terça-feira, setembro 30, 2003

Dois meses de “Sexo dos Anjos”

Primeiro dia de invernia, em forte contraste com o calor de ontem. Parece que mesmo à meteorologia já chegou o desconcerto do mundo.
E reparo que foi precisamente a 31 de Julho que abriu ao público este “O Sexo dos Anjos”.
Dois mesinhos de trabalho aturado... . Como mudou a blogosfera desde então!!
Pese embora a vida pessoal e profissional não me deixarem tempo para mais atenção ao que se vai passando em redor, desleixando o olhar sobre as coisas da hora, o certo é que tenho conseguido manter este sítio vivo, e espero que minimamente interessante.
E talvez que o distanciamento em relação à espuma dos dias o tenha feito ganhar em qualidade, no que perde em actualidade.
Não é ainda o momento de fazer o balanço; mas encontro bastos motivos de satisfação. As manifestações de agrado têm excedido sempre os ataques que, de forma violenta, injusta e malcriada, logo surgiram.
Os níveis de leitura alcançados excederam notoriamente a expectativa mais optimista.
E o curioso é que a simpatia apareceu muitas vezes de onde não era esperada; e a agressividade também de onde não se esperaria.
Ultimamente, e para além da embirração da “direita caviar” (pois é, o caviar não é exclusivo da esquerda), temos encontrado também uns insultos da parte de uns tantos para quem em grande medida este trabalho nasceu, e tem continuado, com sacrifício pessoal.
Os brutinhos não percebem, nem sabem ler ... é a tragédia da instrução que temos. Mas não é só isso: é também estupidez natural.
Ora, como diziam os antigos, contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão. Como se diz aqui no Alentejo, com simplicidade e sentido prático, lavar a cabeça a burros é estragadouro de assabão...


Reflexões inúteis sobre escritores inúteis


As obras escritas, em todos os muitos gêneros, são em grande parte meros acidentes, ondas fortuitas, que não chegam a ficar incorporadas, realmente incorporadas, nessa pirâmide das grandes ofertas que o homem faz ao homem. Se não tiram, também não acrescentam. Formam depósitos secundários de que vivem os livreiros e as traças. Funcionam como os assuntos do dia, escândalos ou banquetes, não chegando a ser propriamente obras, mas acontecimentos. Entram no calendário, nos salões, nas colunas da crítica e muitas vezes nas academias, mas não aderem ao compacto e concreto mundo da verdade. Têm a natureza dos passos de dança de que nem o chão guarda memória, ou a semelhança do palito que só entretém um breve e subalterno contato com o alimento.
Há escritores (ai de nós!) cujo maior título é uma pontualidade ou uma atitude: estar escrevendo. Vivem num particípio presente que não participa de um presente. Estão na literatura como os generais na ativa. Reformados, vai-se-lhes o prestígio; mortos, fica um registro nos almanaques e outro na sepultura. Há no mundo dois mundos, um de pedra e outro de neblina: geologia e meteorologia. Na literatura há também montanhas e brisas. Os livros que encontramos são, na maior parte, como as corrente de ar; e sua leitura tem a brevidade e o enfado de uma gripe. Leu-se; sofreu-se; acabou-se.
O falso e o genuíno
Esta divisão um pouco sumária, e talvez cândida demais, entre bons e maus livros, deve ser esclarecida e subordinada a um critério para que o leitor não a interprete mal. Antes de mais nada afasto qualquer idéia moralista, depois ponho também de lado o nível literário, isto é, a aristocrática demarcação entre as obras requintadas e as mais rústicas e populares.
Quando falo em livros que pesam, e me lamento dos que não pesam, quero me referir a uma distinção mais delicada ou talvez mais brutal do que aquela que geralmente se estabelece entre um bom e um mau bife, entre o casaco bem feito e um outro de mau pano ou defeituosa costura. Essas serão, na acepção aqui adotada, avaliações puramente adjetivas. Têm incontestável importância, sem dúvida, e cada dia maior, porque um dos aspectos mais tristes da política moderna ou das mais recentes concepções de vida é certamente a degradação geral das qualidades. A distinção que investigo, entretanto, é mais interior à natureza das coisas. Um mau bife ainda é um bife; um mau casaco ainda veste.
Será então a verdade, ou a exatidão, do conteúdo de um livro o critério que estou buscando? (...)
Ouso dizer que não é isso. Um livro pode ser grande e digno de interesse mesmo quando escrito contra a verdade. Estarei mais próximo, mais quente, se disser que o primeiro divisor das obras humanas, de onde se tira a condição primeira e eliminatória, não é tanto a verdade nelas contida, mas a sua ligação com a verdade. Com amor ou com ódio, acerto ou desacerto, o primeiro traço fisionômico de uma obra humana deve ser a sua humanidade. Deve ser a conexão vital e real com as coisas do homem, sua invencível tendência, colérica ou cordial, para tudo que nos toque na carne e no sangue. Esse é o sinal que umas obras possuem e outras não. Sinal de participação na concórdia ou no combate; notícia boa ou má (a ser averiguada logo depois), verdadeira ou falsa (a ser cuidadosamente examinada); mas notícia que me faça pensar: "Isto é comigo."(...)
Para dar mais nitidez à distinção pesquisada, direi que há duas grandes classes de autores separadas por um abismo: os genuínos (melhores ou piores) e os falsificados. Os primeiros andam na grande linha que liga as origens aos destinos do homem, para acertar ou errar, para blasfemar ou louvar; andam no encalço de uma pista, curvados, com paciência ou em delírio, atentos às inúmeras e perturbadoras marcas deixadas pelos pés humanos. Os outros são imitadores de gestos, índios de opereta, e pouco lhes importa que exista uma tribo amiga ou que estejam acampados, além, numa clareira escondida, os sanguinários inimigos.
O primeiro sinal que um leitor prevenido deve procurar num livro, a meu ver, é o da autenticidade. Antes de qualquer avaliação final, antes de uma colocação mais firme, importa distinguir se a obra vem das profundezas de um sujeito ou das meras superfícies, que apenas espelham os gestos dos outros. O que importa, na voz de um livro, é que seja uma voz de homem, que as palavras dessa voz estejam ligadas à lenda desse rei que cada esfinge de esquina tenta devorar.


Gustavo Corção, In "Três Alqueires e uma Vaca", Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1961, pág. 14-19.


segunda-feira, setembro 29, 2003

Nossa língua portuguesa


Floresça, fale, cante, ouça-se e viva
A portuguesa língua, e já onde for
Senhora vá de si soberba e altiva.
Se tèqui esteve baixa e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram:
Esquecimento nosso e desamor.
Mas tu farás que os que a mal julgaram,
E inda as estranhas línguas mais desejam,
Confessem cedo ant’ela quanto erraram.
E os que depois de nós vierem vejam
Quanto se trabalhou por seu proveito,
Porque eles para os outros assim sejam.


António Ferreira, in “Poemas Lusitanos”

