baltazar Casqueiro regressou a Lisboa - e surpreendentemente começou a mudar de vida. Tinha então 28 anos. Empolgado pelo arrependimento, passou de um extremo ao outro, tornando-se exemplo de contrição e penitência. Até que em 1713 decidiu abandonar completamente o mundo. Retirou-se então para as Covas de Monfurado, ou Covas Infernais, perto de Montemor-o-Novo - local solitário e adusto, no meio da serra. Três anos antes havia ido para esse ermo um caldeireiro de Lisboa, a fazer penitência, o qual levara consigo uma imagem da Virgem a que deu a invocação de Nossa Senhora do Castelo. Outros convertidos se juntaram a esse penitente, vivendo todos no mais rigoroso ascetismo.
A eles se juntou Baltazar. Em 1717 o número de eremitas que ali viviam ascendia a 25. Tinham construído toscas choupanas, e numa pequena lapa escavada entre penhascos haviam improvisado uma capela. Sustentavam-se de esmolas e do produto de trabalhos manuais, mas a maior parte do tempo passavam-no em oração, entregues a duras penitências e mortificações, vestidos de burel. Por fim, Baltazar Casqueiro tornou-se o chefe desse grupo de cenobitas e em breve formou uma congregação, para patrono da qual escolheram o grande convertido que foi S. Paulo. Baltazar e os seus companheiros, ao cabo de vida tumultuosa e dissoluta, tinham também encontrado a sua estrada de Damasco.
Em 1722, o Geral da congregação da Serra de Ossa autorizou os eremitas de Monfurado a usarem escapulário e deu-lhes carta de confraternidade. Três anos depois era benzida a igreja que entretanto tinham edificado. E em breve, a fama desses santos homens chegou a Lisboa. Então o infante D. António, irmão de D. João V, tomou-os sob a sua protecção.
Baltazar tinha já 40 anos quando começou a aprender a ler e a escrever. Estudou depois gramática latina e preparou-se seguidamente para receber ordens. Isso sucedeu a 17 de Junho de 1732, passando desde então a usar o nome de Baltazar da Encarnação.
Entretanto, o infante D. António dotou a nova congregação com o património de 3000 cruzados, Os estatutos - depois de atenuados no seu excessivo rigor - foram aprovados, e Baltazar da Encarnação foi nomeado director da congregação. O antigo sapateiro brigão adquirira vastos conhecimentos teológicos, obtivera licença para prégar. Empreendeu então uma viagem a Roma, donde regressou com licença e nomeação de missionário apostólico. Tinha conseguido, finalmente, regularizar por completo, perante a igreja, a sua situação e a da congregação que fundara e dirigia.
Chegado a este ponto da sua vida, Frei Baltazar da Encarnação devotou-se totalmente à evangelização e à caridade. Percorria incessantemente as terras do País e diz-se que em quatro anos prégou nada menos de 800 sermões. Em Lisboa, fundou em 1737 a confraria da “Caridade Geral”, para socorrer pobres e necessitados, nomeadamente os presos, e próximo da Sé fez construir uma ermida - a ermida da Caridade - para os Irmãos assistirem aos ofícios divinos. Mais tarde, também em Lisboa, fundou o convento do Senhor Jesus do Monte, que primeiramente se chamou “da Boa Morte”. Em 1742 esteve outra vez em Roma, e a 25 de Setembro de 1760, com cerca de 77 anos, faleceu em Lisboa, deixando editados alguns sermões e obras de devoção, que ficaram a atestar a sua cultura e os seus dotes de inteligência.
Baltazar Casqueiro, o jovem sapateiro turbulento e analfabeto não passava já de longínqua recordação. Frei Baltazar da Encarnação, depois de meio século de vida ascética, de activa e heróica caridade, depois de meio século devotado ao conforto espiritual e físico dos miseráveis, tomara-se autêntico discípulo e émulo de S. João de Deus e de São Vicente de Paulo.

DOMINGOS MASCARENHAS

Missas no rito tradicional latino-gregoriano

Domingos: às 11 horas, no Priorado São Pio X
Estrada de Chelas, 29-31 (junto à Avenida D. Afonso III), em Lisboa
Segunda-Feira a Sábado: às 19 horas, no mesmo local

Neste Domingo 25 de Janeiro: em Monforte, às 18.30 horas, na Capela Nossa Senhora Rainha de Portugal
Av. Gen. Humberto Delgado, n.º 3, em Monforte

sábado, janeiro 24, 2004

Cavaleiro Ferreira

Quando algum dia chegar a hora da Justiça, o Professor Manuel Cavaleiro Ferreira será reconhecido como o mais elevado representante do pensamento jurídico português no campo do Direito Penal. O seu espírito nobre e culto, de jurista e de filósofo, eleva-se tão acima de quantas glórias fabricadas temos visto por aí a dominar a cena desde há décadas que bem se entende o ostracismo a que o seu nome foi relegado.
E - pecado sem perdão! - o carácter, que sempre o distinguiu entre a multidão de invertebrados que fica a marcar este tempo, tornou-o de todo irrecuperável para as sensibilidades regentes na cultura dominante.
Escrevo isto movido por surpresa agradável: encontrei em linha um lugar de homenagem a Cavaleiro Ferreira.
Nesta época estranha, em que mesmo os filhos renegam dos pais, foi bom deparar com a página orgulhosa que um dos filhos decidiu erguer como um padrão a assinalar o nome de quem foi, na plenitude da palavra, um Homem.

Mais ficção portuguesa

Depois de ter recomendado a leitura de "O Princípio da Atracção", de Teresa Direitinho, estreia literária de uma jovem que pela sua idade só conheceu o Portugal nascido após a revolução de Abril, recomendo agora uma outra obra de ficção, esta saída da mais poderosa e marcante experiência que viveu a geração anterior: a guerra no Ultramar, desta vez conhecida em comissão de serviço em Moçambique.
Refiro-me a "O Capitão do Fim", que também assinala a estreia literária de outro autor, este com mais rodagem e outras vivências.
O autor é Rui de Castilho (literariamente), e a editora é a Prefácio. Merece a atenção de quem se interesse pelos novos caminhos da literatura portuguesa. Façam mais este favor, vão ler e depois critiquem.

