quarta-feira, agosto 31, 2005

Bis repetita placent?

Hoje deu-me para as repetições. Se não agradarem a mais ninguém agradam-me a mim. E depois, os textos já estão feitos... dá muito menos trabalho do que escrever de novo.
E há o clássico "bis repetita placent". Nessa me fio e me confio.

A Direita que não há, e o centro que fugiu

Nos anos trinta, ao tempo em que o Estado Novo erguia as suas estruturas na terra portuguesa, existiam alguns pilares institucionais onde, segundo os tratados, assentou o seu edifício político.
Como é geralmente apontado, a Igreja, as Forças Armadas, a Universidade (ao menos estes, e sobretudo estes) garantiram à nova situação o apoio, o enquadramento ideológico, os quadros, a base social necessária à empresa.
Como aparelhos de produção ideológica forneceram também a justificação doutrinária e os discursos de legitimação, interior e exterior, do regime.
Se procurarmos analisar o que mudou de então para a nossa época, facilmente reparamos que a Igreja ou desapareceu ou mudou de campo, o Exército subsiste em dimensão miniaturizada e musealizada, e a Universidade fragmentou-se e invertebrou-se, perdendo em peso e influência o que cresceu em volume.
Todas as tentativas das últimas décadas para organizar e representar politicamente a direita, designadamente em partido, com finalidades de intervenção eleitoral, esbarram inevitavelmente nestas faltas.
A quem há-de a direita representar? A verdade é que se não contarmos com uma sensibilidade difusa presente em alguns sectores da população e que normalmente só pode ser despertada por factores passageiros, circunstanciais, não existem instituições presentes e activas no corpo social, de âmbito e dimensão que releve, a reclamar essa representação.
Ora sem as referências institucionais catalizadoras e agregadoras não há forma de mobilizar e manter o apoio de faixas significativas da sociedade, com expressão qualitativa e quantitativa que baste a assegurar uma presença política caracterizadamente de direita.
Também por esse motivo tem acontecido o fenómeno dos políticos que começam a carreira galhardamente à direita para depois com a sua imersão no país político irem surgindo cada vez mais esquerdizados. Confrontam-se com o embaraço de verem as suas ambições e expectativas pessoais tolhidas pelas ideias com que avançaram – e a dada altura libertam-se desse lastro.
O que se passou foi que o centro político, entendendo este apenas como o ponto geométrico central entre as diversas forças que actuam e contam na vida política do país, foi-se deslocando cada vez mais para a esquerda.
Quando o Dr. Salazar proclamava as suas grandes certezas podia falar tranquilamente e apresentar-se como um modelo de equilíbrio e bom senso. Era um moderadão – quase um “centrista”.
Na actualidade, as mesmíssimas convicções serão apontadas como taras marginais, exclusivas de grupos extremistas numericamente insignificantes.
O centro deslizou continuamente para a esquerda, de modo a fazer aparecer hoje como comuns e generalizadas, para o cidadão médio, propostas que há umas décadas nem a extrema-esquerda apresentaria, e inversamente a deixar isolados na extrema-direita princípios que há cinquenta anos nenhum sector político com respeitabilidade pública poria em causa.
Por este raciocínio se compreende a utilidade operacional deste conceito de centro político: se ideologicamente é o vazio, como é próprio de um ponto abstracto calculado num espaço dado, a imagem serve todavia para uma visão simples e imediata da evolução histórica da vida de uma sociedade.
E também permite visionar num relance os equilíbrios ideológicos de cada momento político. Procure-se onde está o centro, e logo se perceberá muito sobre a nossa própria situação.
Assim cheguei à magna questão da direita, que tem sido tão focada nestes tempos mais chegados e a que comecei por aludir no início.
Arranjem-se instituições, criadas, construídas de raiz, inventadas, ou recuperadas, ocupadas, conquistadas seja lá como for. Sem elas não parece que a direita possa vir a ter mais do que uma expressão inorgânica, marginal e residual.

Dos media e da esquerda

São muito conhecidas as análises sobre o domínio das posições de esquerda entre os profissionais da comunicação social, e a sua falta de correspondência com a distribuição de tendências entre o público destinatário.
Conheço essa polémica recorrente pelo menos em França, na América, no Brasil...
A opinião que se publica está sempre à esquerda das sociedades a que se dirige - e as quais trabalha nessa direcção.
O pormenor mais curioso li-o há pouco tempo, confesso que esqueci onde: segundo um estudo efectuado as proporções desse predomínio variam conforme a área a que se dedicam os jornalistas.
Concretamente: a zona das redacções onde o peso esquerdista é mais acentuado seria na área da cultura, a seguir nas secções de política, e as páginas menos à esquerda seriam as de economia.
Inversamente, as opiniões de direita apresentam-se quantitativamente mais representadas à medida que caminhamos da cultura para a política e desta para a economia.
Esta observação divertiu-me sobretudo porque fiquei convencido que ela mesma parte de conceitos sobre esquerda e direita que, no meu modesto entender, são de esquerda. Falando francamente, a direita a que essa conclusão se refere como pontificando mais nas secções de economia coincide certamente com aquela que partilha com a esquerda a aceitação do primado do económico, divergindo dela tão só nos aspectos organizativos propugnados - em nome da eficácia e da competitividade, e não por força de qualquer princípio filosófico.