O PESSIMISMO NACIONAL

Parece estar quase na moda descrer sistematicamente de Portugal, do seu Povo, e das suas capacidades. Principalmente, talvez por tradição, olha-se para a vizinha Espanha, fazem-se comparações, e ou se reage quase com “raiva”, ou se lamenta a situação portuguesa, defendendo mesmo uma União Ibérica como forma de resolver os problemas da velha terra lusa.
Não vou considerar tal uma traição. Não sou maniqueísta. Respeito tal opinião como o exercício da liberdade de expressão. Não acredito em patriotismos que tenham de ser impostos. Acredito em patriotismos que debatidos livremente, resultam como naturais.
Lembro-me de um artigo no “Público” em que uma intelectual de reconhecido mérito, comparava Portugal e Espanha, com manifesta vantagem para esta última. Recorda a Espanha que conheceu na década de 1960, e a sua pobreza. Recordava a evolução posterior, sem esquecer que o próprio franquismo, na sua fase final, começou a privilegiar o desenvolvimento interno, no que não seguiu o exemplo de Salazar, que se atolou numa Guerra Colonial sem fim, e nunca se livrou de um modelo de sociedade ruralizante e arcaico. Notava depois a excelência da pintura espanhola , o que ninguém no mundo contesta. Deslumbrava-se com o desenvolvimento económico, insurgia-se (e bem) contra o ódio à Espanha.
Num ponto não posso concordar: quando afirmava que o patriotismo só era concebível em momentos de emergência nacional. É que, para haver “emergência nacional”, tem de haver nação, que algum tipo de patriotismo terá de sustentar.
Concordei com a afirmação de que há um patriotismo moderno, que consiste em amar a pátria fazendo tudo para a tornar mais próspera, mais forte, e mais culta, e um patriotismo conservador, que consiste em viver no passado.
Todavia, a autora em questão acabava por manifestar um total desânimo e uma completa descrença nas capacidades de Portugal. Ficava deslumbrada com o que via, e propunha-se imitar tudo. Reclamava que o seu mundo não acabava em Vilar Formoso, tentando ver mais longe que o limite da fronteira do seu país.
Aqui, fez-me lembrar um comentário do velho romano Tácito, em relação à atitude dos povos dominados por Roma, no processo de Romanização. Dizia ele, a propósito dos ditos povos: “Os mais propensos há pouco a rejeitar a língua de Roma ardiam em zelo para a falar eloquentemente. Depois isto foi até ao vestuário que nós temos a honra de trajar e a toga multiplicou-se progressivamente; chegaram a gostar dos nossos [Romanos] próprios vícios, (...) dos banhos (...), e estes iniciados levaram a sua inexperiência a chamar civilização ao que não era senão um aspecto da sua sujeição”.
Ninguém podia acusar a autora, uma escritora, de desrespeitar a sua língua. Mas... será que não estamos, muitos de nós, a proceder como os povos dominados pelos romanos?
Antes de desenvolver outros tópicos, gostaria de desmistificar alguns números, referentes ao nosso vizinho peninsular, apenas (e só por isso...) por ser o país com o qual mais vezes é costume comparar desvantajosamente o nosso. Por exemplo, é costume ouvir frases do género: “Em Portugal ganha-se 3 ou 4 vezes menos do que em Espanha”, ou “Não há em Espanha reformas inferiores a 90 mil pesetas”.
Não há dúvida que actualmente se vive melhor em Espanha do que em Portugal, mas... segundo as estatísticas mais recentes, o Produto Interno Bruto espanhol é de 18.079 dólares, enquanto o português é de 16.064 dólares. Isto dá uma diferença de nível de vida de cerca de 12%. Por outro lado, se as reformas, em Espanha, são superiores às portuguesas, aconselho a leitura do “Periódico Extremadura” de 20 de Agosto de 2001, onde se revela que sistematicamente se esconde que 40% dos idosos extremenhos chega com dificuldades ao fim do mês porque recebe menos de 50 mil pesetas mensais. Há, pois, reformas baixas em Espanha!!!
Vários preços, em Espanha, são mais baixos. Por outro lado, a taxa de desemprego é superior à portuguesa. E há bairros pobres em Espanha, também! Peça, em Badajoz, que o conduzam ao Bairro de São Roque, no antigo caminho de Mérida... e terá uma surpresa, caro leitor! Por outro lado, se alguns salários médios ou altos em Portugal e Espanha são comparáveis, a média dos salários baixos deixa-nos deprimidos, pois é razoavelmente superior à portuguesa. isto significa que a distribuição da riqueza, em Portugal, continua errada, mesmo em termos capitalistas. Temos de mudar isso, e só nós o podemos (e devemos) fazer. E pensar que há empresários, grandes empresários, portugueses, que dizem que os trabalhadores querem ganhar demais...
Mas... como podemos nós adivinhar, daqui a 30 ou 40 anos, qual dos dois países, Portugal ou Espanha, estará melhor economicamente? O tamanho pode ajudar, mas há países menores que Portugal (Holanda, Bélgica, Dinamarca, Suíça) onde se vive melhor que em Espanha. E, já agora, digo-lhe: o Japão é mais pequeno que a Espanha e tem menos matérias primas. Qual é a economia mais desenvolvida? Tudo é uma questão de organização. Eu acredito que somos capazes de fazer melhor.
Portugal nunca irá para a frente se formos continuamente pessimistas. aliás, se nos transformarmos em província de qualquer outro país, perderemos mesmo a nossa capacidade de decidir seja o que for. Seremos eternamente criados, fornecedores de matérias-primas, mão de obra barata, uma massa de consumidores cujo poder de compra será decidido por outros que não nós. Contra isto, não penso que se deva parar de lutar. Se ainda há miséria e exploração em Portugal, se a distribuição da riqueza continua injusta, então há que continuar a contestar. A propor novas soluções, a desmascarar situações de pobreza, de corrupção, de políticos desonestos. Com muito maior empenho do que actualmente.
Não nos podemos esquecer que fizemos coisas boas e más na nossa História. O nosso Orgulho Lusitano deverá reforçar-se (sem xenofobias, chauvinismos ou patriotismos exaltados) com as experiências positivas, e aprender com os erros, evitando repeti-los. Assim fazem todos os Povos!
Neste aspecto, e só neste aspecto, convém não esquecer a História. Para mim, o grande problema da História de Portugal é que a distribuição de riqueza sempre tem sido muito injusta ao longo dos séculos, e assim continua. Por isso, os portugueses, a grande massa, sente-se muito distante das elites, e vice-versa.
Esta União Europeia provoca-me apreensões!
Tenho como historicamente provado que as uniões duradouras não devem deixar escondidos os ressentimentos, mas sim pôr-lhes cobro com justiça. Mais, creio que em tais uniões não pode haver desigualdades significativas em termos económicos e produtivos, sociais e outros.
Aqui, começo a recear pelo futuro da União Europeia... mesmo sem soluções socializantes que alguns considerarão radicais!
Sou muito descrente em relação ao capitalismo, e daí a minha insistência em lembrar que não estou, nestas linhas, a falar como anticapitalista militante que sou (ainda que tal não seja fácil para mim), mas sim como um cidadão que tenta analisar, um pouco neutralmente, o mundo que me rodeia. Ainda que isso de “neutralmente” seja, para mim, quase sempre uma impossibilidade...
Deixem-me dizer uma vez mais que nada tenho contra Espanha. Tenho é algo a dizer contra a fraqueza de Portugal, que, em nome da liberdade de mercados, tem sido governado sem objectivos concretos, sem determinação, deixando que o nosso vizinho Ibérico vá controlando vários sectores de actividade.
Para mim, desde há vários anos, há falta de planeamento. A única política seguida tem sido a de “obedecer a tudo”! Quais são os objectivos nacionais portugueses gerais, mesmo dentro da união europeia? Apenas, e só, integração, diluição, vassalagem.
Portugal é actualmente um país dependente da economia e finanças estrangeiras, principalmente, por motivos geográficos de proximidade, espanholas. Veja-se como a Espanha (por culpa portuguesa, repito) tem tomado conta de sectores-chave da economia (combustíveis, electricidade, telecomunicações, pescas... e até a agricultura). Infra-estruturas produtivas portuguesas têm sido compradas por empresas espanholas, e as mesmas vão-se implantando em Portugal. As políticas erradas vão obrigando alguns jovens portugueses a estudar em Universidades Espanholas, levam à contratação de profissionais espanhóis (que têm muito mérito; o problema é que em Portugal há falta de planeamento que dê formação a profissionais portugueses).
Não se trata de acusar a Espanha de agressividade. Trata-se, sim, de acusar o Estado Português de ter uma visão destrutiva, apática, inconsequente, do que o nosso país deve fazer. Não é a Espanha a culpada!
Da nossa integração europeia, têm resultado algumas agressões culturais (História, Língua, etc.) e comparações económicas sempre vistas como desmobilizadores e não como objectivos de “avanço” do País, que vão contribuindo para criar sentimentos de inferioridade com reflexos graves na auto-estima e na vontade nacionais, a nível cultural, social, histórico, e, claro, económico.
Vou chegando ao fim, não sem confessar que, nestes três últimos parágrafos, me inspirei numa carta publicada no “Expresso” no passado dia 5 de Janeiro de 2002. As minhas desculpas aos autores, mesmo porque não partilho de muitas outras opiniões expressas na mesma carta!!!
Leitores partidários de uma União Ibérica: a vossa opinião é legítima. Não pretendo julgá-la, mas somente expressar uma outra opinião, que julgo ser também legítima.
Pensava dizer algo a respeito do Alentejo, mas o texto já vai longo. Ficará para outra ocasião!


Estremoz, 24 de Janeiro de 2003

Carlos Eduardo da Cruz Luna

domingo, setembro 28, 2003

O Sexo dos Anjos

Alguns amigos estranham o que chamam o meu afastamento da actualidade; ando em fuga, pairando pelas nuvens do intemporal.
Porém, o certo é que, muito embora nunca tenha sentido medo de arregaçar as mangas e sujar as mãos, ando sem estômago para o presente.
A actualidade deprime-me.
Nada como valer-me de Eça, recorrendo ao inesgotável manancial de “Os Maias”, para explicar tudo em condições.
O que eu sonhei, como Carlos da Maia e João da Ega, que também deixaram frustrar o sonho, foi uma “Revista de Portugal”; e a actualidade que me referem cabe inteirinha na “Corneta do Diabo”, onde Dâmasozinho Salcede vomitou o seu ódio.


Citando João de Barros

As armas e padrões portugueses postos em África e em Ásia e em tantas mil ilhas fora da repartiçam das três partes da terra, materiaes sam, e pode-as o tempo gastar: peró nã gastará doutrina, costumes, linguagem, que os portugueses nestas terras leixarem."

(João de Barros, "Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem")

sábado, setembro 27, 2003

Neste Domingo, 28 de Setembro:

Santa Missa segundo o rito tradicional latino-gregoriano:

Em Lisboa: às 11 horas, no Priorado São Pio X
Estrada de Chelas, 29-31

Em Monforte: às 18. 30 horas, na Capela Nossa Senhora Rainha de Portugal
Avenida General Humberto Delgado, 3

Os portugueses do paleolítico

Não, não me refiro a uns hominídeos que encontramos por aí à solta; falo mesmo dos nossos antepassados dos tempos da pré-história. Pois fiquem a saber todos os interessados, eruditos ou simples curiosos, que escavações arqueológicas em curso na região de Torres Novas, em grutas do Almonda, parecem constituir chave essencial para a compreensão do Paleolítico.
Os arqueólogos lusos lançaram-se à descoberta dos segredos dos nossos longínquos ascendentes, e dizem que nas grutas do Almonda encontram-se escondidos trezentos mil anos de história.
Vem tudo num excelente trabalho da revista “Visão”, que recomendo aos devotos do passado pré-histórico – e do saber em geral, que como se sabe não ocupa lugar.
Por vezes traz cefaleias, mas pior que tudo é o vácuo em cabeças vazias.

Outra de Nelson Rodrigues

"Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três desertos."

sexta-feira, setembro 26, 2003

A Nossa Senhora de Aires

Para replicar ao modernismo de Almada, nada melhor que regressar à simplicidade rústica do povo – que produz arte, às vezes tão moderna quanto eterna.
No tempo em que fui a primeira vez à feira de Aires, no descampado dos arredores de Viana onde o Venerando Arcebispo D. Xavier Botelho de Lima plantou um santuário que imita a Basílica da Estrela (mas onde os sábios Mário de Saa e Leite de Vasconcelos asseguram que havia lugar de culto desde os tempos romanos e pré-romanos), os automóveis ainda eram muito poucos. E as estradas também não eram muitas.
Acontecia por isso que os devotos de toda a vasta área de irradiação do culto à Senhora de Aires, ou os simples feirantes, acorriam de todos os lados em carroças, de burro, a cavalo, ou a pé – conforme as possibilidades de cada um.
Partiam caravanas de Évora, ou da Cuba, ou de Portel ou - imagine-se!- da Moita, bem junto do longínquo Tejo.
Passava-se a noite, ou noites, no caminho, e acampava-se no local, por entre as hortas e quintas que circundavam Viana.
Os lavradores da região não faltavam, dada a sua íntima relação com o culto, desde os primórdios deste.
Era o grande acontecimento que marcava o último fim de semana de Setembro no Alentejo central.
Ia-se fosse para passear, fosse para comprar as sementes para o ano, ou uma sachola, um arado, ou uma botas, ou para cumprir uma promessa, ou deixar um ex-voto de agradecimento pela cura de uma mula.
Nesses anos sessenta generalizou-se a oferta da fotografia dos mancebos que partiam para o Ultramar, para que a Senhora os protegesse, enchendo-se com elas as paredes do interior do Santuário.
Foi assim que conheci a romaria desde a minha mais tenra idade, pela mão de meu avô, que nunca faltava um ano.
No dia da festa a procissão era à volta da igreja, e as cantigas e danças também.
Os grupos de cantadores rivalizavam então em afinar as vozes e acertar o tom no louvor à padroeira, em quadras de ingénua devoção, misturada com uma ou outra malandrice.


A Nossa Senhora de Aires
Está metida num deserto
Em chegando a mocidade
Me parece o céu aberto

Me parece o céu aberto
Com toda a sua gentinha
Fui solteiro vim casado
Foi milagre da santinha

Foi milagre da santinha
Foi milagre que ela fez
Pró ano se Deus quiser
Hei-de lá ir outra vez

A nossa santinha de Aires
É a virgem bela e pura
É a nossa padroeira
Para as horas de amargura

A Nossa Senhora de Aires
Está metida num deserto
Em chegando a mocidade
Me parece o céu aberto.



Lembrar o que se esquece, desocultar o que se esconde

O Casino do Estoril recebe, esta sexta-feira, uma gala de recolha de fundos para a criação de um Centro de Dia para doentes de Alzheimer.
A iniciativa da Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes de Alzheimer (APFADA) surge no âmbito do Dia Mundial do Doente de Alzheimer (21 de Setembro) e visa recolher fundos para a construção do segundo Centro de Dia no país e um futuro Lar para doentes de Alzheimer.
A presidente da APFADA, Maria Rosário dos Reis, lembra que é «fundamental sensibilizar o público» para os problemas desta doença que afecta mais de 60 mil pessoas em Portugal e que, perante a ausência de apoios específicos do Estado, a angariação de fundos nestas iniciativas ganha «importância acrescida».
Graças à colaboração da Câmara Municipal de Lisboa e da Misericórdia da cidade, a APFADA inaugurou recentemente o primeiro Centro de Dia em Portugal, com capacidade para 12 utentes.

quinta-feira, setembro 25, 2003

Língua portuguesa



Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!