Tudo atado e bem atado

Longe vão os tempos, todavia próximos, em que o Presidente Sampaio, certamente aconselhado por assesssores que lhe sopravam que isso caía bem entre o povinho, fazia discursos inócuos proclamando o "excesso de garantismo" do nosso processo penal e a necessidade de corrigir esse mal, que entupia a justiça penal.
Agora o mesmo Presidente, abalado nas suas convicções gerais por azares muito particulares, lançou-se definitivamente na cruzada em prol da defesa dos direitos dos arguidos, que é preciso assegurar sempre e cada vez mais - ao ponto de propor a introdução de mais um recurso, directo para o Tribunal Constitucional, no arsenal de quem se sentir ameaçado pelas perversas perseguições judiciais.
Seria o chamado "recurso de amparo".
Mas escusava o Presidente de se ralar tanto: aqueles que ele tem em mente já estão muito bem amparados.
Apareceu agora a notícia de que o Tribunal Constitucional, dando mais um decidido passo em frente no seu estatuto de junta de salvação dos políticos apanhados nas curvas, pronunciou-se pela ilegalidade da suspensão do mandato da Presidente da Câmara de Felgueiras.
Quer dizer: é um cargo político, com legitimidade electiva, os tribunais não podem tocar nisso. Se o tesoureiro ou o contínuo da repartição meterem ao bolso uns dinheiros da gaveta podem ser de imediato suspensos das suas funções por despacho judicial - para evitar a continuação da actividade criminosa e o alarme social que razoavelmente resultaria do facto de alguém ir pagar as suas taxas ou contribuições a quem na véspera tinha sido apanhado com as mãos na massa.
Mas se quem roubar for o Presidente da Câmara, ou o Presidente da Junta, alto lá: ainda que seja apanhado em flagrante, o tribunal tem de pôr-se em sentido e respeitar a separação dos poderes. O eleito continuará em funções.
Bem poderá destruir a papelada comprometora, reunir com quem sabe para dizer que nada sabe, organizar a defesa e a continuidade do negócio: o tribunal nada pode fazer contra a sua continuidade em funções.
Muito admiro eu a pertinácia e a indignação do Portugal Profundo; mas eles querem lá saber do Portugal profundo!
Tudo está atado e bem atado.

À Mocidade das Escolas

Por terra, a túnica em pedaços,
Agonizando a Pátria está.
Ó Mocidade, oiço os teus passos!...
Beija-a na fronte, ergue-a nos braços,
Não morrerá!

Com sete lanças os traidores
A trespassaram, vede lá!...
Ó Mocidade!... unge-lhe as dores,
Beija-a nas mãos, cobre-a de flores,
Não morrerá!

Turba de escravos libertina
Nem ouve os gritos que ela dá...
Ó Mocidade, ó louca heroína,
Pega na espada, arma a clavina,
Não morrerá!

Já desfalece, já descora,
Já balbucia... é morta já...
Não! Mocidade, sem demora!
Dá-lhe o teu sangue ébrio d'aurora,
Não morrerá!

Rasga o teu peito sem cautela,
Dá-lhe o teu sangue todo, vá!
Ó Mocidade heróica e bela,
Morre a cantar!... morre... porque ela
Reviverá!


GUERRA JUNQUEIRO

sexta-feira, janeiro 23, 2004

ECONOMIA & FINANÇAS

"O pior é pensar-se que se pode realizar qualquer política social com qualquer política económica; que se pode erguer qualquer política económica com qualquer política financeira; e que uma política económica ou financeira qualquer pode servir de base à política internacional ou ultramarina que nos apraza realizar.
Se um dia os que alguma vez disseram que iriam buscar o dinheiro onde o houvesse, pudessem dispor do poder; se o alcançassem aqueles que se jactam de ter aprendido não ter importância nem a solidez nem o valor da moeda mas a sua quantidade; se pudessem algum dia influenciar o poder aqueles que pretendem garantir-se da distribuição de riquezas antes de serem produzidas, devemos estar certos de que seria impossível executar qualquer plano e pôr de pé qualquer política que tivesse simultaneamente estes objectivos: consolidar e manter a independência e a integridade nacional; aumentar a riqueza pública e privada; distribuir mais equitativamente o rendimento nacional por todos, com benefício dos mais necessitados; assegurar o trabalho dos portugueses, melhorar-lhes as condições de vida, assegurar-lhes a ordem, permitir-lhes viver em paz
".

SALAZAR

LANÇAR ÂNCORA NA VIDA REAL

0 revezamento das gerações é inevitável. Conviria que ele fosse não só revezamento dos homens como, também, o do vocabulário e dos pontos de referência. A tradição a que estamos ligados é a da coragem, da lealdade, da fidelidade à palavra dada, da energia, da firmeza de carácter. 0 que estimamos e desejamos manter é, pois, uma certa imagem do homem. 0 que detestamos são as preocupações mercantis, a prioridade dada ao dinheiro pela nossa época, a estéril imagem puramente económica com que se nos apresenta a vida social, o anonimato e o tédio dos grandes formigueiros humanos, as nauseantes e vãs ideologias, as reivindicações mesquinhas e a pressão contínua e repugnante desta luta manhosa da existência colectiva. 0 que nós repudiamos é uma certa imagem da sociedade. A nossa escolha biológica é mais do que a defesa de uma raça; é muito mais vasta, é muito mais dramática. Sentimos profundamente a nossa condição animal, sentimo-nos profundamente mamíferos e obedecemos às leis não propriamente da nossa espécie mas do género a que pertencemos; estamos fundamente ligados a essas leis, queremos conservá-las; não queremos o formigueiro que nos constroem, não queremos a mutação para a colectividade de insectos superiores que o mundo moderno, colectivista ou liberal, nos prepara. Só desejamos regimes fortes pelo facto de eles imporem regras de salvação pública às forças de destruição e de escravização trazidas pelas modas científicas da produção; queremos que, para além da vida mecânica de escravos que nos reservam, por igual, a ideologia marxista e as normas da produção em série e em concorrência, haja um poder salvador, uma força suprema, que arbitre em favor da humanidade.

Estas perspectivas não são o resultado de uma meditação pessimista. Precisamente pelo contrário: é o facto de eu acreditar no futuro das ideias de que somos portadores que me leva a desejar que a sua apresentação se faça em termos de criar condições de diálogo. Saibamos aproveitar as lições do "blocus" eleitoral. E também dos modelos de que se servem os nossos adversários. “Conhecem o nosso programa?” - dizem os comunistas. E acrescentam: “Venham ver-nos. Nós conversaremos”. Procuremos, como eles fazem, as condições e o vocabulário da persuasão. Busquemos encarnar os interesses dos grupos sociais ameaçados ou incompreendidos; desenvolvamos ou criemos a solidariedade com o que existe; não sejamos mais apenas doutrinadores - porque a doutrina aborrece - nem nostálgicos - porque a nostalgia entorpece - mas procuremos lançar a âncora o mais possível na vida real, na vida local, na vida profissional, na vida sindical, para tecer desde já elos múltiplos e eficazes, pelos quais nos possamos tornar um dia a representação real de uma vaga de opinião pública.