PRINCÍPIOS, MEIOS E FINS

Algures no século passado um amigo dizia-me que o problema nas direitas está em que os que têm princípios não têm meios e os que têm meios não têm princípios. A observação correspondia, evidentemente, a uma forma irónica de levantar questões complicadas.
Embora tenha encontrado graça no dichote, devo dizer que, após maturação da ideia, não acompanho a tese que dali se pode depreender. O problema das direitas não é só o que literalmente é apontado, embora não se possa ignorar esse. Com efeito, quando por contingências do destino se verificou a coincidência de se reunirem meios em mãos de quem mantinha princípios também os resultados não foram famosos.
Julgo que para além dessa separação entre princípios e meios sintetizada amargamente no comentário (aos que têm uns faltam-lhes sistematicamente os outros) outros problemas existem a afectar a direita e a obstar à sua afirmação política.
Desde logo, importa salientar que frequentemente também lhe faltam os fins. Ter um alvo, uma meta, um objectivo, uma finalidade – é um requisito necessário para que a acção política surja ordenada e consequente. Aliás, tem sido nos momentos históricos em que de modo mais claro se apresenta uma causa ou um factor de mobilização imediato e visível que a animação das hostes direitistas se tem temporariamente verificado, ocorrendo então também os poucos êxitos que se podem anotar. Acontece, como qualquer analista concordará, que quase sempre essas mobilizações ocorreram em resultado do desenrolar da agenda do adversário, conferindo à actuação direitista a característica de mera reacção que tantas vezes lhe é notada.
Não surgindo estímulos exteriores, a normalidade é a apatia que vem garantindo a inexistência prática de uma intervenção política de direita na vida pública portuguesa.
O que falta então de substancial (para além de numas vezes faltarem princípios, noutras faltarem meios, noutras faltarem fins, e de noutras faltar tudo)?
Creio bem que, pelo menos, falta gente. Não é mais do que ilusão consoladora aquele raciocínio que encontramos muitas vezes servido sob várias formas mas que assenta sempre no pressuposto da existência discreta de uma massa adormecida de direitistas fiéis, quando não de um país profundo agarrado a convicções “nossas”, ou mesmo de uma “maioria silenciosa” escondida e submersa pelas minorias ruidosas.
Sem embargo de reconhecer a realidade que pode estar subjacente a alguns destes lugares comuns (o afastamento entre a opinião do cidadão médio e a opinião mediatizada, a desproporção entre o peso numérico de certas minorias e o seu poderio efectivo) a verdade é que autênticos militantes, doutrinados, esclarecidos e conscientes, de projectos políticos de direita ou à direita, são espécie rara, escassa por demais para constituir um movimento expressivo e representativo no conjunto da sociedade. Somos poucos; globalmente dá para nos conhecermos todos e encher um jantar.
E acreditar que no fundo dos instintos vulgarizados das massas ainda possam viver e predominar os tais princípios que se evocam não passa de uma crença ingénua e desconforme às realidades sociais. As massas por si mesmas não conservam princípios nenhuns, guiam-se de acordo com os que lhes forem inoculados por aqueles que de um modo ou de outro tenham a sua direcção efectiva e modelem o seu pensar e o seu agir.
Pergunta-se então o que fazer, à direita. Parece-me que na direita em Portugal tudo está por fazer, pelo que nada do que se fizer será demais. Manter e defender os princípios, procurar e organizar os meios, programar e definir os fins.

O papá, a mamã e eu

Está convocada para o dia 17 de Setembro em Bruxelas uma manifestação europeia contra a aprovação legal da adopção por homossexuais.
A iniciativa partiu do colectivo "papá, mamã e eu", criado em Setembro de 2004 com o objectivo de defender o direito de cada criança a dispôr de um pai e uma mãe.
A manifestação europeia de 17 de Setembro, sob o tema "não à adopção de crianças por homossexuais - Uma criança tem necessidade de um pai e uma mãe!", começará às 14h30 em frente ao Palácio de Justiça e terminará na Praça do Luxemburgo, junto das instituições europeias.
Espera-se dar a esta manifestação um carácter europeu, e numerosas organizações de defesa da família de diferentes países da Europa anunciaram a sua participação.
Em Portugal, anuncia-se o apoio do Forum da Família e da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas.

A análise do dia

"O poeta foi prosaico. Esperava-se uma quixotada, saiu-nos uma sancho- pançada."
(in Que pena, ó Alegre!)