Olavo Bilac

quarta-feira, setembro 24, 2003

O ex-covarde



Entro na redação e o Marcelo Soares de Moura me chama. Começa: - "Escuta aqui, Nélson. Explica esse mistério." Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: - "Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?" Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: - "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas "confissões". É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: - Por quê?"
Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcelo foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: - "É uma longa história." O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Couto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcelo me fustigava: - "Por quê?" Quero saber: - "Você tem tempo ou está com pressa?" Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcelo já estava insuportável.
Começo assim a "longa história": - "Eu sou um ex-covarde." O Marcelo ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a tv. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.
Marcelo interrompe: - "Somos todos abjetos?" Acendo outro cigarro: - "Nem todos, claro." Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salve e só Deus sabe como. "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça nem por acaso.
O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira. Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a "Razão da Idade". Somos autores da impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total.
Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. O medo é tão criminoso que, outro dia, seis ou sete universitários curraram uma colega. A menina saiu de lá de maca, quase de rabecão. No hospital, sofreu um tratamento que foi quase outro estupro. Sobreviveu por milagre. E ninguém disse nada. Nem reitores, nem professores, nem jornalistas, nem sacerdotes, ninguém exalou um modestíssimo pio. Caiu sobre o jovem estupro todo o silêncio da nossa pusilanimidade.
Mas preciso pluralizar. Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. É o medo que faz o Dr. Alceu renegar os dois mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a "Grande Revolução" russa. Cuba é uma Paquetá. Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongs, cubanos, chineses. Ninguém acusa os jovens e ninguém os julga, por medo. Ninguém quer fazer a "Revolução Brasileira". Não se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietnã. Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até como valor plástico.
Eu falava e o Marcelo não dizia nada. Súbito, ele interrompe: - "E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?" Eu já fumara, nesse meio-tempo, quatro cigarros. Apanhei mais um: - "Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos etc, etc. Na guerra, ouvi um comunista dizer, antes da invasão da Rússia: - "Hitler é muito mais revolucionário do que a Inglaterra." E eu, por covardia, não disse nada. Sempre achei que a história da "Grande Revolução", que o Dr. Alceu chama de "o maior acontecimento do século XX", sempre achei que essa história era um gigantesco mural de sangue e excremento. Em vida de Stalin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o anti-homem. Achava que o Capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor do que o Socialismo e sublinho: - do que a experiência concreta do Socialismo.
Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Primeiro, foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era "filho de Mário Rodrigues". E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: - "Essa bala era para mim." Um mês depois, meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Correias, ouvi a sua dispnéia. E minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: - "Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário." Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, a sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio.
Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato. Mas disse tudo. Minha filha era cega.
Eis o que eu queria explicar a Marcelo: - depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: - "Sou um ex-covarde." É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra "Muerte", já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol - posso chamá-los, sem nenhum medo, de "jovens canalhas".

Nélson Rodrigues
In "A cabra vadia (novas confissões)", Livraria Eldorado Editora S.A., Rio de Janeiro, s/data, págs. 7-10.

terça-feira, setembro 23, 2003

Alguém sabe do Costa?

Como os meus leitores já terão notado, neste blogue não se fala de política.
É coisa que aqui não entra.
Mas desta vez não resisto a dar conta de questão da maior transcendência, e que me anda a deixar deveras preocupado.
Trata-se do mistério da desaparição do Costa.
Os leitores lembram-se certamente quem é: aquele rapaz moreno que estava sempre à frente da bancada parlamentar do PS. E antes até tinha sido ministro. E depois até chegou a ser falado para eventual chefe do agrupamento, na hipótese cada vez mais provável de Ferro ser lançado ao ferro-velho.
Pois há que tempos que levou sumiço o promissor ornamento da nossa classe política. Foi um ar que lhe deu.
E a coisa parece intrigante, se repararmos no carácter repentino da saída de cena - e ainda mais se lembrarmos que não há muito, quando da tragédia de Paulo Pedroso, foi o Costa a assumir o protagonismo, e a pagar as despesas, surgindo na célebre conferência de imprensa, desdobrando-se em declarações e entrevistas, andando num virote da Procuradoria para a Presidência e do Parlamento para o Largo do Rato, entrando em todos os telejornais dia sim dia sim, sempre sempre ao lado de Ferro.
Inseparáveis, até nos telefonemas.
Súbito, o Costa desapareceu, sem dar novas nem mandados. Não há quem o veja. A única notícia a que deu origem ainda adensa mais o mistério: o próprio fez transpirar para os jornais que encarava com bons olhos a possibilidade de um lugar em Bruxelas.
Ora digam lá se aqui não há gato!
O que descobriu o Costa que nós não sabemos?




Eurovotações

Não sei se os leitores conhecem uma velha anedota, mais ou menos como vou contar.
No final da actuação de um artista lírico pouco dotado, este à boca de cena agradecia os aplausos de circunstância que a fria assistência por delicadeza condescendente lhe dirigia.
Eis porém que na fila da frente um desconhecido membro do venerável público se esganiçava em “bravos”, entrava num frenesim de palmas, e de pé vá de gritar “bis, bis, bis, bis...”
E não havia meio de se calar.
Perante tamanha insistência, o surpreendido cantor lá acedeu – e de novo se ouviu a mesma música, e a mesma desafinação.
Finda a repetição, repete-se a cena: os demais assistentes que restavam bateram suavemente umas palmas deferentes, e o espectador da fila da frente entrava em paranóia ainda mais desenfreada: “bis, bis, bis, bis...”
Era tal a gritaria, e surgia tão despropositada, que um outro espectador do lado não resistiu a interpelar o primeiro – que raio de atitude vinha a ser aquela?
E o protagonista, sem interromper as palmas, e por entre os gritos de “bis, bis”, lá esclareceu o caso:
- “Há-de cantar até aprender!”
Ocorreu-me agora esta historieta a propósito do resultado de um recente referendo na Suécia, em que os votantes não agiram com a afinação desejada por quem tudo manda.
E vai daí já se fala em repetir a consulta popular.
Como todos sabemos, o caso nem é novo: já aconteceu na Dinamarca e na Irlanda, quando os eleitores também fugiram do tom na música que lhes apresentavam já escrita.
E a doutrina nem é exclusiva dos bonzos de Bruxelas; também por cá faz carreira a propósito de uns referendos que por aqui houve sobre aborto e sobre regionalização.
“Hão-de votar até aprender!”
Mais coerente e singela é a posição daqueles que, embora da mesma família, pugnam pelo banimento dos referendos – pelo menos para os assuntos de importância.
Explicam eles que com coisas sérias não se brinca – e o povinho não é de confiança.

segunda-feira, setembro 22, 2003

O primeiro Manifesto Futurista (a propósito de Almada)

1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade.

2. A coragem, a audácia, a rebelião, serão elementos essenciais da nossa poesia.

3. Até hoje, a literatura exaltou a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insónia febril, o passo de corrida, o salto mortal, a bofetada e o sopapo.

4. Declaramos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida com a carroçaria enfeitada por grandes tubos de escape como serpentes de respiração explosiva… um carro tonitruante que parece correr entre a metralha é mais belo do que a Vitória de Samotrácia.

5. Queremos cantar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada, por sua vez, em corrida no circuito da sua órbita.

6. O poeta terá de se prodigar, com ardor, refulgência e prodigalidade, para aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.

7. Não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um carácter agressivo pode ser considerada obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas, para reduzi-las a prostrar-se perante o homem.

8. Estamos no promontório extremo dos séculos!… Porque deveremos olhar para detrás das costas se queremos arrombar as misteriosas portas do impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós vivemos já no absoluto, pois já criámos a eterna velocidade.

9. Nós queremos glorificar a guerra, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias por que se morre e o desprezo da mulher.

10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo o tipo e combater o moralismo, o feminismo e todas as vilezas oportunistas ou utilitárias.

11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta; cantaremos o vibrante fervor nocturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas eléctricas; as gulosas estações de caminho-de-ferro engolindo serpentes fumegantes; as fábricas suspensas das nuvens pelas fitas do seu fumo; as pontes que saltam como atletas por sobre a diabólica cutelaria dos rios ensolarados; os aventureiros navios a vapor que farejam o horizonte; as locomotivas de vasto peito, galgando os carris como grandes cavalos de ferro curvados por longos tubos e o deslizante voo dos aviões cujos motores drapejam ao vento como o aplauso de uma multidão entusiástica.


Filippo Tomaso Marinetti

Cultura de excelência?

Ontem fui visitar o Evorasim.
Fiquei triste com a visita - o ponto a que chegou a blogosfera eborense!
Normalmente aprecio os escritos do Dr. Alberto Magalhães, seja pela qualidade da escrita seja pela exposição das ideias - ainda que delas discorde. E, acrescento aqui, por se tratar de pessoa que sempre me pareceu estimável, cordata e civilizada.
Mas hoje, Deus meu!
Ao primeiro olhar sobre o blogue senti-me satisfeito, desde logo por ir continuar activo o Evorasim, que faz falta, e depois por surgir nestas lides uma pessoa culta e inteligente (como é o Alberto Magalhães, e como é o Luís Carmelo).
Mas depois li; e ainda não posso crer no que li.
Não havia necessidade!
Que sentido faz o insulto desbragado em quem se apresenta a dizer que quer discutir ideias e projectos?
Porquê a agressão gratuita e não provocada como cartão de apresentação?
Porquê aquele radicalismo e aquela agressividade?
Depois de excluir a pontapé o Evorablog e o Chaparro, com quem quer falar o Evorasim?
E não digo mais nada; isto assim não!
Que continuem os blogues de Évora a tarefa começada, com serenidade e com firmeza, é o que desejo a todos.
Que páre, pense e se retrate, é o que gostaria de esperar do Dr. Alberto Magalhães.

domingo, setembro 21, 2003

Almada

Em dia de romarias (hoje foi o dia grande da romaria do Senhor Jesus da Piedade, junto a Elvas, e da Feira Franca de Avis, além das festas do Senhor Jesus dos Aflitos, bem perto de Évora, e ainda da feira de Ferreira e das festas populares na Amieira e na Oriola) encontrei um poemeto de Almada Negreiros notoriamente inspirado em experiência alentejana.
Que experiência concreta era essa desconheço, por ignorar na biografia do autor qualquer ligação ao Alentejo.
Aqui o deixo de brinde aos meus leitores cá da província (os outros também podem ler, evidentemente).
Almada Negreiros não será, talvez, um dos nossos maiores poetas do século XX; e também talvez não seja um dos maiores romancistas, ou um dos maiores dramaturgos, ou um dos maiores pintores – e também não foi um dos maiores decoradores, ou bailarinos ...
Mas tudo isso ele foi; e o conjunto multifacetado da sua pujante personalidade artística fazem dele um dos casos mais significativos da nossa cultura do século passado - incontornável, como se diz agora. Com ele e por ele irrompeu no nosso meio artístico o impacto revolucionante do Futurismo; muito mais do que Santa Rita Pintor, ou Amadeu, ou outro qualquer cuja obra e ideias ficaram circunscritas ao reduzidíssimo circulo em que se moviam, foi Almada que trouxe a modernidade para Portugal.
O “Manifesto Anti-Dantas” perfila-se visivelmente como uma sequela do “Manifesto Futurista”, a abanar os academismos domésticos; toda a frenética actividade de renovação empreendida ao longo de décadas por Almada permitem-nos afirmar que nada depois dele ficou igual ao que era.
Ele tinha a noção disso; lembro-me da irritação indignada com que esbracejava contra o “professorzinho do Wisconsin” que tinha escrito algures que com a morte de Fernando Pessoa a geração de Orpheu tinha ficado sem cabeça.
Faiscavam de fúria aqueles enormes olhos negros, vivíssimos sob a boina basca, a encimar o rosto enrugado - sempre estranhamente jovens, até ao fim – quando lhe lembravam essa, de Jorge de Sena.
Efectivamente, Almada, que prezava Pessoa, e o admirava, e tinha sido sempre seu amigo, não precisara nunca para nada da cabeça do outro – e sabia bem que a energia difusora da geração de Orpheu não estava no génio introspectivo e sorumbático de Pessoa, mas sim na capacidade de irradiação do próprio Almada.
Mas o prometido é devido; aqui fica o poema, para que saibam que o Alentejo também se dança.