MAURICE BARDÈCHE

Sugestão de leitura

Para quem cultiva o prazer da leitura e da descoberta, recomendo uma nova escritora portuguesa (alentejana de Elvas).
Trata-se de Teresa Direitinho, que lançou recentemente o seu primeiro livro. Chama-se "O Princípio da Atracção", e é uma edição da Oficina do Livro.
Trata-se de um romance, onde se misturam o amor, a amizade, a Astronomia, a Física, a música, o céu do Alentejo.
Será que a atracção, a amizade e o amor poderão ser explicados à luz da Ciência?
Ficam os digníssimos amigos encarregados de ler durante este fim de semana "O Princípio da Atracção", e depois escreverem para cá o que vos parecer de justiça.

Não precisa agradecer!

A Maria Isabel, da "Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados", escreveu a agradecer as referências aqui feitas ao "Paz na Estrada" e à ACA-M, e o meu interesse em discutir o problema da sinistralidade rodoviária.
Fico desvanecido, mas não esperava agradecimentos: é serviço público, menina, serviço público!

Sempre Olivença

Parece que em Espanha tem causado grande reboliço o livro do Embaixador Máximo Cajal, que se lançou agora (liberdades de aposentado!) a defender soluções para os problemas fronteiriços espanhóis, salientando a interligação entre todos eles.
Relacionar esses problemas, ou sequer reconhecer que há um problema oliventino, é um tabu em Espanha; e neste adormecido Portugal restante também não é costume.
O livro chama-se "Ceuta, Melilla, Olivenza y Gibraltar, ¿Dónde acaba España?", e para conhecimento da questão remeto para o "Portugal e Espanha" ou para o Grupo dos Amigos de Olivença.
Ou para o magnífico artigo de Carlos Luna já publicado aqui.

Ainda a ofensiva abortista

Do "Movimento Juntos pela Vida" recebi um comunicado dando conta da sua preocupação perante as novas tentativas de fazer passar legislação pró-abortista, em ostensiva fraude ao referendo efectuado, e declarando mais uma vez o seu compromisso em dar todo o apoio às mulheres, mães e famílias que dele precisem.
Entretanto, no blogue "Aliança Nacional" tem sido publicado o mais valioso conjunto de textos existente na net de língua portuguesa sobre esse tema.
Recomendo ambos, vivamente.
Finalmente, surgiu na blogosfera um blogue pessoal que tem tudo a ver com o mesmo assunto: é o blogue do deputado António Maria Pinheiro Torres, que resolveu romper o bloqueio e o silêncio. Estive a ler, e cheira-me a tempestade: solicito aos meus pacientes leitores antes do mais que dêem uma ajuda ao deputado António Maria na resolução dos embaraços técnicos com a construção do blogue; e em seguida peço encarecidamente que mantenham isto em segredo, porque se assim não for desconfio que o deputado já não entra nas próximas listas.
O blogue chama-se "Por Causa d'Ele".

NAÇÃO, “SÍTIO” OU ENTE?

Na definição devinda clássica de “Nação politicamente organizada”, o Estado não existe. Os aparelhos de Poder assim chamados têm com as comunidades destinatárias o vínculo único de sobre elas o exercerem. Ou seja, encontramo-nos perante uma situação de objectiva incomunicabilidade estrutural.
Por um lado, o “Estado” determina e impõe, procurando constranger a “Nação” ao acatamento. Por outro, a “Nação” diligencia viver esquivando-se o mais possível à rede tecida pelo “Estado”. A formalidade de os membros da “Nação” designarem os titulares do “Estado” vem a ser o ponto de encontro considerado.
Algo se adiantará, todavia, reconhecendo que a definição em causa não passa de ficção semântica. Tudo se terá resumido, afinal, à atribuição de designações sem curar da correspondência entre os nomes e as coisas. Pelo que, tudo ponderado, nunca existiu um “Estado” como “Nação politicamente organizada”.
A emergência de “Nação” como significante político, recordámo-lo na semana passada, é um fenómeno revolucionário.
Resultante da necessidade em que se encontraram os homens de 89 de opor um princípio a outro princípio. Mas, se o conceito surtiu valor polar, o seu conteúdo jamais foi cabalmente explicitado.
Não é isto indiferente ao paradoxo de se impor em simultâneo com o liberalismo. Como continente de uma herança social, “Nação” exprime um sentimento gregário que a afirmação individualista necessariamente distende. Ocorrida a primazia da segunda, o primeiro quase havia de reduzir-se à indicação de um sítio de existência.
Utilizando um conceito que vimos ser de múltiplas implicações, o liberalismo aproveitou-lhe apenas a delimitação geopolítica. Isto é, o uso passou a designar um espaço, e os seus ocupantes, em que se verificara determinada sucessão de poderes. A “Nação” sucedia ao “Reino” no sentido de sujeito de específica entidade política. Assim, a circunscrição do facto nacional reduz-se, na doutrina liberal, ao território e a uma população com certa homogeneidade. Mas ainda esta, de acordo com os princípios, numa perspectiva de precipitado atomístico. Substituindo à existência de estruturas de expressão o estabelecimento de esquemas de representação formal.
Importa considerar, para entendimento do problema, que a Revolução Francesa já encontrara “Estado” como significante político. A seu respeito não se verifica uma emergência, mas uma sucessão na titularidade. Um soberano sucede a outro, dele recolhendo a posse do aparelho de governo assim denominado.
Dada a diferente natureza do novo titular, é evidente a necessidade de alterações nesse aparelho. Sobretudo porque, deixando o Poder de possuir expressão pessoal, se torna imperativo nele o incorporar. Isto é, pelo mecanismo da designação formal dos seus detentores o “Estado” torna-se o aparelho do Poder.
Dar a “Nação” como “politicamente organizada” corresponde, portanto, à instalação do mecanismo que proveja a essa designação. Fica de fora, assim, qualquer exigência estrutural, de resto excluída pela redução do conceito de referência. Ou seja, a definição contempla apenas os requisitos de funcionalidade do aparelho de Poder nos quadros do sistema homenageado.
Outra questão a pôr, todavia, é a de se tem justificação pensar-se na “Nação politicamente organizada”. Ou, por outras palavras, se a fórmula, ainda em grande parte inexplorada, assume viabilidade futurível. E, nessa perspectiva, quais poderão (deverão) ser os parâmetros e vectores da sua concretização.
A este respeito, antes de mais convirá anotar que o problema principal reside na determinação dos conceitos de referência. Em primeiro lugar, entende-se a “Nação” como o sítio de que falávamos há pouco ou como realidade global e determinante? Secundariamente, encaram-se padrões formais ou materiais?
Responder à primeira questão implica primordialmente averiguar qual o grau de subsistência da comunidade em causa. Isto é, quais os suportes identificáveis para o assentamento e qual a receptividade aos mesmos. Ou, em alternativa, qual o consenso na necessidade de os estabelecer e/ou retomar.
Impõe-se atender, com efeito, a que se tornou corrente conceituar a “Nação” como sítio, inclusive procurando obliterar outra acepção. E que, de qualquer modo, a intensificação das relações intercomunitárias distende a força do conteúdo de cada qual. Embora também haja de ver-se que esse desenraizamento pode motivar o movimento inverso.
Para além disto, no entanto, o tópico da questão situa-se nas formas de permanência da herança social e no seu peso comunitário. Mantêm de facto capacidade vinculativa, ou pelo menos são sentidas como património a assumir? Ou seja, existe uma tradição compartilhada, ou pelo menos o vazio da sua ausência?
Parece legítimo adiantar que, na generalidade dos casos, sob uma ou outra forma as respostas serão positivas. No primeiro termo da alternativa, a “Nação” como realidade global e determinante permanece, sem embargo do enquadramento. No segundo, o seu apelo pode constituir alicerce de revitalização ou lançamento.
Logicamente se entenderá que, ao menos como rotinas indispensáveis, certas notas do facto nacional são recolhidas por qualquer formalismo. Reside a dificuldade principal, por conseguinte, no valor que lhes seja atribuído e na dinâmica que possam fundar. Cumprindo ter em conta que torná-las adjectivas por norma surge como processo de desligação.
Quaisquer os seus perfis, com efeito, os formalismos tendem a fazer-se aceitar como substância, relegando esta para a posição de acidente. Encontramos flagrante exemplo desta diligência no discurso oficial “deste país”, colocando a Democracia acima da Pátria. Quando, obviamente, nenhuma forma pode valer mais do que a entidade que a ela recorre.
Configura-se a questão essencial, por conseguinte, em estabelecer o elenco das expressões concretas em que se modela a comunidade. Desde logo assumindo que essas expressões em si representam uma validade autónoma e insubstituível. Porque, quaisquer os seus peso e âmbito, significam elementos constitutivos do complexo orgânico.
Assim excluída a “Nação” como sítio, fica desimpedido o caminho para a sua contemplação como realidade. Não se pode omitir, porém, que o “Estado” continua dispondo de instrumentos para a submeter ou instrumentalizar. Até parecendo (imaginando) proceder em ordem a proporcionar-lhe a organização de que necessita.