terça-feira, agosto 30, 2005

LIBERAIS E CONSERVADORES

Quais são realmente as mentalidades que se defrontam na Igreja de nossos dias, e mais especialmente no Sínodo? Já vimos que as denominações usadas no noticiário não nos parecem adequadas. Que denominações proporíamos nós em lugar daquelas?
Parece-nos mais verdadeira esta outra divisão:
De um lado estão os católicos sem adjetivos, ou então os católicos-católicos que, mal ou bem, apresentam os seguintes traços: eles crêem na Igreja, e crêem que a Igreja, no patrimônio de sua sabedoria e na riqueza de sua vida interior e de seus ensinamentos, dispõe de mais recursos para ensinar e conduzir o mundo do que toda a cultura da humanidade dispõe para conduzir-se a si mesma e para conduzir a Igreja. Sem deixar de reconhecer e de admirar os esforços dos homens, os católicos-católicos sabem que a cultura acumulada e prestigiada pela ida à Lua não tem unidade, nem tem profundidade para resolver os mais humanos e portanto os mais graves problemas do homem. O mundo, em seus registros, não sabe como é feito o homem. Possuirá mil informações preciosas a respeito das estruturas exteriores, mas não sabe de ciência certa o que convém ao homem, na vida de família, no convívio político e principalmente não sabe o que mais convém à alma humana. A Igreja sabe como o homem é, e sabe ainda mais o que Deus quer do homem.
Com esta convicção, e com esta certeza de fé, os católicos-católicos se habituaram a procurar na Igreja de todos os tempos, no depósito de sabedoria acumulada pelos apóstolos, pelos santos Padres, pelos doutores e pontífices e por todos os santos, as respostas às mais altas indagações sobre os problemas humanos. Por mais forte razão, o católico-católico, colocado em situação de influir e de contribuir para os negócios do Reino de Deus procurará na própria Casa de Deus, nos próprios registros da Igreja, e sempre à luz da Fé, as soluções para todas as dificuldades. Ninguém melhor do que a Igreja poderá conhecer as delicadezas dos problemas eclesiais, e nenhuma ciência do mundo poderá trazer mais do que uma subalterna ciência exterior e menor, que só será proveitosa na medida em que puder ser assimilada e norteada pelos critérios espirituais.
O católico-católico sabe que a Igreja deve estar atenta ao mundo, mas não como quem está atento ao mestre, e sim como o mestre que deve às vezes aprender com o aluno, para melhor conhecer suas deficiências e para melhor ensinar, ou como o médico que ausculta, não para ser curado pelo doente, mas às vezes ser por ele informado e para curá-lo.
O católico-católico que estivesse sentado no Sínodo prestaria ouvidos ao clamor de um mundo enfermo, não para tirar deste clamor a ciência e o remédio. E para os grandes problemas da Igreja, só à Igreja pedirá critérios e normas. E em todos os rumores que lhe viessem do mundo saberia sempre vigiar, bem sabendo que haverá sempre no mundo uma corrente de ira e de inimizade que quer a destruição da Igreja.
De outro lado estão os avançados, os modernistas, os progressistas ou liberais, que crêem mais no mundo do que na Igreja, e que, para o suposto bem de uma nova Igreja que julgam ainda estimar, preferem não ouvir a velha antes de ouvir os jornalistas, os economistas, e demais estudiosos da casca do mundo. Acreditam mais na Ciência, na História, no Progresso, no Mundo, do que na Igreja fundada por Jesus Cristo, vivificada por seu Espírito. Daí a espantosa facilidade com que desdenham a obra de um Pio X, recentemente canonizado, e precisamente canonizado como Papa exemplar.
O progressista, o avançado, o historicista, o liberal, acredita mais em Karl Marx do que em Santo Tomás, e vê valores mais apetecíveis em um Guevara do que em um Santo Cura d’Ars, porque toda a sua confiança está sempre posta no lado do mundo, e toda a sua desconfiança está sempre dirigida para este espantalho da história que é a Igreja de Cristo. Queixam-se dela com medidas e critérios pedidos ao mundo; e querem até salvá-la dela mesma, querem servi-la contra o que ela sempre quis, e para isto nada lhes convém mais do que os critérios da História, do Progresso, da Ciência e da Técnica. A convicção central desse personagem é a de que o homem está se saindo muito bem de todas as empresas, inclusive a de se salvar, enquanto a Igreja não fez outra coisa senão tropeçar nas próprias vestes e desacertar. Debalde lhe dirá o católico que a Igreja tem sua vitória no céu, e que Jesus Cristo Nosso Senhor deixou bem claramente dito que Seu Reino não é deste mundo. Debalde lhe dirá o católico que o mundo está condenado, e que a Igreja vive e sobrevive para colher os sobreviventes do naufrágio final.
Jamais se entenderão esses dois homens, a não ser que o católico apostate ou que o progressista ou liberal se converta. E a obra comum que apresentarem será tanto pior quanto melhor imaginarem que é.
Dois católicos podem divergir de mil modos em questões que se referem às coisas da Igreja, podendo ainda essa divergência ser aproveitada em benefício das almas. O entendimento torna-se impossível e inaproveitável o desentendimento quando o católico-católico percebe que esperam dele a renúncia de seu critério central, que é o próprio mistério da Igreja. Temos a firme convicção de que só haverá lucro real para a Igreja se em tais eventualidades, os católicos souberem repelir os critérios progressistas, cientificistas, historicistas, seculares, com a mesma energia que Jesus repeliu a secularização esboçada por Pedro: "retro Satana!"
Realmente o que está em choque na Igreja de nossos dias é o lado católico, que tira da Igreja todos os seus critérios, e o lado progressista ou liberal, que acredita mais no Século do que na Revelação. Ainda há homens na Igreja que crêem na Igreja, e crêem na absoluta superioridade da Igreja sobre o mundo que precisa dela para salvar-se; mas cremos que já são mais numerosos os homens que acreditam na absoluta superioridade do Século, e que, na melhor das hipóteses, ainda desejam recuperar a vetusta organização filantrópica, se essa veneranda recalcitrante se corrigir de suas antigas intransigências e resolver aceitar a mãozinha estendida da mundanização.
Gustavo Corção
(Publicado em O GLOBO de 25/10/69; republicado em PERMANÊNCIA Nº 232/233, Março-Abril de 1988)

DOIS E DOIS SÃO QUATRO

O luminoso artigo de Gustavo Corção a que retorno já a seguir dedico-o especialmente a três blogues que todos os dias visito na esperança de os reencontrar: Absonante, Mas o Rei Vai Nu, O Pasquim da Reacção. Voltem depressa - fazem muita falta!