Rondel do Alentejo



Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.


Meia-noite
do Segredo
no penedo
duma noite
de luar.


Olhos caros
de Morgada
enfeitava
com preparos
de luar.


Rompem fogo
pandeiretas
morenitas,
bailam tetas
e bonitas,
bailam chitas
e jaquetas,
são de fitas
desafogo
de luar.


Voa o xaile
andorinha
pelo baile,
e a vida
doentinha
e a ermida
ao luar.


Laçarote
escarlate
de cocote
alegria
de Maria
la-ri-rate
em folia
de luar.


Giram pés
giram passos
girassóis
os bonés,
os braços
estes dois
iram laços
o luar.


colete
esta virgem
endoidece
como o S
do foguete
em vertigem
de luar.


Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.


José de Almada Negreiros

sábado, setembro 20, 2003

O PROBLEMA DO LAZER

É este o mais curioso, e talvez o mais significativo dos problemas sociais de nossos tempos. O que fazer do saldo disponível de horas? Como vadiar? Psicólogos, economistas, políticos e sociólogos americanos já prevêem que o crescente desenvolvimento técnico trará, inevitavelmente, uma dilatação do ócio; e já se preocupam com tal perspectiva, pois parece admitido por todos que os mesmos homens que sabem fazer bombas e satélites, não sabem o que fazer de si mesmos nas horas de folga. Arma-se então "o problema do lazer".
E aí está um argumento a mais para os moralistas que vêem na técnica uma força de desumanização. Já foi dito que a máquina produz desempregos. Um trator é capaz de substituir dez ou vinte homens. É portanto, concluem, capaz de despedi-los. E o fenômeno realmente se verifica. Mas, por mais que se verifique a conclusão, não é menos falso o argumento que o anuncia. A concomitância não basta para determinar uma causalidade. O fato de haver desempregos onde surge a mecanização não prova que a causa do desemprego seja a máquina. A técnica, em si mesma, é essencialmente benéfica e libertadora. E é essencialmente humanizadora, ao contrário do que dizem alguns moralistas. A técnica imprime no mundo a marca da razão, que é o traço específico do homem. Uma planície com moinhos é mais humana do que uma planície atapetada de flores. Um mar com caravelas é mais espiritualizado do que um mar vazio de navegantes. E se isto é verdade para o moinho e para a caravela, verdade será também para a chaminé e para o avião. Não é a técnica que desumaniza o homem, é a filosofia errônea que o guia. Não é a máquina que produz o desemprego, é a defeituosa estrutura social que a utiliza. A máquina, por definição, é a racionalização do mundo físico, e portanto é aquilo que torna efetivo o senhorio do homem sobre as forças da natureza. Muitas vezes se observa um resultado a contradizer uma definição: o erro estará no modo de usar, e não na intrínseca natureza da coisa usada.
A polícia, por definição, é um instituto montado para promover a ordem da sociedade, mas já temos observado circunstâncias em que é a própria polícia que traz a desordem. Um exército, por definição, é um órgão destinado a garantir a segurança de uma nação; mas existem exércitos aparelhados para sua finalidade própria, que só funcionam como piramidal organização destinada a dar prestígio político a um oneroso mandarinato de generais. Tudo isso são sinais de enfermidade social, e não provas da malignidade daquelas instituições.
Agora a técnica dos países superdesenvolvidos traz um curioso problema. Liberta efetivamente o homem. Permite alta produtividade com menos horas de trabalho humano. Mas em vez de bater palmas o psicólogo coça a cabeça. Preocupa-se. O que irá toda essa gente fazer do tempo que sobra? O problema é real. O psicólogo tem razão de ficar preocupado. Mas isto — o fato de existir o motivo de preocupação — isto prova que a sociedade está padecendo de uma estranha enfermidade. Mais razoavelmente eram as ponderações sobre o desemprego, porque naquilo havia a estranheza de uma contradição. Os homens se preocupavam porque a máquina, que parecia um elemento de auxílio, mostrava-se como inimiga. Agora os homens ficam perplexos porque a máquina realmente liberta.
No fundo desse problema há um profundo e instintivo medo da liberdade. E esse medo, na superfície dos conceitos conscientes, aparece com os postulados de uma filosofia que é respirada, que é possuída e vivida pelos americanos e pelos russos. Segundo essa filosofia, o homem é essencialmente produtor. Realiza a plenitude de sua essência quando está produzindo. É homem, pleno homem, nas horas de eficiência. E daí se tira o conceito negativo de ócio e lazer.
Ora, por escandalosa que possa parecer tal afirmação é no ócio, no lazer, no descanso ou na vadiação que o homem atinge, ou pode atingir, a plenitude de sua condição. O trabalho, em outras palavras, não tem caráter de fim. É um meio. A vida humana está condicionada para o trabalho. Metafisicamente, é mais importante chegar à casa do que chegar ao local do emprego; é mais elevado, mais plenamente humano, levar o filho ao jardim zoológico, ouvir um quarteto de Bocherini, conversar com os amigos, do que ser general do exército, engenheiro ou presidente da república. Todos os títulos extrínsecos são inferiores ao título fundamental que todos possuem em casa, quando encontram o cerne de sua personalidade e recuperam o nome de batismo.
O pragmatismo que tornou maquinal o ilustre inventor de todas as máquinas, e que pretende tecnicalizar a própria vida do glorioso criador das técnicas, dá ao lazer um valor negativo, como o do sono, ou como o do repouso das máquinas. Mas o repouso humano não se define como interrupção do trabalho. Ao contrário, é o momento em que a vida ganha nova dimensão e recupera a plenitude da dignidade. E sobretudo é o momento em que a alma humana conquista a liberdade para o mais alto, para o mais humano tipo de atividade: o convívio afetivo, o exercício lúdico, a contemplação da beleza e da verdade. Completa-se o quadro, em pauta de ordem mais elevada, com a vida de contemplação e de oração.
A dignidade do trabalho não se mede com escala tirada do próprio trabalho, não se mede pela eficiência e pela produtividade. Mede-se pelos frutos que proporcionam, isto é, pela paz e pelo repouso que dão aos homens. É bom explorar as jazidas de petróleo para que em maior número os homens possam gozar os benefícios desse mineral, isto é, possam voltar para casa com conforto, ou levar a criançada ao jardim zoológico. Ver a zebra, ou passar a noite conversando com amigos, é a finalidade última que dá às refinarias e aos demais maquinismos sua verdadeira importância.
Mas os dirigentes americanos têm razão. O lazer é um problema, ou melhor, tornou-se um problema numa sociedade que respira pragmatismo. São bem fundados os receios dos dirigentes que não vêem com bons olhos o saldo de liberdades. É preciso, desde já, preparar os povos para um regime de vida mais folgada... Veja o leitor como é estranha a vida e como é esquisito o mundo. Se há apertos, haverá o problema do aperto; se há folga, o problema será o da folga. Outro dia, aparteando um conferencista que gabava os prodígios dos "cérebros eletrônicos", que resolvem mil e um problemas, lembrei uma frase impaciente do grande Einstein. "Esta máquina — disse o sábio — resolve todos os problemas, mas não é capaz de armar um só". Em outras palavras: a máquina responde, mas não é capaz de uma coisa maior: não interroga. Em compensação, nisto o homem é exímio. É capaz de armar problema sobre o que não parecia ser problemático.
E não se diga que o problema do lazer é só dos abastados. Será dos povos abastados, mas aí a todos interessará. Não é do ócio dos ricos que estão cuidando os dirigentes americanos; é do ócio de todos. Mas o que entrevi do problema não me tranqüilizou. Ou melhor, me trouxe outro problema: o problema dos psicólogos, políticos e sociólogos que estão abordando o problema do lazer. A tendência geral, ao sabor da mentalidade americana, é a de promover os recursos e meios para encher o tempo disponível. Eles querem organizar, ao lado da máquina da produção, a máquina do passa-tempo. A solução verdadeira, a única a rigor, está no desenvolvimento espiritual que deve acompanhar o desenvolvimento técnico. Se isto não for feito nós veremos um mundo em que a força espiritual dos homens, numa espécie de magia como a do "Retrato Oval" de Edgar Poe, se transferirá para as máquinas. Mas não é esse caminho o da valorização do lazer, que estão tomando. Ao que parece, a solução procurada está na linha do divertimento e do passatempo. E não há maneira mais imprópria, mais anti-humana de resolver o problema das horas livres. A rigor, o modo correto de resolver o problema é o de providenciar para que não haja técnico. Se isto não for feito no esquema pragmático, o lazer será sempre, definitivamente um problema, um medíocre e triste problema. Onde iremos hoje? E amanhã? Consultemos o cardápio oficial, tiremos para o caso peculiar de nossos nervos e de nosso orçamento, uma dieta de prazeres que nos escamoteiem as horas que sobram.
Ao leitor que porventura, ou por desventura, supõe que o divertimento e a atividade lúdica são a mesma coisa, eu direi, com ênfase, que está enganado. A experiência lúdica tem qualquer coisa de uma experiência poética, e assim possui um alto teor de realização; o divertimento, ao contrário, é evasão. É claro que na linguagem comum, o termo "divertimento" muitas vezes se emprega para significar os mais legítimos e puros atos lúdicos, ou as mais genuínas experiências poéticas, mas em geral significa aquilo mesmo que aqui definimos como evasão e massacre de tempo. E se o leitor quiser saber o que penso desse esquema de matar o tempo, releia o seu Pascal. Lá verá, num denso e definitivo resumo, toda a filosofia do divertimento; e então se convencerá que não há pior receita para um povo e para uma civilização do que esta que está em vigor nos países superdesenvolvidos: produzir e divertir-se.