FERNANDO JASMINS PEREIRA

quinta-feira, janeiro 22, 2004

A CONVERSÃO

Realmente não consigo separar com nitidez os factos principais que me conduziram à fé católica. Na minha história, como na de todos, a parte principal está escondida como um extraordinário mundo que só tem visíveis as pontas de uns recifes. Entre esses, entretanto, devo mencionar um penedo de forma peculiar onde um inextinguível farol assinala a entrada de um porto.
Nessa alegoria simples, envolvendo a água e a luz acesa em cima de uma pedra, quero lembrar o meu baptismo. Minha conversão foi apenas uma volta, depois de grande viagem, depois de muitos cálculos náuticos, baseados em bússolas loucas, àquele porto antigo, à pia de meu baptismo. Em quarenta anos de viagens, muita coisa aconteceu até que eu visse novamente uma vela acesa em cima de uma pedra; e isso ocorreu em uma missa de requiem...
Muita coisa miraculosa passou perto de mim, como passa a cada instante perto de todos, mas não me lembro da maior parte e a alguns acontecimentos mais singulares receio emprestar, por minha conta, mais do que realmente continham.
Numa tarde, por exemplo, saindo de automóvel, em companhia de um amigo recente, que me procurava por causa de um amplificador, encontrei uma pedra. Uma pedra real, concreta, granítica: um paralelepípedo. O automóvel de meu amigo trepou na pedra e, com um solavanco, a porta do painel abriu-se na minha frente e caiu-me em cima do pé um missal. Poderia desenvolver esse episódio, ou insistindo na pedra como Carlos Drumond de Andrade, ou insistindo astuciosamente no missal, para mostrar a evolução do livro, lenta e gradativa, do pé para a mão.
Com bem menos do que isto existem páginas de antologia; mas, francamente, eu teria algum escrúpulo de fazer este facto render dois períodos, e até um certo instinto me adverte que seu valor literário seria discutível. O facto é que pela primeira vez abri a boca e falei alto sobre o meu problema religioso. Isto aconteceu num restaurante onde tínhamos ido almoçar, eu e meu novo amigo, para conversarmos sobre a aplicação do osciloscópio católico à cultura de tecidos. Depois de meia hora de conversa o meu amigo em tom categórico e inspirado, declarou-me: “Você precisa conhecer o Alceu”.
E foi dali mesmo ao telefone procurar em três ou quatro lugares diferentes onde estaria aquele personagem que eu admirava pelos livros, mas que me amedrontava um pouco pela posição oficial de “líder católico”. Dias mais tarde conheci-o e recebi dele um enorme serviço que no momento não soube avaliar. Ele falou-me da liturgia cristã e recomendou-me que procurasse me informar, dando-me ao mesmo tempo uma apresentação para um padre no Mosteiro de São Bento.
Nos dias que se seguiram, lembro-me bem, eu não podia passar quinze minutos sem pensar no Santo Nome de Deus. Era um assédio, um atropelo, era uma verdadeira perseguição que me acuava contra o altar. Uma onda de mérito de todos os santos, um vento de todas as orações, puxava-me o chão embaixo dos pés. E eu não sabia que o silencioso mover dos lábios de toda a cristandade cuidava de mim, dizia um segredo que me interessava, como os cochichos de gente grande nas vésperas de Natal, quando eu era pequenino.
Mais alguns dias se passaram até que ocorreu um incidente que tenho algum escrúpulo de contar. Em todo caso, conto-o: estava no meu trabalho, fazendo uma experiência com meus galvanómetros e minhas lâmpadas electrónicas, atento ao serviço, passageiramente alheio a qualquer cogitação, quando o operário que me ajudava a fazer as ligações queimou o dedo no ferro de soldar e soltou um palavrão e uma blasfémia com o nome de Cristo. Parei subitamente; olhei em volta um pouco confuso, sentindo um calor enorme no rosto. Aquela pobre blasfémia de pobre batera em cheio, como um soco no meu peito... De repente, descobri, inundado de alegria, que amava o Senhor Jesus e que em meu coração brotava um cântico novo. E, enquanto o operário chupava tristemente o dedo queimado, ainda resmungando, vesti o casaco, saí correndo sem avisar ninguém, pulei dentro de um táxi, com pressa de chegar no Mosteiro e de me atirar de joelhos diante do altar. Tinha caído do cavalo...