No primeiro sábado do mês, para cumprir minha devoção por Nossa Senhora de Fátima, procurei um confessor numa igreja que deixara de freqüentar, há alguns anos, por motivos que dispensam fastidiosas explicações. Diziam os persistentes freqüentadores que tudo por lá melhorara, com a saída de 3 ou 4 jovens loucos. Quem sabe? Lembrei-me do velho Pe. X, homem simples e bom, cabeça branca, manso e ingênuo. Um dia, nos tenebrosos tempos em que o ISPAC energicamente se empenhava em perverter padres moços e freiras simplórias, subia eu a Rua Cosme Velho quando avistei o Pe. X, que vinha ao meu encontro feliz e aureolado de novas idéias. Saía do ISPAC e logo que me viu apressou o passo e generosamente veio ensinar-me o que acabara de aprender:
— Sabe? Agora é tudo explicado pela Evolução. Os padres professores estudam muito e explicam que tudo é diferente depois do Concílio.
Diante da transfigurada felicidade do padre, senti a refulgente evidência da inutilidade de qualquer debate. Atirei-lhe pelas costas uma Ave-Maria, “à traição” como dizem lá por dentro do Brasil, e estuguei o passo, já mais atraído pelo café com pão do que preocupado com a sorte do Pe. X. Passaram-se os anos como costumavam passar nos gloriosos tempos pós-conciliares e eu confesso que enterrei o Pe. X no esquecimento, ou perdi-o de vista, sob o volume de escombros ex-católicos e de cadáveres de ex-padres insepultos. Ultimamente tive notícias de que o Pe. X andava muito triste. Alegrei-me eu. Quem sabe se não poderia procurar o Pe. X e pedir-lhe o Sangue de Jesus para o perdão de meus pecados. Tomada a resolução, entrei na sacristia silenciosa e deserta. No altar à direita transcorria a missa das oito. Um moço apiedado de meu ar desamparado disse-me que o Pe. X estava na sala em frente; e efetivamente lá estava ele, todo branco a arrumar não sei o quê num armário: pouco mudado, mais grave, mais sério, mais branco. Quando me viu, alegrou-se e quase correu ao meu encontro. Dias antes eu publicara o artigo Falsa Bondade, que anos atrás, certamente, escandalizaria o Pe. X. Com surpresa ouvi-o:
— Muito bem! Muito bem! Continua! Coragem.
Quando fiz breve alusão à pressão que sofrera o Governo da Espanha, não só dos países, mas do próprio Vaticano, o Pe. X ficou mais rosado e com voz severa começou a falar para interlocutores invisíveis:
— Palhaçada! Palhaçada! Olhe, quer saber o que penso? Só isto: dois e dois são quatro. E a verdade de Deus não se reforma.
E agora, voltado para mim, firme e didático, abria os dedos das duas mãos em VV, como Churchill fazia para anunciar a chamada vitória democrática que entregaria o mundo à URSS, mas para repetir: — Dois e dois são quatro.
Disse-lhe que desejava confessar-me e ele logo me indicou um canto de sala onde eu me ajoelhei ao lado de sua cadeira: — ouviu-me. Prometi a Deus o miserável firme propósito de minha fragilidade que só na força d’Ele poderia cumprir tão audaciosa promessa. Deus meu! Deus meu! E logo depois das palavras que desciam para mim do alto do Calvário, o Pe. X volveu ao seu solilóquio: — Maus tempos. Maus tempos. — Só temos agora diante de nós o Martírio. Estamos no Apocalipse. Continue a luta até o fim e Deus dará o necessário.
Na porta que dá para o jardim, despediu-se de mim, risonho e como se entre nós dois houvesse um segredo delicioso e divertido; tornou a abrir os dedos e repetiu: — Dois e dois são quatro.
Na volta para casa sentia arder-me o coração, e em mais de uma esquina como nos caminhos de Emaús pareceu-me que Alguém me repetia, com infinita doçura e infinita firmeza, aquela tabuada divina: — Dois e dois são quatro.
Em casa, na escuridão e no silêncio de meu escritório, estive a considerar, ora uma ora outra das duas alternativas: o martírio, ou quem sabe? A tênue esperança humana de uma volta ao ponto em que todos se desviaram da “diritta via” e tomaram o caminho do Inferno.
Não é impossível. Em todos os itinerários humanos o que mais prevalece é sempre a volta. Mesmo sem pecado, a simples necessidade do trabalho de cada dia nos obriga a sair de casa, a perder nossa integridade e nosso nome para espalhar pela cidade nossa alma estilhaçada. Depois dessa dispersão, desse pluralismo de títulos e nomes minúsculos o homem empreende a parte mais alta e mais nobre de sua jornada: a volta para casa. O desvairado mundo moderno pensa que o homem é mais homem, mais elevado, quando sai de casa e se empenha na luta que contribui para o Produto Nacional Bruto e para o progresso nacional. A casa deixou de ser o Porto Seguro, o Paraíso Perdido, o Jardim Fechado, o lugar maravilhoso, onde, aberta uma porta-sagrada, o homem recupera o nome de seu batismo, chama por seus nomes os animais domésticos e ouve o passo da companheira nascida de seu sonho de amor.
Mas tudo isto e mais alguma coisa que possa dizer da casa dos homens é pó ou nada quando pensamos numa volta à Casa do Pai que corre ao nosso encontro e nos cobre de beijos. Pater! Pater! Pater! Não é impossível pensar num volta maior e mais animosa do que todas as cruzadas: vejo milhões de Padres X, milhões de bispos e até dezenas de cardeais — todos a seguirem um Papa mais branco e mais firme que o Pe. X a dirigir a Cruzada da Volta, parando de vez em quando nas curvas do caminho para abrir os braços e os dedos, clamando: — Dois e dois são quatro! Amigo! Friend! Cantemos um cântico novo, às avessas da marcha progressista da Nona Sinfonia; cantemos a alegria da volta à verdade e à bondade de Deus.

Gustavo Corção

(O Globo, 23/10/1975)

Fátima e a tradição

Na excelente "Casa de Sarto", blogue de firme orientação católica, escreve-se sobre recentes acontecimentos na Basílica de Fátima (Ataque a la Tradición en Fátima).
O artigo de Rafael Castela Santos inspira-me uma pequena nota pessoal de tristeza. Conheci, ainda eu era criança, o Padre Luciano Paulo Guerra. Posso assegurar que ele não era assim (assim refere-se a algumas manifestações dos anos mais próximos). Que mistérios o terão transformado assim? O avançar da idade, já muito adiantada, não é explicação satisfatória. Os ventos, os miasmas que se espalham no ar do tempo... Não sei.
Fica a nota de tristeza pessoal. A restante tristeza, não deixando de ser pessoal, é de ordem menos particular.

Morais & Morais

O "Diário de Notícias", por entre as inevitáveis concessões às vulgaridades e às conveniências (v. g. o artigo de Medeiros Ferreira sobre "o novo Mário Soares"), tem o mérito de permitir ainda assim algumas vozes de boa qualidade que ousam cantar fora do coro e sem batutas.
Destaco hoje um artigo de Carlos Blanco de Morais sobre o Brasil e o desfazer da feira lulista e outro de Abel Coelho de Morais sobre o vespeiro iraquiano.
Por sinal dois assuntos que já em tempos mereceram desenvolvimento neste blogue (talvez cedo demais, mas folgo de ver que os textos respectivos não envelheceram nada).