Gustavo Corção

sexta-feira, setembro 19, 2003

O "Futuro Presente"

Recebi hoje um novo número da revista “Futuro Presente”.
Como sempre, abri o envelope com a emoção de quem recebe notícias da família - distante apenas no espaço, sempre presente nos afectos e nas memórias.
Acompanhei a revista desde o seu início, há mais de vinte anos, no escritório de Ernesto Moura Coutinho, na Rua de São Nicolau, perto da Boa Hora e da Rua Nova do Almada.
Vivi com entusiasmo, nessa fase dos primórdios, a aventura do Jaime Nogueira Pinto, obreiro dessa que foi, e continua a ser, a única revista de ideias produzida pela nossa “droite buissonière”.
Depois os imperativos do destino foram-me afastando; sem que nunca tenha deixado de acompanhar, tanto quanto me foi possível, o que se ia fazendo. E entendo deveras que estou em dívida, sobretudo com o Jaime, mas também com todos os que têm feito com que a revista continue a aparecer, e com as exigências de qualidade que a marcaram desde o princípio (para com o Jaime tenho aliás outra dívida de gratidão, essa mais pessoal – mas que de igual modo não esqueço).
Neste número, já o 53-54, destaca-se a colaboração de José Luís Andrade, continuando os seus estudos sobre a Guerra Civil de Espanha (a paixão pelo tema, e pela figura de José António Primo de Rivera, apanhou-a por contágio do José Miguel Júdice, há exactamente trinta anos), de Miguel Freitas da Costa, incomparável de cultura, estilo e elegância, quer fale de cinema, de história ou de literatura, de Rodrigo Emílio, dissertando sobre Jacques Laurent, Roger Nimier e toda a geração de hussardos que desde a sua juventude (do Rodrigo) claramente constituem gente da sua mais próxima família espiritual, de Roberto de Moraes, sobre o olvidado Mouzinho, de Bernardo Calheiros (que faz o Bernardo em Budapeste?), de Francisco Ribeiro Soares, de Marguerite A. Peeters ... além do senhor Director, Jaime Nogueira Pinto, perplexo nas suas “Grandes Dúvidas”.
Como acontece por vezes quando temos notícias da família, ficam também algumas lágrimas: pelas palavras sentidas do Roberto de Moraes, que com ele partilhava antiga amizade e o entusiasmo pelos temas militares, pela história, pela Prússia, por Jünger (creio que o Roberto foi o único português a realizar e publicar uma entrevista com Jünger, feita na sua célebre casa da Floresta Negra) fiquei a saber da morte de Armando Costa e Silva.
Um a um, um atrás de outro, vão-se sumindo os Hussardos”... Não mais noites de discussão e cerveja, até ao fechar da Trindade ....
Armando Costa e Silva, diz o Roberto, tinha acabado de traduzir a obra de Ernst Jünger “Der Kampf als Inneres Erlebnis” (A Guerra como Experiência Interior”), quando a morte o encontrou. Espero ao menos que esse trabalho não seja em vão, e que em breve nos surja o fruto, em edição que faça justiça ao autor e ao tradutor.
Para os interessados na revista fica o endereço postal: “Futuro Presente – Associação Cultural, Rua do Corpo Santo, n.º 16, 3º, 1200-130 Lisboa” (não têm um miserável endereço electrónico que nos permita contactar pelos novos meios, o Jaime é um velho reaccionário desconfiado e demora muito a aceitar estas modernices).

quinta-feira, setembro 18, 2003

A universidade

Um dos meus grandes desgostos de amor foi com ... a Universidade.
Sim, é verdade: em tempos idos também eu padeci de forte paixão por essa rapariga.
A desilusão principiou logo quando aluno; se no começo ia religiosamente às aulas, embevecido perante o presumido saber dos mestres, muito cedo as abandonei, passando ao que então se chamava “método de avaliação final” (isto é, apresentava-me a exame e logo se via).
Na verdade, as aulas eram com inaudita frequência mero papaguear de lições já publicadas, reprodução monocórdica do livro tal, de fls. tal a fls. tantas.
Assim como assim estudava em casa ou na biblioteca.
Mas ainda eu não tinha visto nada. Finda a licenciatura obrigatória, crítico mas ainda iludido, aconteceu-me passar para o outro lado.
Continuava a dominar o método sebenteiro, e se em Lisboa assim era em Coimbra era assim.
Foi o choque total; juro que me empenhava, queria por força que as minhas aulas dessem aos alunos alguma coisa que os servisse, procurava estudar e transmitir o melhor que era capaz.
Mas a atitude era insólita; no meio docente a cultura e a prática rejeitavam com espanto qualquer preocupação didáctica. Isso é para os meninos; estes já são grandes, estudem e aprendam sozinhos...
Acrescia o mais absoluto desprezo e indiferença pela canalha discente; era vulgar a planificação de aulas para disciplinas onde estavam inscritos seiscentos alunos para espaços onde cabiam cem ou duzentos... e a explicação era simples: havia um pressuposto certo, eles não punham lá os pés.
Nem valia a pena, com efeito: o ensino continuava a ser o mesmo triste exercício de debitar as lições já escritas, com respeito até pelas gralhas, e aconselhar a compra respectiva.
Por vezes, servia de alibi ao afastamento liminar da pedagogia e da didáctica (coisas com que um professor universitário que se preze não pode desperdiçar o seu valioso tempo) a sua contraposição à alegada “qualidade científica”. Ou seja, o elevado nível científico, resultantes do estudo e da investigação que são próprios da instituição, não eram compatíveis com tais minudências.
Mas a fraude saltava aos olhos de quem quer que frequentasse o meio por dentro. A regra era a incompetência e o desleixo.
Os dignos carreiristas universitários em geral trabalhavam apenas e só quando a isso obrigavam as exigências da carreira; para o Mestrado, para o concurso, para o curriculum, para o Doutoramento ... alcançados os objectivos logo se parava, e colhiam-se os louros (em turbo-universidades, em rendosos pareceres e consultadorias, em pomposos escritórios de advocacia de negócios...)
Pior do que isso era a habilitação por afinidade; por ser filho de fulano, mulher de beltrano, do partido de sicrano, da loja do mano ...
Desisti, incompatibilizado com tudo e com todos. Fiquei de coração destroçado com a desilusão – e nunca mais lá pus os pés.
Vieram-me agora estas amargas reflexões porque um vizinho aqui do lado, o meu desconhecido amigo Alexandre Franco de Sá, anda a queixar-se do pouco tempo e muito trabalho que tem para preparar um doutoramento.
Mas para que quer ele um doutoramento?


quarta-feira, setembro 17, 2003

PADRE ANTÔNIO


Numa cidadezinha perdida e esquecida, lá nos confins deste tão imenso Brasil, existe uma igreja quase sem existir. Em torno, mil ou duas mil almas mais ou menos desalmadas; dentro, um velho vigário a fazer contas intermináveis, e um padre coadjutor, na sacristia, a olhar o morro, a linha férrea lá longe, o rio, talvez o céu.
Já traz cinzas na cabeça e uma curvatura nas costas, mas naquele momento o que mais lhe pesa é a solidão que cerca a velhice que se aproxima. Está ali. Não é nada. Não sente forças para fazer nada pela vila indiferente que quer viver sua vida rotineiramente encaminhada para a morte. Sente-se inútil a mais não poder. Quer que ele celebre a única missa da féria, e com uma só porta apenas entreaberta. Precaução aliás inútil porque ninguém mais aparece nas missas dos dias da semana. O povo não gostou quando o vigário tirou os santos que há mais de cem anos povoavam a velha igrejinha. Diminuiu a assistência à missa, diminuíram as confissões. A conversa com o vigário, na hora do jantar, reduz-se a monossílabos.
Padre Antônio torna a pensar nas coisas que se perderam: a água benta, a oração do terço à noite, os santinhos que dava aos moleques na rua com magnanimidade, e tudo o mais que fazia companhia, que cercava a alma da gente nas igrejinhas da roça. Por que esta devastação? O vigário não gosta de abordar o assunto. Sofre a seu modo, com a tenacidade obtusa dos animais feridos. Cerra os dentes. Não pensa. Não fala. Faz o que o bispo mandou fazer e encerra-se num mutismo quase vegetal. Às vezes parece ter gosto de transmitir seu sofrimento fazendo um outro sofrer. É seu modo de conversar, e quem paga é padre Antônio.
Um dia padre Antônio não encontrou sua velha batina e teve de pedir uma explicação a d. Ana e ao vigário. Explicaram-lhe que estava imprestável. Ganharia nova batina? Não. Clergy-man também é muito caro. Padre Antônio deveria comprar na loja do João Mansur umas calças de lonita e duas camisas esporte. E é com esta roupa pobre que padre Antônio agora se debruça na janela e consulta o infinito. Pobre, pobre padre Antônio. Ele nunca foi propriamente vaidoso e preocupado com a roupa que haveria de vestir, como aconselha Nosso Senhor. Mas essa história da batina doía-lhe ainda como se estivesse em carne viva, como se lhe tivessem arrancado a pele. E o pior é pensar que é com esta roupa por baixo, esta roupa de rua, esta roupa sem bênçãos que deve celebrar a Santa Missa. Disseram-lhe que era mais prático usar uma só alva por cima do traje esporte. E esta alva não era mais daquelas antigas, rendadas e compridas. Padre Antônio não queria as rendas para si, já que era desgracioso e escuro: queria-as para enfeitar o louvor de Deus. Mesmo porque, descontada alguma andorinha, nenhum ser vivo aparecia para assistir ao Sacrifício de nosso Salvador. Nem valia a pena bater a campainha. As novas alvas não têm rendas. São ordinárias e curtas, sim, curtas, porque o importante é aparecerem as calças para todo o mundo ver que o padre é homem, como outro homem qualquer.
Está na hora de preparar a missa da tarde, e padre Antônio sente a tristeza aumentar. Está só. Está só. Não tem com quem falar. Poderá conversar na farmácia com a turma do gamão do Frederico, mas depois a volta para a casa é ainda mais pesada. Poderá perguntar a d. Emília se está melhor do reumatismo, e a d. Maria se o marido já voltou do Rio. Mas não tem ninguém com quem possa falar, com quem possa desabafar, a quem possa explicar a desmedida tristeza de vestir por cima das calças uma alva sem rendas, e a quem possa dizer a saudade que tem da batina preta, a batina bendita em que um dia amortalhara o homem velho para viver em Cristo Nosso Senhor. E não tem ninguém a quem possa perguntar tremendo: «O que é que está acontecendo em nossa Igreja? E o Papa?» Ou então alguém, um irmão, um padre, a quem possa dizer com medida indignação: «Não pode ser! Não pode ser! As portas do inferno não prevalecerão!»
Padre Antônio olhou mais uma vez para o horizonte que a noite já escondia. O mundo começava além daquela serra... O mundo! Padre Antonio curvou a cabeça como um condenado. Estava preso! Estava preso! Abriu então as duas mãos grandes e magras que considerou com triste ternura: um dia elas tinham recebido o poder de consagrar o Pão e o Vinho, e de trazer assim ao mundo, como a Virgem Santíssima, o Corpo de Deus. Mãos grandes, mãos nervosas e escuras, mãos consagradas. Ao menos esta pele não lhe arrancam, esta marca não lhe tiram.
Num desamparo infinito padre Antônio contemplava as duas mãos frementes, tão poderosas e tão inúteis. Turvava-se o espírito, vacilava a razão e a fé. Estão ali as mãos. E o resto. E a água benta? o Latim? as coisas da Igreja? As palmas inúteis não respondiam às suas indagações, e até pareciam pedir-lhe uma resolução, uma decisão, já que a mão foi feita mais para fazer do que para pensar... O que é isto? O que é isto nas palmas das mãos? Estará chovendo? Padre Antônio, padre Antônio, o senhor está chorando. Quem foi que falou? Ninguém. Ninguém. É o próprio padre Antônio que tomou o costume de falar com o padre Antônio.
Juntam-se as mãos. E das profundezas dos abismos que todos trazemos, mesmo debaixo de uma camisa esporte, subiu um clamor de aflição: «Usquequo exaltabitur inimicus meus super me? Respice et exaudi me! Respice et exaudi me! Respice et exaudi me, Domine Deus meus...».
E então, neste momento infinito, padre Antônio teve a incomparável certeza de que não estava só.