GUSTAVO CORÇÃO

A DIREITA IDEAL

É imprescindível fazer compreender às pessoas que a Direita actual - a que se está formando neste momento na França, na Itália e noutros países - não tem nada que ver com o fascismo ou com o nacional-socialismo, e que continuamos a chamar-lhe Direita por oposição às doutrinas da Esquerda e não pela novidade positiva que traz consigo.
Com efeito, tanto o fascismo mussoliniano como quase todos os grupos e doutrinas da Direita do princípio do século estavam apegados à realidade ideológica do século passado, e neste sentido entroncavam, embora de maneira diferente, com o materialismo e com alguns matizes da Esquerda. Hoje, em troca, enquanto a Esquerda continua a ser marxista, e tributária das filosofias e ciências de Oitocentos, aquilo a que eu chamo “Direita ideal” encontra-se nos antípodas de tudo quanto é forma mental do passado.
A leitura do livro “Vu de droite”, publicado há pouco por Alain de Benoist, trouxe-me à memória a minha própria luta em torno do novo conceito da Direita. Desde 1970, depois de ter publicado a minha “Viagem aos Centros da Terra” e encontrado uma série de cientistas europeus e americanos, pude observar a relação que se podia estabelecer entre os últimos êxitos, certamente revolucionários, da ciência contemporânea, e aquilo a que chamei então uma “destra ideale”. Digo-o em italiano porque foi na Itália, numa série de conferências, artigos e entrevistas, pronunciadas e publicados entre 1971 e 1977, que tratei de definir a Nova Direita segundo aquilo que a respectiva ciência e filosofia me haviam ensinado.
Foi então que me dei conta de que a física contemporânea, com o seu conceito de individualidade, extraído da lei da incerteza, com a sua busca de um Criador nas origens da matéria; de que a nova psiquiatria, com o novo rumo que Jung lhe dava, opondo alma e psique, religião e ateísmo; de que a própria literatura, desde Joyce a Musil, desde Broch, Kafka e Unamuno até Thomas Mann e Ernst Jünger - constituíam um imenso corpo de doutrina oposto a todo o ensino materialista, ou determinista, ou positivista, ou seja o que for, tristes heranças do século passado, desquitadas de todos os modos e de todas as formas de pensar e de criar dos novos tempos, do meu próprio tempo.
Nas longas entrevistas que tive nessa altura com os dirigentes da Direita italiana, tentei em vão persuadi-los de que eles se encontravam não numa retaguarda vacilante, mas sim na vanguarda do pensamento contemporâneo e da prática política, mas que tinham de fazer um mínimo esforço: abandonar as tradições e técnicas do seu movimento, demasiado relacionadas com o passado (e neste sentido parecidas com as da Esquerda) e irromper na actualidade com novas ideias na mão. Todos me diziam que sim, mas, como dizem também os italianos, “fro il dire e il fare c'è in mezzo il mare” – “entre o dizer e o realizar há no meio o mar”...
E eis como, no meio dum clima favorável e numa atmosfera muito propícia, no meio duma Itália destroçada pelo pensamento marxista e pela fatal aliança do Centro com a Esquerda, a Direita se foi abaixo em poucos anos, quebrando-se recentemente em dois troços, por ser incapaz de assimilar a lição de contemporaneidade dos avanços científicos. A minha Direita ideal ficou em águas de bacalhau, e os que não me deram ouvidos ficaram no mesmo sítio.
Mesmo assim, as arestas da nova doutrina já se estão perfilando no Mundo com uma clareza cada vez mais impressionante. 0 livro de Alain de Benoist dá conta da mesma história que delínio em tudo o que escrevi desde 1970 até hoje. Os próprios pensadores comunistas abandonam o Partido e, o que é mais grave, a própria doutrina, por terem compreendido que o que aniquila os dois, partido e doutrina, é precisamente a evidência com que a popularidade dos princípios científicos actuais abre um verdadeiro abismo entre tudo o que é Esquerda e tudo o que é sentido de contemporaneidade. 0 acento que de maneira tão parcial deixam cair certas Esquerdas sobre o ecológico e as vantagens que pensam sacar dos perigos da contaminação não conseguem esconder a outra contaminação. As ideologias baseadas na ciência materialista do século XIX vão-se abaixo, contaminadas pela sua própria inactualidade.
É verdade que as ideias da nova ciência andam no ar desde há meio século, e até mais; mas só hoje começamos a ter consciência da sua esmagadora presença, contradizendo, repito, tudo o que a ciência do passado tinha cogitado em torno da matéria, física e biológica, e experimentado com ela. Desde as viagens no espaço à bioquímica, toda uma nova perspectiva se está abrindo diante dos nossos olhos, e dentro dela não cabe nenhuma das ideias que partem doutra ciência. 0 drama dos cientistas soviéticos põe em relevo este tremendo descalabro: quem ali sustenta a novidade - novidade essencialmente antimaterialista, ou seja antimarxista - tem de desaparecer nos campos de morte estalinianos e nos Gulagues, ou, mais recentemente, nas clínicas psiquiátricas. Os chamados dissidentes e opositores não fazem mais do que tratar de fazer rimar, na Rússia e no espaço que ela domina, o novo com o político, enquanto a Polícia, último argumento de Brejnev, continua a argumentar como pode.
Na própria China, menos apegada à tradição revolucionária materialista do que a Rússia, o peso da revolução está a desmoronar-se sob o peso da necessidade, quer dizer, do científico. É por isso que todos os intelectuais se encontram hoje na oposição em todo o espaço soviético, e só no Ocidente continuam, encerrados numa tremenda ignorância ou num não menos tremendo oportunismo, a antiga linha do inactual. Com a diferença de que no Ocidente, onde não há campos de concentração, ninguém é castigado pelas suas crenças.
Algo de curioso se está assim a formar no Mundo. Os que se julgavam revolucionários aparecem como penosas rectaguardas, acorrentadas a preconceitos e antigualhas, enquanto os que se relacionavam com o tradicional, com o religioso ou o metafísico estão a brindar à pobre humanidade, cansada de guerras inúteis, de falsas revoluções e de mentiras televisivas, uma possibilidade de salvação. Ou, pelo menos, uma ocasião para tornar a encontrar-se com a verdade.