segunda-feira, agosto 29, 2005

Nas vésperas das eleições autárquicas

O problema é fácil de equacionar: se para uma campanha eleitoral ganhadora são precisas verbas da ordem do milhão de contos, não podem as mesmas fazer-se por mil.
O valor das quotas dos militantes recebidas em cada mês mesmo nos nossos maiores partidos não chega para alugar um outdoor durante quinze dias.
Todo o sistema instalado assenta em formas de financiamento que os seus protagonistas não podem permitir que sejam esclarecidas.
Nem os que pagam nem os que recebem.
Isto é verdade em Felgueiras; mas também o é em Lisboa ou no Porto, em legislativas, em autárquicas ou em presidenciais.
Veja-se o ridículo das contas apresentadas para fazer de conta, e que todos os políticos, incluindo os do Tribunal Constitucional, fingem levar a sério, e avalie-se até onde vai a colossal mentira.
É tão grande que pode chegar e sobrar para todos.
Por isso é que os que sabem não falam, e geralmente quem fala não sabe - ou sabe pouco.
Entenda-se como se quiser o recente caso Paulo Morais.
O mesmo problema já tinha ressaltado no noticiário centrado nos jogos de braço de ferro que se vêm desenrolando no PSD, à volta de certas candidaturas.
Saliento que esse noticiário parece-me contribuir pouco para o esclarecimento do dilema cruel que está subjacente a essas disputas.
Focando as peripécias e personalizando os confrontos como se de um torneio desportivo se tratasse, mantém-se a ocultação do que mais importaria discutir.
Repare-se no equívoco que se desprende da maior parte das peças jornalísticas respeitantes a esse campeonato: de acordo com a interpretação mais imediata e acessível dos dados que são presentes ao público, está sobre a mesa uma questão de "credibilidade"; afastados Valentim e Isaltino e mais uns quantos estaria garantida a "credibilidade".
Pressuposto indiscutido do raciocínio é portanto que em matéria de credibilidade a coisa chegou ali a Marques Mendes e parou.
Ora é neste ponto que interessaria determo-nos um pouco. Não é axioma indiscutível que os chefes dos estados-maiores partidários sejam necessariamente esses espécimens exemplares nascidos da encarnação de todas as virtudes.
E aqui entramos na parte mais difícil do problema.
Com efeito, não se apresenta muito controvertido o diagnóstico sobre o "poder local" que temos visto à solta. Há muito tempo que muita gente tem vindo a alertar para as duras consequências que têm resultado da consolidação dos fenómenos do caciquismo local ou regional. Um pouco por todo o país, e em qualquer dos principais partidos, é fácil encontrar exemplos de como as estruturas locais dos partidos e os órgãos autárquicos podem ser tomados e duradouramente controlados por cidadãos em geral ambiciosos e expeditos e com fraco apego a legalidades formais.
As formas de exercício desses poderes, fruto inevitável da rede de conluios e cumplicidades que são precisos para os alcançar e manter, também são conhecidos e têm sido expostos à saciedade.
Se nada se alterar, continuaremos logicamente a ter os Valentins, os Isaltinos, os Raúis dos Santos, os Abílios Curtos, as Fátimas Felgueiras, os Antónios Saleiros, e também os Mesquitas Machados, os Avelinos Torres, os Narcisos Mirandas, os Albertos Joões, os Mários de Almeida...
É verdade, sim senhor. A depredação moral e física do país por toda uma legião de pequenos sobas deslumbrados é inenarrável e indescritível.
O diabo é assentar no dogma de que atribuindo o poder absoluto nessa matéria de escolha do pessoal para o poder autárquico a quem controlar a máquina partidária em Lisboa o panorama muda radicalmente e o problema fica resolvido.
Essa centralização já existe na prática quanto à selecção dos deputados: quem domina a sede domina a lista, e só pode ser parlamentar quem passar pelo crivo de quem momentaneamente dominar o aparelho dos partidos.
Mas não se pense que o processo é muito diferente no que respeita à apresentação de candidaturas aos órgãos autárquicos: as sucessivas entronizações desses reizinhos e baronetes só têm sido possíveis porque eles oferecem aos chefes dos partidos as vitórias eleitorais de que estes carecem, e em troca desse bem precioso tudo o resto é esquecido.
Em resumo: não me parece demonstrado que esse esplendor da partidocracia que é atribuir a dois ou três seleccionadores nacionais, sejam Jorge Coelho/Sócrates e Dias Loureiro/Marques Mendes ou outros quaisquer, o poder irrestrito de definir quem entra no parlamento, nas câmaras, nas empresas públicas, e no que mais houver, traga inelutavelmente a moralização da vida pública nacional.
Até porque factos conhecidos alimentam-me uma justificada suspeita: que as negociatas e traquibérnias que caracterizam o exercício desses poderes locais não sejam diferentes, a não ser em razão da escala, daquilo que se vai passando a nível central.
Quando se fala em promiscuidades entre poder político e poder económico, na permeabilidade e nas recíprocas dependências, é bom recordar fontes idóneas como os senhores Abílio Curto e Fátima Felgueiras (para não falar do esquecido livro do sr. Rui Mateus, que só a simples menção costuma deixar os socialistas com cara de doentes).
Bem vistas e compreendidas as palavras das ditas fontes, percebe-se que regra geral eles limitaram-se a fazer na sua esfera de acção, naturalmente mais limitada e quantitativamente reduzida, o mesmo que se faz a níveis mais altos, com os mesmos métodos e objectivos.
Por outras palavras: em Sabrosa, em Alcoutim, em Penamacor ou em Marvão podem fechar-se por mil as relações que em Lisboa precisariam de um milhão. Os protagonistas podem ser o empreiteiro Xico Martins e o caudilho que temporariamente tiver as rédeas da partido maioritário e da Câmara lá da terra, ou um delegado da "Lynch & Fairchild Corp." e os aspirantes a homens de estado que se perfilam nos corredores do poder lisboeta, por eles mesmos ou através de uns tubarões geralmente associados em luxuosos escritórios de advocacia que se vangloriam de nunca advogar.
Mas, fora a dimensão quantitativa, não vejo diferenças substanciais.
O que custa é vislumbrar uma saída.

A opinião pública é a opinião que se publica?