(artigo de Gustavo Corção)



terça-feira, setembro 16, 2003

Sobre pedofilia

Nunca se tinha falado tanto sobre pedofilia.
E, como notam mesmo os menos atentos, tem sido visível o embaraço de muita esquerda quanto ao tema. E é natural, digo eu, lembrado do que foi durante tantos anos a teorização da “libertação sexual”, desde o famigerado Wilhelm Reich ao idolatrado Sartre. São muitos anos de luta contra a “repressão sexual” e a “moral burguesa”.
Para esse peditório quero eu aqui deixar um pequeno contributo.
No princípio de 2001, em Berlim, durante o julgamento de Hans-Joachim Klein (Klein foi sentenciado a 9 anos de prisão por estar envolvido em ataques terroristas, nomeadamente a tomada de reféns na sede da OPEP em Viena, em 1975, onde morreram três pessoas) vieram a lume factos sórdidos sobre alguma élite política desta nossa União Europeia.
Os factos mais badalados trazidos então à discussão foram sobre Daniel Cohn-Bendit, deputado no Parlamento Europeu, e coqueluche da extrema esquerda desde há trinta e cinco anos. Daniel, tal como o ministro alemão Joschka Fischer, foram testemunhas no julgamento deste velho companheiro.

A relevância do caso está em que Daniel Cohn-Bendit, aliás Dany Le Rouge, é um símbolo do Maio de 68. E foi também, na década de 70, um defensor público da pedofilia.
No julgamento de Klein, acima referido, e para ajuda à defesa do arguido, militante de extrema-esquerda, estiveram em foco algumas passagens de um livro de memórias de Cohn-Bendit, "Le Grand Bazaar", publicado em França em 1975 (que curiosamente não encontro agora, passado o escândalo, entre a bibliografia do autor mencionada nos sítios que lhe são afectos, nos quais se encontram geralmente referidos apenas “Nous l’avons aimée la révolution”, “Une envie de politique” e “Xénophobies”).
Este livro, além do mais, descrevia as experiências desse "líder radical", com crianças, em Frankfurt, onde vivia depois de ter sido expulso de França.

No seu livro de memórias Dany Le Rouge descreve de uma forma perturbadora e em pormenor as suas relações com algumas das crianças que tinha sob sua responsabilidade. Para ilustração, refere experiências que teve com uma menina de 5 anos, que estava ao seu cuidado, assim como relatos chocantes sobre experiências sexuais com crianças do jardim-escola alemão, onde trabalhava.

No livro podem ler-se confissões deste teor: "Aconteceu várias vezes certas crianças me abrirem a braguilha e começarem a tocar-me. Eu reagia de diferentes maneiras, conforme as circunstâncias, mas o desejo delas punha-me diante de um problema. Eu perguntava: 'mas por que vocês não brincam juntos? Por que me escolheram a mim, e não a uma outra criança? Mas elas insistiam, e eu, apesar de tudo, acariciava-as.”
O livro foi bastante criticado quando foi publicado, nesse longínquo ano de 1975. Mas ainda assim dois anos depois, em 1977, algumas das mais celebradas figuras da intelectualidade “gauchiste” parisiense, incluindo Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Michel Foucault, Jacques Derrida, Philipe Sollers, Jack Lang e Bernard Kouchner (estes dois foram anos mais tarde ministros socialistas da educação e da saúde), assinaram uma petição colectiva onde se apelava à legalização das relações com menores (pedofilia, digo eu), a pretexto dos processos contra três homens condenados por atentado ao pudor nas pessoas de menores com 12 e 13 anos de idade – isto, claro, em nome da liberdade.
Na mesma época outro intelectual conhecido, Gabriel Matzneff, colaborava regularmente no “Le Monde” e era habitual convidado das televisões, onde defendia as suas ideias sobre … "une pédophilie active". Sem que suscitasse reacções de maior, diga-se.
A polémica sobre Cohn Bendit, deputado europeu eleito em França pelos Verdes (o homem tem dupla nacionalidade franco-alemã) atingiu o rubro, primeiro na Alemanha e depois em França, nessa época de Janeiro-Fevereiro de 2001, quando surgiram estas mesmas acusações lançadas publicamente por Bettina Röhl, que tem a autoridade e o conhecimento que resultam de ser filha da famosa terrorista Ulrike Meinhof – e resolveu disparar contra Cohn Bendit e o íntimo amigo deste Joschka Fischer, também antigo militante de extrema esquerda reconvertido em dirigente Verde (e actual Ministro dos Estrangeiros).
Interpelado em Fevereiro de 2001 a este respeito, Daniel Cohn Bendit desmentiu ter praticado qualquer acto pedófilo e explicou que os seus escritos “reflétaient l'esprit de l'époque” e que se tratava de mera "provocation contre le bourgeois”.
O deputado e Presidente dos Verdes, e candidato à Presidência da República, Noel Mamére, veio em socorro de Dany afirmando que a publicação destes extractos do livro tantos anos depois não passava de “trash journalisme”.
O institucional porta-voz do esquerdismo de bom tom, “Libération”, sentiu-se obrigado a vir a terreiro, pela pena do seu fundador e director, Serge July, para lastimar essas posições que, diz ele, “malheuresement” serviram para legitimar “des pratiques parfois criminelles" sobre crianças.
Resta acrescentar que Cohn-Bendit esteve sob investigação na Alemanha durante vários anos, mas só poderia ser processado se o Parlamento Europeu suspendesse a sua imunidade – questão que nunca se pôs.


Silva Tavares

Poucas cidades terão inspirado tantos poetas como a nossa querida Évora; dos mais conhecidos no presente, são geralmente citados poemas de Florbela, Torga, Sophia, Manuel Alegre.... mas andando para trás sempre foi assim.
Já Camões não resistiu a exaltar “a nobre cidade, certo assento/ do rebelde Sertório antigamente”, onde “as águas nítidas de argento” vêm de longe sustentar “a terra e a gente”, “pelos arcos reais, que cento e cento, nos ares se alevantam nobremente”.
Hoje lembro alguns versos de um poema menos conhecido, do poeta estremocense Silva Tavares. Não será um poeta maior, mas também teve os seus momentos de aclamação e glória, aí há uns sessenta anos atrás.


Évora

Quando nós nascemos, Évora velhinha,
- nós, Nação que há oito séculos estua! –
quantos anos tinha
cada pedra tua?

Évora das fontes a chorar baixinho;
Dos arcos, dos nichos, da luz forte e crua:
- Sempre que te vejo prende-me ao caminho
cada pedra tua!

Évora das horas lânguidas de calma;
Dos brancos silêncios na casa e na rua:
- Eu não acredito que não tenha alma
Cada pedra tua!

Évora! – Sacrário místico da Raça
Que nos enternece, que nos perpetua:
- É jóia sem preço, diamante sem jaça
Cada pedra tua!

Évora dos pátios, eirados, cisternas;
Das graças discretas que a luz acentua;
- Possui o segredo das coisas eternas
cada pedra tua!

segunda-feira, setembro 15, 2003

A filosofia do nem nem


Parece ser difícil um homem apresentar-se, positivamente, por aquilo que é.
Já em tempos idos, num texto inolvidável de uma revista inolvidável, o “Tempo Presente”, dedicou-se o Goulart Nogueira a desancar a “filosofia do nem nem”.
Passadas décadas, a mesma escola prospera. É vê-los por aí: nem nem, nem nem, nem nem, nem nem, nem nem, nem nem ...
Lembram limpa pára-brisas em movimento.
Nem tanto ao mar nem tanto à terra, nem oito nem oitenta, nem sim nem não, nem frio nem quente, nem carne nem peixe, nem esquerda nem direita, nem comunismo nem fascismo, nem o pai morre nem a gente almoça..... Arre!



“Soutenir Bertrand, sans juger”

Estive a ver num canal de televisão francês, por breves momentos, parte de um debate sobre um acontecimento que recentemente chocou a opinião pública gaulesa: o bárbaro homicídio da jovem e bonita actriz Marie Trintignant, filha de Jean-Louis Trintignant, às mãos do seu companheiro, o cantor Bertrand Cantat, do grupo rock “Noir Désir”, num quarto de hotel em Vilnius.
Sabe-se que estas coisas tratando-se de gente conhecida têm logo outro destaque.
Mas o caso tem alguns condimentos adicionais a provocar o interesse mediático. E logo constatei que o solene debate, protagonizado por um friso de algumas senhoras com bom aspecto, não era movido pela comoção com a sorte da infeliz Marie Trintignant, espancada até à morte, com múltiplos traumatismos na cabeça desfeita, pelo bruto com quem vivia.
As razões da comoção tinham a ver com o Bertrand Cantat, agora preso, e que era um excelente rapaz, eterno militante de todas as boas causas, progressistas, já se vê, tal como acontece com o seu grupo, “Noir Désir”, ícone de todos os combates da “gauche caviar” parisiense nestes últimos anos. Numa palavra, “soutenir Bertrand, sans juger”, que era a palavra de ordem.
E a dada altura uma das senhoras, identificada como jornalista do “Le Monde”, recorda o caso acontecido com o celebrado filósofo do Maio de 68, Louis Althusser, que há poucos anos também matou a mulher, por estrangulamento. Também uma excelente pessoa, cujo importante “contributo teórico” não podia ficar manchado por tão infeliz acidente.
Achei a associação oportuna; mas a senhora continuou, explicando que tais ocorrências tinham uma forte “dimensão simbólica e artística”, que evidentemente não podia ficar esquecida.
E neste ponto desisti. Desliguei a televisão. Tanta complexidade não é para a minha cabeça.
A reconhecida superioridade intelectual da esquerda esmagou-me mais uma vez.


domingo, setembro 14, 2003

Casa ou não casa?

Por falar aqui há dias em Régio, lembrei-me de uma petit histoire que em tempos me contaram a mim (Couto Viana? Amândio César? Não me recordo).
José Régio, quando os afazeres lho permitiam, entre Portalegre e Vila do Conde, passava por vezes pelo Chiado, onde convivia com as tertúlias literárias da época, reunidas ali pela Brasileira, pela Sá da Costa, pela Bertrand.
E outro que de vez em quando aparecia, vindo lá dos confins do Minho, era Tomaz de Figueiredo, o olvidado autor de “A Toca do Lobo” e tantas outras páginas da mais robusta e vernácula prosa que a literatura portuguesa do século XX produziu.
Era Tomaz de Figueiredo amigo de José Régio. Todavia, com as suas permanentes preocupações de casticismo e pureza linguística, embirrava com o título da obra em que Régio consumiu largos anos da sua vida, “A Velha Casa”.
A construção gramatical bulia com a sua sensibilidade hostil a estrangeirismos.
Vai daí, e prolongando-se a publicação dos vários volumes de “A Velha Casa”, espaçados de anos, não resistia o rabujento Tomaz a um trocadilho implicativo. Sempre que encontrava o poeta do “Cântico Negro” disparava a mesma pergunta: “então oh Zé, a velha casa ou não casa?”