VINTILA HORIA

quarta-feira, janeiro 21, 2004

A QUESTÃO IBÉRICA

Como em toda a hora de crise nacional, o perigo ibérico está diante dos nossos olhos, indicando o futuro mais certo da Pátria, se a Pátria se não reabilitar lá fora, quanto antes, pelo regresso à Ordem e pelo respeito a si mesma. Só vivem os povos que sabem viver. E saber viver não é arrastar uma existência subalterna de país tolerado, sem mais direito a dirigir-se e a ter-se em conta de autónomo que a condescendência um tanto duvidosa dos vizinhos. É essa hoje, infelizmente, a nossa desgraçada situação. Levamos a carreira doida do abismo numa farândola de insensatos que se afundam, cantando e rindo, tal como os bailarins macabros da lenda. Ninguém se crispa num gesto que ao menos nos salve a dignidade! Tomou-nos a moleza do invertebrado. E como invertebrados sofremos sem reacção os vexames dum destino que é já de mais para a nossa honra de homens de bem, quanto mais de cidadãos livres duma terra livre! Não temos ainda para cá das fronteiras o inimigo tradicional. E se ele vier, não será a sua aspiração de séculos que o há-de erguer em som de guerra contra nós. Justiça ao cavalheirismo de Castela, nós é que a chamaremos às armas, - hão-de ser os nossos desvarios que, esgotando-lhe a paciência, acabarão por lhe escancarar as portas da casa. A solução intervencionista é lógica, é natural, como as coisas que o são, quando um importuno nos incomoda e nos coloca em risco de quebra o nosso próprio sossego, a nossa própria disciplina. Quem perdeu o jeito de ser prudente e não faz mais nada senão desgovernar-se, abre-se-lhe uma falência ou instaura-se-lhe uma curadoria. Não é outro, meus Senhores, o nosso tristíssimo caso!

ANTÓNI0 SARDINHA

O RETORNO DOS INTELECTUAIS

Isso de que “Marx morreu”, lema dos “novos filósofos”, já o afirmo há mais de vinte anos. Não era difícil percebê-lo e não só pelo odor que aquela morte havia deixado no ar da História, como por cálculo matemático-político. Seria bem mais cómodo e divertido regular o ritmo das ideias e das ideologias científicas e filosóficas, para se dar conta de que, no meio de uma Europa ou de um Ocidente conquistados pela nova física, quero dizer, pelo antideterminismo do quântico, o determinismo marxista seguia o mesmo rumo crepuscular da ciência em que se baseou e viveu. Foi assim que no momento em que comecei a ter certas noções de física e epistemologia, de biologia e astronomia, compreendi que uma nova ideologia estava a preparar-se nalgum sítio, capaz de substituir a antiga, do mesmo modo que a nova ciência substituía a velha. Havia que estar apaixonadamente cego pelas ilusões e optimismo do materialismo, mal denominado romântico pelos maus conhecedores do romanticismo, para continuar a viver de ideias e seus subprodutos ideológicos de tipo positivista ou materialista. Digo apaixonadamente porque o partido no poder num dos maiores países continuava e continua a subvencionar a mentira ideológica do passado aos que a preferem aos impulsos duros e gratuitos, isto é, não remunerativos, da novidade. O passado é um facto já sabido, é mais generoso do que o futuro, uma amante velha mais rica do que uma jovem.
E até há pouco os intelectuais, erradamente considerados até agora como anunciadores do futuro, têm sido os mais fiéis clientes dos donos da mentira, até o momento em que a rentabilidade do passado começou a interessar menos do que a rentabilidade do futuro. A futurologia e a cibernética, neste sentido, tiveram nestes últimos anos o seu papel, desde os livros de Kahn e Wiener até os de Toffler e Daniel Bell. E até os acontecimentos históricos do último decénio, a triste experiência de Allende no Chile, o terrorismo na Argentina, o trágico destino do Vietname do Sul, de Angola e da Abissínia, conseguiram despertar outros também sob o ponto de vista ideológico ou puramente intelectual. O envelhecimento das teorias de Marcuse, encarado até há pouco como uma espécie de profeta e hoje caído no esquecimento, como o do marxismo cristão de Garaudy, transformado pelos “novos filósofos” em bode expiatório do engano marxista, têm mudado a atmosfera que se respirava nos covis - eu diria nas tabernas obscuras - dos ambientes intelectuais franceses, por exemplo. Porém o fenómeno é hoje universal e irreversível. Até começos deste ano, o marxismo intelectual tinha-se limitado a uma espécie de triângulo político das Bermudas, formado por três capitais europeias, Paris, Madrid e Roma. Mas, depois das eleições francesas, o triângulo viu-se reduzido a um eixo, Roma-Madrid, dentro de cuja estreiteza geométrica continuam a ser debatidos os problemas do futuro do mundo segundo esquemas que nada têm a ver com o futuro nem com o mundo. O periódico “Le Nouvel Observateur” exclamava dolorosamente, há só dois meses: “A esquerda francesa está a ponto de perder, no país, o seu poder cultural". Gemido eloquente, já que por aí entrou o gérmen da decomposição. De repente, face ao desastre político, os marxistas franceses - refiro-me aos intelectuais - perceberam que estavam fora de jogo. Philippe Sollers, o antigo director da revista “Tel Quel”, nitidamente orientada para a esquerda, foi um dos predecessores deste despertar. Os “comités” para a defesa da cultura e dos direitos do homem, direitos exclusivamente marxistas, pedem a liberdade para o oriente, ali onde realmente o homem tem sido e continua a ser espezinhado. Quando alguém lê as declarações dos hispano-americanos refugiados na Europa - e ninguém lhes nega esse direito, já que o exílio é algo difícil de suportar e profundamente injusto - pedindo em gritos a libertação das dezenas ou centenas de presos, ou exigindo notícias de outras dezenas ou centenas de pessoas desaparecidas sob a tirania sem piedade dos regimes de ditadura militar e direitista do seu país, há quem sinta vontade de pedir o mesmo, mas gritando mil vezes mais forte e dirigindo a sua voz para os lugares onde, nos últimos sessenta anos, desapareceram dezenas de milhões de seres humanos. Os judeus sabem muito bem pôr em relevo a sua tragédia sob os nazis - e este é outro direito irrefutável; todavia, os cristãos não sabem unir-se para pedir contas aos herdeiros de Estaline pela morte dos seus, ou seja dos cristãos assassinados no espaço de uma ditadura civil. Bondade cristã, talvez, extensiva ao amor não só do inimigo como também do verdugo. Estou certo, ao escrever estas linhas, de que o Papa João Paulo II sabe perfeitamente como julgar tal bondade.
Mas voltemos à metanóia acima esboçada. Até o socialismo italiano, sob o controlo do comunista Nenni, se tornou antimarxista com Craxi. E o escritor italiano Leonardo Sciascia, juntamente com outros, tão pró-esquerdistas até agora quanto ele, participam no mesmo retorno.
Poderíamos falar já de um retorno à direita? É possível continuar a entender a direita como o fazíamos até há pouco? Creio que não. Creio mais que algo de novo está acontecendo no mundo, transformando em antepassados, mais ou menos ilustres, segundo os feitos, os mentores das duas facções. Quando Alain de Benoist, autor do ensaio tão famoso e discutido intitulado “Visto da Direita”, afirma que “o futuro pertence aos capazes de pensar simultaneamente o que até hoje não foi pensado mais do que contraditoriamente”, encontramo-nos perante nova possibilidade aberta à nova direita, ao que eu chamo “a direita ideal”, assente nas novidades científicas do século. Com efeito, pensar simultaneamente, como na teoria ou princípio da complementaridade, ou como no antigo, inquietante e vital “coincidentia oppositorum” (princípio, por exemplo, que separou definitivamente os surrealistas de André Breton dos comunistas de Lenine), pensar simultaneamente, digo, só é possível fora do marxismo, teoria racionalista, limitada a uma visão restrita, parcial, da realidade. 0 intelectual da nova direita é capaz, porque ser humano completo, de pensar correctamente, isto é, de maneira integral, e num espírito intimamente relacionado com a sua visão completa do mundo, com a “visão normal” do mundo, situações impossíveis de focar no materialismo dialéctico e suas arestas para pessoas limitadas. Esta perspectiva é pensável, inclusivamente como futuro político, somente fora do conceito de “revolução”, como o demonstro no meu livro “Considerações sobre um mundo pior”. 0 homem romântico era também um ser disposto a ensaiar a “coincidentia oppositorum”. Será esta possibilidade romântica, este desejo reformador até à raíz das raízes, que tenta os intelectuais e lhes dá vontade de retornar?
Poderíamos falar, pois, do fim de uma era neoclássica, materialista, determinista, marxista? E a entrada da humanidade em novo romanticismo, que não seria o primeiro nem o último? De qualquer modo, e sob qualquer aspecto em que vejamos o assunto, algo sucedeu no mundo, com tanta força e estrondo, que até os intelectuais parecem ter-se inteirado.