Quando acossados os jornalistas têm tendência para retorquir com o argumento da mensagem e do mensageiro.
Isto é, contra-atacam o crítico atirando-lhe que ele está simplesmente desagradado com a mensagem e por isso dispara sobre o mensageiro.
Apresentam-se deste modo implicitamente na posição modesta de portadores de mensagens em que não interferem, como o carteiro anónimo que deixa a nossa correspondência na caixa de correio sem lhe imprimir qualquer marca pessoal ao conteúdo.
Evidentemente que esta imagem, para além de modesta, é flagrantemente falsa.
Todas as operações em que se concretiza o trabalho dos jornalistas implicam escolhas, sempre dependentes da idiossincrasia pessoalíssima de quem as faz.
Nem a escolha de uma notícia é anódina, nem a sua apresentação é irrelevante, nem o modo ou o relevo que lhe são dados são independentes dos factores subjectivos que determinam quem executa essas tarefas.
O que se publica, o que surge aos destinatários como o produto final das funções desses profissionais, não é de todo uma mensagem a que eles são alheios e que se limitam a transmitir.
Ao contrário, o produto disponibilizado a público é inteiramente moldado pelas mãos por que passou na cadeia de fabrico.
E verdade seja dito que também não é difícil encontrar ensaios, estudos ou manuais a dar como axiomático que não existe jornalismo a que se possa chamar neutro.
Porém, se assim é, impõe-se não ter contemplações com exercícios de fingimento em tudo contrários à realidade, defesas de conveniência que não passam de representação hipócrita de um papel que os próprios actores, enquanto capricham em afixar a máscara toda feita de pureza ideal, irradiando ingenuidade e candura, sabem perfeitamente ser estranho à verdade.

domingo, agosto 28, 2005

O Jogral

Uma voz afinada, a deste "O Jogral".
O blogue de JP Magalhães e Santos está em linha desde 23 de Agosto.
Vão visitar, e subscrevam a assinatura diária - exijam-lhe a edição nossa de todos os dias!

O Mito de Portugal

"O materialismo nega que as Pátrias sejam entidades reais, que elas tenham uma existência para além do nome. Esta negação corresponde ao erro lógico do Nominalismo que entende certas categorias do pensamento como simples recursos vocabulares para abstrair do real, quer dizer, do único real que são as coisas. Um radicalismo nominalista é o que anuncia a prédica - as coisas são apenas coisas - ou rejeita que nos nomes haja outra realidade, como ocorre num verso de Álvaro de Campos, para quem não há metafísica nenhuma. E, todavia, as Pátrias são entes reais, de natureza espiritual, por isso a muito clássica tese de que as Pátrias são como que segundas causas pelas quais a Providência garante à ínfima espécie que é o indivíduo (pessoa) as condições de vivência, de convivência e de comunhão em vista de um ideal, ou de uma causa final ou teleológica.
O Estado pode sofrer de precariedade, de apenas se resumir a um consenso transitório, mas a Pátria antecede e poscede a realidade do Estado, sobretudo quanto este se resume a mero formalismo jurídico, por não incarnar o cerne da Pátria. Há sempre Pátria, mesmo que não haja Estado. As Pátrias são entes dinâmicos, inerem muito mais ao mito do que ao facto, muito mais ao finalismo essencial do que ao acidentalismo da história positiva."

(Pinharanda Gomes, comentando nas páginas de "O Diabo" o livro de José Eduardo Franco intitulado "O mito de Portugal", editado pela Fundação Maria Manuela e Vasco Albuquerque d'Orey)

O partido dos jornalistas

Um problema cada vez mais presente em todas as sociedades mediatizadas do Ocidente é o frequente desfasamento entre a opinião pública e a opinião publicada.
Já escrevi sobre isto mas a actualidade impõe o regresso ao tema.
Normalmente a questão só é discutida em privado, e em voz baixa. A prudência manda calar. Mas todos os sujeitos activos da sociedade a conhecem.
E há momentos em que salta aos olhos dos observadores mais distraídos. São as ocasiões em que surge aos olhos de todos a importância do que chamo o "partido dos jornalistas". São aquelas em que de súbito a classe se mobiliza e com absoluta indiferença pelo público destinatário oferece em espectáculo autista e arrogante a exibição despudorada do seu poder.
Essas ocasiões são sempre despoletadas e desenvolvem-se em torno de algo (um assunto, um acontecimento, uma organização, uma personalidade) em que a classe se reconhece e resolve tomar como seu.
O tema do aborto, como tinha sido exuberantemente demonstrado quando da campanha do referendo respectivo, e de que foi exemplo gritante a actuação no caso do barco do aborto, é um desses pontos de mobilização geral.
Lembre-se neste último caso o que foi durante dias e dias o contraste entre a absoluta indiferença popular e a histeria desenfreada da comunidade jornalística.
Um não-acontecimento, uma insignificância agitada freneticamente por um pequeno grupo de activistas inteiramente marginal às preocupações e aos interesses da população, era ampliado a dimensões de epopeia perante a perplexidade geral.
E agora, que estamos perante nova campanha eleitoral, observe-se com atenção o tratamento dado a tudo o que se relaciona com o Bloco de Esquerda. Que o pequeno agrupamento só atingiu verdadeira expressão política por força do empenho da comunicação social que nisso se envolveu com entusiasmo militante já tem sido sublinhado por vozes mais poderosas que a minha. Mas atente-se de novo no trabalho que surge aos olhos do público: a escolha das imagens, das frases, o ambiente geral dos comentários e todo o enquadramento das peças; frequentemente vê-se a cobertura nos telejornais e não se distingue do que se vê nos tempos de antena propriamente ditos (aliás suspeito que por vezes haja coincidência de nomes entre o pessoal responsável de uns e outros).
Que fazer face a este fenómeno de distorção, em que o mensageiro cria a própria mensagem?
Seria um excelente assunto para estudar mais desenvolvidamente nas escolas de jornalismo.

QUE PAÍS?

Relembro esta prosa crepuscular de António Marques Bessa, publicada há uns meses no semanário "O Diabo".