Feiras e romarias

Quase a chegarmos ao São Miguel, fim do ciclo agrícola, começo do novo ano, o Alentejo fervilha de feiras e festas, a encerrar o Verão.
No último fim de semana de Setembro teremos a rainha de todas as romarias da minha pátria de infância, a Feira d’Aires. Para ela convergem então todos os caminhos da planície.
Neste fim de semana em que estamos, e assim de repente, estou a lembrar-me que decorrem as tradicionais festas dos Capuchos, em Vila Viçosa, em honra do Senhor Jesus dos Aflitos e de Nossa Senhora da Piedade; a feira de Mora, com festival de folclore, mostra de gado e corrida de touros; a feira de Setembro, em Moura, com destaque para o artesanato e a apicultura; a nova feira Agro-Pecuária Transfronteiriça, entre Serpa e Mértola, com colóquios e animações várias; e as festas populares de Monsaraz, dedicadas ao Senhor Jesus dos Passos.
Entretanto, em Lisboa dizem-me que decorre o Sétimo Festival Gay e Lésbico.
Que lhes faça bom proveito. Cá não há nada disso: há por aí uns panascas e umas fufas mas são discretos e recatados e não têm pretensões intelectuais; nem fazem festivais.
Gays e lésbicas... dizem que por vezes aparecem aí alguns, aos fins de semana, mas vêm pela auto-estrada e vão-se logo embora.

sábado, setembro 13, 2003

Maldades

Título maldoso da TSF: “Vitorino fora da corrida”.
E resume a notícia explicando que “António Vitorino não avança para a candidatura a Secretário-geral da NATO e por isso o Governo português vai apoiar a candidatura holandesa”.
Mas o que é que queriam? Quem mandou inscrever um atleta daquele tamanho?

ANTIGAMENTE CALAVAM-SE...

Também faz parte de uma certa maneira portuguesa de estar a desvalorização do que é brasileiro, ou a ignorância do que lá se passa. Para muito intelectual luso, aquilo é tudo samba e futebol. Especialmente para esses, transcrevo parte de um artigo do extraordinário escritor católico tradicionalista Gustavo Corção. Já sei que não conhecem, mas o defeito não é dele.

ANTGAMENTE CALAVAM-SE.....
Um amigo que se julga ateu ou não-católico telefonou-me outro dia, e logo me atirou pelos fios esta pergunta aflita: "Meu caro C. me diga uma coisa: a Igreja antigamente era ou não era uma coisa muito inteligente?"
Ia responder-lhe com ênfase: "Era!" Mas enquanto vacilei alguns segundos meu amigo desenvolveu a idéia: "Olhe aqui. Eu bem sei que antigamente existiam padres simplórios, freiras tapadíssimas, leigos ainda mais simplórios e tapados. A burrice não é novidade, é antiqüíssima. Garanto-lhe que ao lado do artista genial que pintava touros nas cavernas de Espanha, anunciando há quarenta mil anos a brava raça de toureiros, havia dois ou três idiotas a acharem mal feita a pintura.
— Mas, calavam-se, disse eu.
E logo o meu amigo uivou uma exclamação que trazia na composição harmônica de suas vibrações todas as explosões da alma: a alegria, a angústia, a aflição de convencer, a tristeza de um bem perdido e até a cólera...
— Pois é! CALAAAVAM-SE!!!
Contei-lhe então uma história de antigamente. Teria eu dezoito ou dezenove anos, e meu herói dezessete ou dezoito. Ele era o aluno repetente de uma escola qualquer, e eu seu "explicador" de matemática. Eu sentia a resistência tenaz que, dentro dele, se opunha às generalizações matemáticas. Ficava rubro, vexado e alagado de suor.
Recomeçava eu a explicar certo problema quando ele, numa decisão brusca, me deteve e suplicou:
— Explica devagar, devagarzinho, porque eu sou burro.
Na outra ponta do fio meu amigo de hoje explodiu:
— Que gênio! QUE GÊNIO!!
Era efetivamente genial aquele moço de antigamente. Não segui sua trajetória e não sei se ele hoje amadureceu e desabrochou aquele botão de sabedoria em flor, ou se virou idiota e portanto intelectual. O que pude garantir ao meu amigo não-católico é que antigamente a atitude média dos idiotas era tímida, modesta e respeitosa. E isto que se observava nas ruas, nas aulas particulares, nos salões de bilhar e nos clubes de xadrez, observava-se também na Igreja. De repente, em certo ângulo da história, mercê de algum gás novo na atmosfera, ou de algum fator ainda não deslindado, os idiotas amanheceram novos e confiantes. Já ouvi e li muitas vezes o termo "mutação" surrupiado das prateleiras da genética e aplicado à história, à Igreja, ao dogma e aos costumes. Dois ou três bispos franceses não sabem falar dez minutos sem usar o termo "um mundo em mutação".
Se mutação houve, estou inclinado a crer que foi naquele ponto a que atrás aludimos: os idiotas que antigamente se calavam estão hoje com a palavra, possuem hoje todos os meios de comunicação. O mundo é deles. Será genético o fenômeno e por conseguinte transmissível?
— "Receio muito", gemeu a voz de meu amigo, "você não leu os jornais da semana passada?"
— O quê? — perguntei com a aflição já engatilhada.
— A descoberta do capim!
Não tinha lido tão importante notícia, e o meu amigo explicou-me: um sábio, creio que dinamarquês, chegou à conclusão de que o capim é um dos melhores alimentos do homem. Meu amigo não me explicou que se tratava do Homo Sapiens, do Everlasting Man, de Chesterton, ou do Homo postconciliarius. Seja como for, dentro de quatro ou cinco anos teremos a humanidade de quatro e espalhada nos pastos.

O Alentejo esquecido

Está na onda fazer chacota com o Grupo dos Amigos de Olivença.
Faz parte de um modo de ser português, infelizmente arreigado e com profundas raízes, todo ele jeitosinho e sempre na esquiva ao que incomoda e pode doer.
Mas se há causa em que a razão flui límpida e cristalina, essa é uma delas. E bem o sabem os espanhóis, que com muito menos argumentos insistem em reclamar o território de Gibraltar, que entregaram aos ingleses por via de um tratado com trezentos anos em que expressamente declararam a doação perpétua – e reclamar pese embora a vontade contrária e quase unânime dos gibraltinos de hoje.
Bem faz o Grupo dos Amigos de Olivença em lembrar constantemente o concelho alentejano ocupado e esquecido.
Assim fez ontem o Grupo (fundado por Ventura Ledesma Abrantes, oliventino refugiado em Portugal, há mais de 65 anos) ao recordar a passagem de 706 anos sobre o Tratado de Alcanizes.
Com efeito, em 12 de Setembro de 1297 o Rei D. Dinis assinou com o Rei de Castela o Tratado de Alcanizes, pelo qual se fixou a fronteira entre os dois Estados, sendo reconhecida fefinitivamente a soberania portuguesa sobre os territórios e povoações de Riba-Côa, Ouguela, Campo Maior e Olivença.
Os limites então estabelecidos jamais sofreram de jure qualquer alteração, assim se constituindo a mais antiga e estabilizada fronteira nacional da Europa.
Todavia, o Estado vizinho, que em diversas ocasiões e sob variadíssimas formas questionou a existência de tais limites, ocupou pela força, em 1801, a vila portuguesa de Olivença.
Ocupação esta que permanece, indignamente, apesar das determinações e acordos internacionais (designadamente o Tratado de Viena de 1815), apesar dos próprios compromissos assumidos pelo Estado espanhol, apesar do Direito Internacional.


sexta-feira, setembro 12, 2003

Alerta

Conta-se de Mouzinho de Albuquerque uma resposta lapidar.
Teria sido o caso de, ao apresentar cumprimentos ao então Governador de Moçambique (julgo que seria António Enes, aliás figura a vários títulos ilustre), este, conhecedor de certa fama de Mouzinho, ter procurado logo marcar o campo dizendo-lhe em tom de advertência: “saiba senhor Capitão que sou oficial de Marinha há muitos anos e sei muito bem lidar com os fadistas do Bairro Alto”.
O visado não gostou, e batendo esporas logo retorquiu: “saiba V. Exa. que sou oficial de Cavalaria há uma data de anos. Tenho lidado com muita besta e nunca tive medo de apanhar um coice”.
Este vosso amigo também tem experiência em lidar com bestas. Mas, talvez por nunca ter sido oficial de cavalaria, confessa humildemente que conserva um certo receio: quando as vê a empinar-se sobre as patas dianteiras, fica logo apreensivo sobre o que irão elas fazer com as traseiras.

Mais memórias

Lembrança traz lembrança.
Ao mencionar em postas anteriores o Diogo Pacheco de Amorim e o Gunter Wallraff, vieram-me em turbilhão mais recordações bem datadas.
Naqueles meses finais de 1974 e no quentíssimo ano de 1975 comprovei eu que o exílio puxa à poesia. Em Madrid até o prosaico António Marques Bessa fez versos....
Mas uma cantilena caiu mais fundo no goto da rapaziada, militantes contra-revolucionários do interior e do exterior, de alma ferida e aberta à poesia – e rapidamente foi transformada em hino.
Trata-se de uns versos precisamente de Diogo Pacheco de Amorim, a que a viola e a voz do José Campos e Sousa deram vida cantada. Aqui deixo, de memória, essa inspirada ressurreição, para os que ainda se lembram, para os que já não se lembram, e para os que nunca conheceram.


É uma pátria quebrando cadeias
É um silêncio que volta a cantar
É um regresso de heróis às ameias
Da cidade que volta a lutar.

É um deserto que vemos florir
É uma fonte jorrando de novo
É uma aurora que volta a sorrir
Ai, nos olhos cansados do povo.

E já ardem bandeiras vermelhas
Nos campos há gritos de guerra
Nas trevas da noite há centelhas
Das rosas em festa da terra.

Canta o vento nos trigos doirados
Dançam ondas à luz das fogueiras
E nas sombras guerreiros alados
Erguem espadas entre as oliveiras.

É uma pátria de novo sagrada
Acordada da morte esquecida
Vitória de nova alvorada
Lusitânia em giesta florida.