VINTILA HORIA

terça-feira, janeiro 20, 2004

AOS MODERNOS

Vós não sois o que dizeis ser, o que julgais ser.
Imaginais ser civilizados e eu vos digo que sois selvagens ou bárbaros. Todo o vosso decantado progresso consistiu, até agora, na passagem do estado selvagem para a barbárie. Os inventos, os brinquedos, os trajos, os ornamentos, os malabarismos e os estuques da chamada “cultura” enganaram-vos. Bastaram revoluções, invasões, capitulações, colisões e conflagrações para quebrar a estabilidade da ordem civil e desenvernizar a maquilhagem da decência moral. Reapareceu o selvagem da pré-história, o bárbaro da idade do ferro, a fera dos bosques. Caiu de golpe o respeito pelas coisas alheias, pela vida alheia. Em nome da força, da fome, da justiça, da civilização, os homens regressaram ao furto e ao assassínio; ao furto a retalho e por atacado; ao assassínio isolado e em massa. Os continentes onde a primeira civilização nasceu e floresceu tornaram-se teatro de saques e carnificinas. Nada ficou seguro para os homens, nem os seus haveres nem a sua própria vida. A vinda dos bárbaros, no declínio do mundo antigo foi, comparada com isto, a passagem de uma alcateia de lobos amansados.
Julgais-vos, enfim, ricos e poderosos, mas sois, na realidade, pobres e débeis. A vossa riqueza não é senão um arremedo de miséria, o vosso poder não é senão uma custosa sujeição à matéria. Os povos são arrastados e perturbados por tempestades que nascem deles mas logo escapam à sua vontade; os governos são prisioneiros e vítimas de forças impetuosas e procelosas que não conseguem dominar; os indivíduos são batidos, percutidos e quebrados pelas marés da história como argueiros e grãozinhos pelos turbilhões de um furacão arrebatador. Conseguistes subjugar algumas forças da natureza, mas as máquinas utilizadas para tal efeito tornaram-se os vossos senhores; desencadeastes as energias adormecidas da terra e agora, como outros tantos magos aprendizes, não sabeis refreá-las e domá-las. Forte é a vossa vontade, mas desordenada e emaranhada na confusão das paixões, das ilusões, das ambições, das razões e das intenções que acabou por suscitar monstros insubjugáveis, deprimiu e suprimiu a primitiva liberdade.

Giovanni Papini (in “Cartas aos Homens do Papa Celestino VI”)

O Homem e a Política

Aqueles que sonharam a felicidade do Homem, acaso pensaram que há circunstâncias da vida que não poderão jamais ser alteradas pelas tisanas dos regimes políticos? Que há dramas de subtil delicadeza e estranho mistério que escapam à alçada do Estado?
Os que burocratizam o ritmo de trabalho; os que socializaram a distribuição dos alimentos; e os que nacionalizaram a paternidade e racionalizaram a criação de homens na creche do Estado, transformando o Homem em galináceo e substituindo o lar pelas chocadeiras automáticas dos asilos; os que arrancaram o operário de onde ele tinha a impressão da sua liberdade, subordinando-o ao automatismo aviltante de uma engrenagem social em que ele deixa de ser o "sujeito" para ser simplesmente o "objecto", acaso terão pensado que esse pobre ente humano possui, além do estômago, um coração?
É possível socializar os meios de produção, nacionalizar toda a máquina económica de um povo; distribuir os alimentos por meio de coupons, burocratizando todos os movimentos humanos. Mas o que nunca se tornará possível será, na hora da morte, ou na hora do sofrimento moral profundo, distribuir rações de afectos, bondade por cupons, conforto sentimental em pacotinhos, como se as coisas do espírito pertencessem ao Estado.
Porque os afectos delicados e as consolações profundas o Homem só os encontra na família.