QUE PAÍS?
Ninguém merece mais do que aquilo que tem. Parece que um silêncio de chumbo caiu sobre a sociedade. Creio que a sociedade está doente das doenças já inventariadas e que as sucessivas revoluções foram incapazes de solucionar ao longo dos séculos. Os relatos do que é importante são falsificados. Os livros de leitura das escolas são para rir, a ética e a moral foram pela pia, as estruturas em que assentava a portugalidade erodiram-se. Hoje resta um País de velhos a ver passar os comboios. Nem sequer se trata do homem que sabia demais.
Desoladamente, no areal pequeno, criaram-se as condições para gramarmos ser pequenos em todos os sentidos. Resta uma sombra de grandeza no poder político que só nos faz mal. Mais valia pensarmos como os holandeses ou as gentes do Luxemburgo, onde milhares de portugueses sob a asa do Grão-Duque fizeram aí uma segunda vida de oportunidades aqui perdidas.
O tempo é duro e a festa continua. Faz-me lembrar os quadros de Brughel, onde cegos guiam cegos e a festança da abundância se vê nas danças de aldeia. Acontece que vivemos cada vez mais no asfalto: as florestas arderam, a chuva não cai, as pescas desaparecem, a agricultura é uma sombra, as indústrias deslocalizam-se, os sindicatos fazem profissão de fé na estupidez convicta, o eleitorado entende que o «trotskismo» fictício de uma elite de ricaços e académicos é uma opção válida no século XXI...
O tempo vai tornar-se mais duro seja o governo qual for. Nem os iluminados poderão resolver as coisas. Os problemas são muito antigos e têm raízes em séculos de imbecilidade militante, agravados com o golpe de Estado despesista do 25 de Abril. Pouco importam os hinos com trompas e tambores a determinadas datas e a certos homens. Os que estão ainda acordados no marasmo geral sabem isso de ciência certa. Os sons produzidos estão destinados a desafinar, os homens a irem para as tumbas e a História a ser reescrita.
Só há uma coisa que lamento. É não estar aqui para ver o aproximar do crepúsculo. Talvez ainda conseguíssemos, nesse tempo, bebendo um bom vinho tinto, ouvir uma marcha fúnebre de Mahler ou uma marcha de pompa e circunstância de Sir Edward Elgar.
Claro que todos lamentamos que isto se tenha transformado num lugar para presidentes de conselhos de administração, presidentes da república, ministros, secretários de Estado, directores gerais, deputados e quejanda gente da mesma tribo ou da mesma loja. É sobretudo muito mau que não tenham a mínima ideia do que é uma República coisa que os romanos já sabiam perfeitamente antes da Ditadura de César e do Império de Augusto, ou seja, antes de Cristo. Que pena: se a alma é pequena e continuarmos a chorar os mortos é porque os vivos nada fizeram para o merecer.
António Marques Bessa

A cultura como imperativo

A verdade é que um dos meios principais, não o mais violento mas certamente o mais hábil e eficaz, de desarmamento dos povos é o apagamento da memória.
Acaba-se com o ensino da História, atira-se para um canto o ensino da Língua, declara-se que não há tempo para a literatura nacional - e chega-se com rapidez estonteante a uma geração que desconhece tudo, mas tudo, sobre o seu passado colectivo, as suas raízes, mais próximas ou mais distantes.
Um povo que se desconhece não pode amar-se nem estimar-se, e está disponível para todas as abdicações.
Hoje em Portugal o primeiro obstáculo para a comunicação é logo à partida a ignorância crassa; tudo o que é nosso, mesmo o mais elementar, é encarado como extraordinária revelação pelas massas estupidificadas.
O problema com as novas gerações é sobretudo esse. Como pode ler e pensar capazmente quem não domina mais que um português rudimentar, incapaz de articular uma frase com sentido ou exprimir um pensamento?
O que podemos e devemos fazer é lutar contra o esquecimento, cultivar o gosto e o apelo da memória. É importante insistir e manter acesa a chama, para que um núcleo, ainda que pequeno, possa ir descobrindo, por vezes com maravilhamento, que há muito mais do que aquilo que lhes foi impingido como cultura oficial.
Cada um de nós deve fazer o que puder para não levar consigo aquilo que conheceu e amou, para transmitir o que recebeu.
Acredito que a paixão é contagiosa, e que a sedução opera, até por via encantatória.

sábado, agosto 27, 2005

Porque não se fazem as reformas?

Parece-me oportuno recordar o que escreveu Pacheco Pereira em Janeiro último, num dia em que se achou mais inspirado, a propósito de um programa televisivo em que compareceram a debitar banalidades e evidências, além de outros, os senhores Pinto Balsemão, Mário Soares, Miguel Cadilhe e Adriano Moreira. Fica ao vosso critério a razão da lembrança.
"Por que é que o que disseram os "senadores" me pareceu inútil? Porque nem num momento só emergiu a identificação de qualquer dos obstáculos reais à mudança em Portugal. Ora, não há reformas sem identificar os interesses que as impedem e apontar os meios de os combater. Ponto. Todos eles têm razão: temos problemas de coesão social (Soares), as mudanças identitárias do país no mundo não são percebidas pela população nem pelos políticos (Moreira), o Estado funciona mal e é um obstáculo à produtividade (Cadilhe), os partidos políticos são medíocres (todos), estes entendem-se no que não deviam entender-se e no que deviam agridem-se (Balsemão), etc., etc. Tudo isto sabemos bem e são hoje lugares-comuns. Por que razão é que nada é feito e parece que não temos instrumentos, nem vontade para o fazer? Por que razão há tanto sentimento de impotência que nem os melhores sequer tentam? Por que é que tudo parece sólido betão, resistindo a todas as tentativas de mudança, engolindo as veleidades reformadoras, engendrando uma mediocridade que lhes é salvífica? Porque há poderes e interesses poderosos, identificáveis, nomeáveis, com cabeças individuais e institucionais, e eles estão firmes que nem uma rocha e mandam em Portugal. Existem nos sindicatos, nas fundações, nos partidos, na comunicação social, nas associações empresariais, nos grandes grupos económicos, nas ordens profissionais, nos grandes escritórios de advogados, nos clubes de futebol, nas autarquias, na "cultura" organizada. É normal que seja assim em democracia, o que não é normal é que seja tão difícil exercer a autoridade democrática contra eles, ou para além deles, quando é necessário pelo bem comum.
É que isto não vai com pactos, porque se fosse já tinha ido. O sistema político é suficientemente racional para que se fosse possível, numa mesa de negociações, unir PS e PSD para diminuir as despesas de saúde, ou de segurança social, ou modernizar a administração pública - as diferenças ideológicas, que já são pequenas, não impediriam um acordo em cinco minutos. O problema é que por detrás de todos os "problemas" estão interesses de todo o tipo, a começar pelos interesses económicos poderosos e a acabar pelos "interesses" da pobreza, do remedeio, da baixa qualificação, do mundo protegido da competição, da preguiça, da apatia, típico das sociedades excessivamente dependentes do Estado e do subsídio - se sobrevivo assim, mais ou menos, porquê arriscar um mundo que me pode ser mais hostil? Os partidos políticos estão mergulhados nestes interesses, a montante e a jusante, e, frágeis como são, precisam de "comprar" eleitorado com a promessa de que nada muda na mediocridade."