Memórias

Segundo informam as agências, o jornal alemão “Die Welt” publicou no mês passado a ficha da STASI, os serviços secretos leste-alemães, referente ao conhecido escritor Gunter Wallraff.
Segundo essa ficha o dito intelectual da Alemanha Ocidental era colaborador desses serviços, integrado no departamento X, que estava encarregado da desinformação no Ocidente – e isso já desde o remoto ano de 1968.
Fica assim mais compreensível a biografia desta vedeta mediática, omnipresente durante muitos anos nos media sobretudo alemães e franceses – mas que também teve o seu momento de glória em Portugal, como se contará mais adiante.
Com efeito, recordam as agências que o momento alto da carreira do escritor foi já nos anos oitenta, como o romance “Ganz Unten”, que foi best-seller na Alemanha e também em França, com o título “Tête de turc”. Não sei se está publicado em Portugal. No Brasil está, também com o título “Cabeça de Turco”.
Mas tivessem as senhoras agências consultado este vosso amigo e muito mais ficariam a saber.
Na verdade, esse rapaz, então nada conhecido, apareceu por cá no ano de 1975. Como se recordam os menos novos, o país estava em ebulição. Apresentou-se ele então a pessoas referenciadas como importantes expoentes da direita clandestina, insinuando ligações internacionais do maior relevo para a luta anti-comunista – e os tais altos expoentes engoliram o isco e o anzol.
Com a intrínseca generosidade da referida direita, todas as portas lhe foram abertas: andou o homem por aí em reuniões secretas, país fora, comeu e bebeu à conta dos anfitriões, foi conduzido até aos deuses, teve acesso a tudo, cá dentro e em Madrid. Até ao Caco Baldé ...
Passados poucos meses, desaparecido o misterioso agente que iria trazer imprescindíveis apoios internacionais para a causa da contra-revolução, surgiu, com grande aparato, o livro onde o jornalista e escritor Gunter Wallraff, então já assim identificado, contava o resultado das suas investigações no seio da tenebrosa extrema-direita portuguesa, que se preparava para as piores malfeitorias contra a jovem e indefesa democracia.
Chamou-se o livrinho “A descoberta de uma conspiração”, e tornou então o Wallraff um herói do “jornalismo de investigação” e uma bandeira da esquerda doméstica.
E mais do que isto estou eu à espera de saber há mais de 25 anos, nas prometidas memórias do José Valle de Figueiredo. Prometidas estão.

quinta-feira, setembro 11, 2003

Festa do Avante!

O Dalai-Lama está de visita à América. Terá isto consequências?
Povo mártir do comunismo, os Tibetanos sofrem desde a invasão chinesa e o exílio definitivo do Dalai-Lama em 1959 a sangrenta ocupação e a colonização do seu país pelas tropas chinesas, com o inerente cortejo de populações deportadas, de liquidações, de torturas, de perseguições e de humilhações de toda a espécie. Um verdadeiro etnocídio. Entretanto, a selectiva consciência universal olha para o lado – para não irritar as autoridades chinesas, nem manchar a gloriosa história da grande utopia comunista.
Mais ou menos pelos mesmos motivos, também são convenientemente calados os crimes dos regimes vietnamita, norte-coreano, cubano... quando não ocultada até, como acontece na comunicação social portuguesa, a sua matriz ideológica.
Como costumo dizer aos amigos que me escutam (são poucos, podem ficar descansados): o comunismo ainda mata mais gente que o cancro; mas não se fala em combatê-lo...

Apelo

Aos católicos: “o vosso falar seja sim sim não não; porque tudo o que passa disso vem do Maligno” (Mateus, 5, 37).
Recebi uma carta dos Padres Vicente Danjou e Daniel Maret a chamar por auxílio para a sua comunidade de católicos tradicionalistas.
Para aqueles que se interessam por tais assuntos, não é preciso sublinhar a importância de manter e dinamizar um activo grupo de católicos de tradição na capital e no país.
Basta recordar que o Priorado de São Pio X é hoje em Portugal o único centro de defesa e difusão da liturgia tradicional, da língua da igreja, do magistério anti-modernista. Sem ele não haveria sequer a possibilidade de assistir em Portugal a uma missa em latim no rito romano de sempre.
Tenho pedido pouco aos meus pacientes leitores. Mas desta vez peço encarecidamente a todos aqueles para quem as minhas palavras contam alguma coisa que se desloquem à Fraternidade Sacerdotal São Pio X, na Estrada de Chelas, n.ºs 29 e 31, e vejam o que podem fazer pela Fraternidade – e o que esta pode fazer por vós.

quarta-feira, setembro 10, 2003

Nova Democracia?

Pelo que se constata, a nova estação política vai assistir ao lançamento a sério do Partido da Nova Democracia, de Manuel Monteiro.
Para já, está activado o sítio na internet, anuncia-se reunião magna para Fátima, e logo depois o primeiro congresso, em Famalicão.
Estive a passar os olhos pelo sítio, e designadamente a estudar a lista de fundadores – para ver quem conhecia, que nestes coisas, ao contrário do que por vezes cai bem dizer-se, os factores pessoais são realmente decisivos.
Daquilo que vi, concluí que os fundadores coincidem no essencial com um grupo que já acompanha Monteiro há anos, e que nessa medida não traz qualquer surpresa (Gonçalo Ribeiro da Costa, Nuno Correia da Silva, Helena Santo, Tomé Fernandes...)
Existe um esforço de alargamento, mas pelos vistos os resultados são escassos.
Encontro alguns nomes com mais peso e significado para mim: José Adelino Maltez, uma das poucas cabeças que pensam (e lêem...) na actual universidade portuguesa; Diogo Pacheco de Amorim, incansável combatente de todas as causas nacionais, eterno D. Quixote sempre em combate com os seus gigantes; Carlos Abreu Amorim, mais jovem, bem conhecido da blogosfera, esforçado batalhador por uma direita que idealizou...
Da recta intenção não tenho eu o direito de duvidar; e não duvido. Mas salta-me à vista a difícil composição de tal ramalhete ideológico – e a ausência de vocação especificamente política (não para o combate cultural e de ideias) que já esteve na origem de anteriores desilusões vividas por qualquer deles.
Encontro também um nome - Paulo Ferreira da Cunha – que me traz um sorriso: há vinte anos que sigo este nome, pelo que escreve; há vinte anos que gostava de conhecê-lo, e nunca o vi. A vida nunca me trouxe essa oportunidade. Mas se há pessoa, nas faculdades de Direito, cuja obra me interessa e admiro, pelos temas, pela originalidade, pelo indiscutível mérito, ele é Paulo Ferreira da Cunha. Não lhe conhecia, porém, qualquer experiência política anterior.
Que comentário deixo para os leitores deste blogue provinciano e de circulação quase clandestina?
Bom... não é possível aos portugueses lúcidos deixar de olhar o futuro com apreensão, face à incoerência e à ineficácia dos dirigentes que se sucedem, tomando as suas decisões sob a pressão dos acontecimentos ou de forças exteriores, e não seguindo um pensamento político claro e resoluto.
É nesse contexto que, no meu particular sentir, surge a necessidade de uma alternativa nacional e popular.
Poderá a Nova Democracia, e Manuel Monteiro, que agora se apresentam na arena política, construir essa alternativa? Como já calculará quem conhecer estes escritos, encaro tal hipótese com grande cepticismo.
Mas não se pense que é por considerar a actividade política como fatalmente manchada por qualquer indignidade intrínseca; pelo contrário, julgo que a política pode ser campo privilegiado para o serviço da comunidade, se essa for a determinação de quem a ela se dedica.
Que fique claro, pois, que o meu cepticismo não é acompanhado por qualquer desejo de tirar a respectiva confirmação; sinceramente, grande seria a alegria se viesse a verificar-se que a razão não está deste lado e que o nóvel agrupamento se constitui para o povo português como uma séria e verdadeira esperança de mudança e regeneração.
O futuro dirá se tudo não passa de fumaças – pois partidos leva-os o vento, como diz o malvado BOS.


A rentrée política eborense

Pois é, está marcada pelo reaparecimento do EVORABLOG, cheio de energia, a comprovar que as notícias sobre a sua morte eram realmemte prematuras.
Já não bastava o Chaparro, sempre a moer o juízo às excelências municipais...
Alimpa-te aí a esse guardanapo, Carmelo amigo, que o Sertório e o Giraldo não parecem bons de assoar - e ameaçam continuar!

terça-feira, setembro 09, 2003

Para Portalegre

Hesitei muito. O impulso surgiu logo ao ler que em Portel, pelas festas de Agosto, tinham sido prestadas homenagens a José Régio. Afinal, Régio é um dos nomes cimeiros da nossa literatura; afinal, a “Toada” é um poema maior, de que toda a gente conhece apenas uma ou duas estrofes; porque não colocá-lo aqui, integral, como Régio o escreveu, para conhecimento geral?
Mas contive-me; isto vai contra todas as regras do bloguismo; um texto tão grande, quem é que vai ler...
Depois a tentação regressou. Em Portalegre também eu vivi, bem à vista do plátano secular, e de lá ficaram afectos e lembranças, a nostalgia da juventude...
E Régio, sempre Régio, esse homem de Vila do Conde (“entre pinhais, rio e mar”) que o destino fez aportar a Portalegre e ali permanecer 34 anos, a mirar o Largo da Boavista, e a calcorrear os caminhos do Alentejo, a pé ou de burro, à procura de um cristo, de um ferro forjado, de uma trempe, de um pedaço de arte erudita ou popular... Ah grande alentejano honorário, que a honra foi toda nossa em te termos por cá!
Régio é grande! (A propósito, alguém conhece a crítica violenta que o jovem Álvaro Cunhal lhe dirigiu, por não seguir os cânones artísticos do realismo socialista nem se submeter a directrizes de partido?)
E Portalegre merece! Porque não me surgiram ainda novas de Portalegre? Porque não marca presença no ciberespaço?
Seja o que Deus quiser; por Portalegre, e por Régio, aqui fica a magnífica “Toada de Portalegre”, na sua musicalidade única, na sua prosódia inigualável. Que se lixem os ditames do bloguês!
Espero reacções de Portalegre – ao menos escrevam!


Toada de Portalegre


Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...

Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças.
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- Quis-lhe bem como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego.

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras
Ao vento suão queimada
(Lá vem o vento suão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão...)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem fôr,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela

Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tosse e gela
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos e sobreiros
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!

Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e zuis de distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e amarelos,
Salpicados de oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Sentia o chão a fugir-me,
- Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Na casa em que morei, velha,
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
À qual quis como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego...

Ora agora,
Que havia o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento suão
De se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Que havia o vento suão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
O documento maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?

Lá num craveiro, que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus...,
E, louvado seja Deus!,
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...
Como é que o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Me trouxe a mim essa esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere... e consola
Como o próprio mal que faz?

Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for
Me davam então tal vida
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Me davam então tal vida
- Não vivida!, sim morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão,
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites de tal suão
Já várias vezes tentara
Meus dedos verdes suados...

Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e céus,
E o vento a trás à varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tôsca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela!

Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acaciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu; dom do meu Deus!,
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes enterrados...
Quem desespera dos homens,
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou:
E é capaz de amar as plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!,
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem for!

O amor, a amizade, e quantos
Mais sonhos de oiro eu sonhara,
Bens deste mundo!, que o mundo
Me levara
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixando só, nulo, vácuos,
A mim que tanto esperava
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver...

E era então que sucedia
Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- A minha acácia crescia.

Vento suão!, obrigado...
Pela doce companhia
Que em teu hálito empestado
Sem eu sonhar, me chegara!
E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!..., mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.