Plínio Salgado, in "Madrugada do Espírito"

SIDÓNIO PAIS

Na Coimbra daquele tempo em que, pode dizer-se, a cidade era a Universidade e quase desfalecia nos tempos de férias, não só na massa estudantil se distinguiam alguns rapazes de um revolucionarismo romântico e variegado, que transpunha em termos de política tropos de exaltação poética ou revoltas contra a partidocracia em que se estrangulava a Nação. Também havia entre os lentes quem se destacasse, em contraposição aos estudiosos basilarmente conservadores, pelo seu inconformismo republicano, desde o blandicioso Bernardino Machado, antigo ministro da Monarquia e par do Reino, que aderira ao partido republicano em 1903, até ao agressivo Afonso Costa, sempre em andanças por esse País fora, nas actividades de advogado ou nas sessões de propaganda política.
Naquele meio, onde o romantismo e o sectarismo se manifestavam de várias formas, Sidónio vivia sem exteriorizações que o fizessem dar nas vistas. A sua figura passava despercebida do vulgo, ainda que fosse um professor prestigioso, que sobressaíra em reuniões de matemáticos no estrangeiro, pelo saber e pela originalidade de algumas concepções na ciência dos números. Oficial de artilharia, por benefício de um regime de estudos facilitado aos moços militares, ninguém se lembrava de ter visto Sidónio Pais fardado.
Tinha fama de femeeiro e quando o viam enrolado no sobretudo discreto, o cigarrito ao canto da boca, esgueirar-se solitário ao longo duma rua, os alunos suspeitavam logo de mais alguma das suas aventuras amorosas.
Republicano e maçon - tinha na Maçonaria o nome de Carlyle - o partido republicano levou-o às Constituintes em 1911, a ministro do Fomento no primeiro governo constitucional, chefiado por João Chagas, e fê-1o transitar dali para a pasta das Finanças no ministério seguinte, presidido por Augusto de Vasconcelos.
Pertencia ao grupo chefiado por Brito Camacho, chamado dos intelectuais da República e que, na hora da dispersão partidária, seria o partido unionista.
Em Agosto de 1912 foi enviado para Berlim como ministro e ali se conservou até à declaração de guerra com a Alemanha em Março de 1917.
De regresso a Lisboa, frequenta activamente a redacção da “Luta”, já então instalada no Largo do Calhariz, onde funcionava também a sede do partido. Ali se conversava, se jogava, se discutia, e a certa altura passou a gizar-se uma conspiração para derrubar o governo, que o partido democrático dominava.
Simpatizante com o exemplo de disciplina, de organização e de trabalho, que vira durante a sua permanência na Alemanha, Sidónio era, contudo, parcial dos aliados e acreditava que a Alemanha estava condenada à derrota. A contrapor à cegueira dos sectaristas que pretendem o contrário, há declarações públicas de Sidónio e o alto prestígio de que ele gozava entre os representantes dos países aliados.
A conspiração continuava, dizíamos, a princípio acompanhada com simpatia por Brito Camacho, mas depois repelida pelo prudente chefe dos unionistas. Até que um dia, no fim da tarde de 5 de Dezembro de 1917, dois tiros de peça de artilharia deram o sinal da revolução. O impassível major de artilharia Sidónio Pais dirigiu-se calmamente para a Rotunda, dispôs ali as forças militares que o acompanharam, a par de muitos civis e dos cadetes da Escola de Guerra que quiseram segui-lo, dirigiu a movimentação dos homens e a regulação do tiro, e ao fim de três dias, vitorioso, assinava a proclamação que principiava com estas palavras:
“Cidadãos! Venceu a República contra a demagogia”.
Do ministério que se constituiu faziam parte alguns combatentes de 5 de Outubro de 1910, entre os quais o próprio Machado Santos, que viria mais tarde a ser assassinado na matança vindicativa anti-sidonista de 19 de Outubro de 1921.
Nasceu assim a República Nova, interregno que foi de um ano na barafunda da 1ª República. Sidónio Pais tentou afeiçoar o regime em estruturas mais compatíveis com as realidades da Nação, dar-lhe a ordem que lhe faltava, moralizar a administração, socorrer os necessitados, fazer cessar as perseguições aos católicos, dar à comunidade nacional um sentido que fosse efectivamente de vida.
Foi uma transfiguração total - do País e do Homem. Os portugueses sentiram que uma vida nova trespassava a Nação e Sidónio viu-se envolvido pelo abraço caloroso do Povo. Por seu lado, o paisano discreto de Coimbra cedera a uma figura desempenada e varonil de militar, tão distinta na sua presença quanto serena no comando eficiente ou na regulação rápida do tiro da artilharia. Foi um deslumbramento. O Povo sentiu naquele chefe que não fazia discursos, naquele sábio que não se empavonava de ideologismos tontos, a incarnação da Esperança que se perdera com o desaparecimento de D. Sebastião, com a derrota de D. Miguel, com a morte prematura de D. Pedro V. Eram as claridades da Libertação depois dos negrumes do desespero. Sidónio foi verdadeiramente um rei, na superioridade da visão política, na honestidade do proceder, no destemor e na galhardia da sua presença. Não foi sem razão que Fernando Pessoa escreveria depois da sua morte o poema “À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais”.
Havia, porém, quem seguisse na sombra os passos do Presidente. Os sequazes da desordem não desistiam. Um mês decorrido sobre a revolução, já ele tinha de subir ao Castelo de S. Jorge, para orientar pessoalmente a artilharia que pós fora de combate, aos primeiros tiros, um navio revoltado. Também não faltaram as tentativas de assassínio, uma delas cometida por um rapaz de 18 anos, que por se supor ligado à loja maçónica “Pró-Pátria”, deu origem à destruição desta e, depois, ao assalto à própria sede da Maçonaria - o Grémio Lusitano.
Houve quem afirmasse que Sidónio, ao ter conhecimento do assalto ao Grémio Lusitano, dissera calmamente: - “Assinaram a minha sentença de morte”. Verdadeira ou não a frase, o certo é que, decorrido pouco tempo, um desequilibrado mental, aliás visita do Grão-Mestre Magalhães Lima, assassinou o Presidente-Rei na noite de 14 de Dezembro de 1918, na estação do Rossio.
Foi um clamor de angústia por esse País fora! 0 Povo chorava e de luto acorreu em massa ao funeral. Ninguém se lembrava de que um chefe tivesse sido tão chorado como aquele. Um choro de dor e de espanto, de incompreensão como o Poeta soube descrevê-la:

Se Deus o havia de levar,
Para que foi que no-lo trouxe -
Cavaleiro leal, do olhar
Altivo e doce?


E a Nação recaiu de novo na Noite enorme em que Sidónio a encontrara.

VASCO AFONSO