Os blogues também se cansam?

Está estudada e diagnosticada a elevada taxa de mortalidade dos blogues logo nos primeiros meses de vida.
Uma grande percentagem não passa os três meses. Muitos deles morrem pouco após o nascimento, com uns tantos posts de vida.
Não há que estranhar. É frequente serem apenas experimentações, a ver o que dá, impulsos momentâneos sem correspondência com nenhuma aspiração ou necessidade mais funda. E os bloguistas respectivos nada terem para dizer também é explicação óbvia. Esgotam-se com uns posts.
Mas, e os outros? Qual o ciclo vital normal, médio, daqueles que ultrapassaram as fases infantis, e juvenis, e entraram na vida adulta?
Aliás, refazendo a pergunta, qual será a esperança média de vida de um blogue?
E quando atingirá ele a maioridade, ou deverá considerar-se que deixou a infância? Quanto tempo é preciso para que se possa considerar adulto, ou mesmo velho?
Estas perguntas ainda não têm resposta, simplesmente porque o fenómeno é recente demais para estar estudado nessa dimensão. As respostas terão que variar conforme o lugar e a época que tivermos em vista.
Houve tempos em que podia responder-se sem errar que um blogue português com seis meses era um veterano. Ao mesmo tempo um blogue americano nascido no mesmo dia não podia na sua circunstância espacial adornar-se com pretensões de veterania sob pena de cair no ridículo.
No momento presente quer-me parecer que de entre os portugueses aqueles que já passaram os dois anos de idade já são um tanto entradotes.
É natural que comecem a sentir o peso da idade. Que surjam por vezes trôpegos e cansados. Longe do viço, do fulgor da mocidade, da vivacidade e da inspiração dos primeiros tempos. Os blogues também se cansam.
Mas que dizer dos que já nascem cansados?

A fechar esta edição

Tenho que desligar isto. Da volta blogosférica escolho três para as recomendações de hoje. Vão ler os mais recentes no Combustões, no Jansenista, no Misantropo.
E por hoje é tudo. Amanhã vos direi do mais que for encontrando.

sexta-feira, agosto 26, 2005

Quatro campanhas num ano, e aborto no Natal?

Com os comentários concentrados nas presidenciais que se aproximam, e com a curta memória que caracteriza as massas e os media, não vejo reparos ao extraordinário calendário da nossa vida política neste período de um ano que vai desde o princípio de 2004 aos primeiros meses de 2005.
Na verdade, se tudo correr como está superiormente previsto, os eleitores portugueses irão ser chamados às urnas quatro vezes em menos de um ano, entre o passado mês de Fevereiro e Janeiro de 2006.
Assim, em Fevereiro de 2005 tivemos as eleições para a Assembleia da República. Passadas as legislativas, e apesar das férias e dos incêndios (um transtorno lastimável, que obrigou ao desperdício de tempo e energias que tão precisos eram na preparação atempada das autárquicas), entrou-se na organização das eleições de Outubro.
Estamos agora em plena campanha eleitoral - os partidos com os motores a trabalhar a todo o vapor, afadigando-se na disputa dos lugares das Câmaras e Juntas de Freguesia.
Ao mesmo tempo, o Partido Socialista garante que será convocado novo referendo sobre a questão do aborto (leia-se para legalizar o aborto) a realizar antes das eleições presidenciais. Já preparou aliás a necessária cobertura legal para tanto. Conta com Sampaio, que por esse modo protagonizará o último acto político significativo do seu mandato.
Considerando as exigências temporais relativamente à antecedência da marcação, isto significa que o país político vai impor a funçanata abortista em pleno período natalício - provavelmente a 18 de Dezembro, que é Domingo.
Um prodígio de sensibilidade e equilíbrio.
E finalmente, na primeira quinzena de Janeiro de 2006, os portugueses irão eleger um novo Presidente da República.
Um fartote. Os profissionais andam ocupadíssimos. A política é realmente uma ocupação a tempo inteiro. Logicamente desenvolve-se também uma verdadeira indústria à volta disso (os políticos, os publicitários, as agências, os técnicos de marketing, os especialistas de imagem e comunicação, os angariadores de fundos, os gráficos, os coladores de cartazes, os animadores de comícios, os jornalistas avençados - toda uma panóplia de gente e actividades, tal como acontece na chamada "indústria dos incêndios").
O país, e com este o cidadão comum, tem que continuar a viver. Com toda a naturalidade sentirão cada vez mais mais que não fazem parte desse universo e têm que sobreviver a ele, sem ele e apesar dele.

quinta-feira, agosto 25, 2005

A recomposição blogosférica

No seguimento de outros comentários, parece-me oportuno falar numa alteração essencial na blogosfera.
Tornou-se notório o abandono dos notáveis, os que têm tribuna na praça e até lhes pagam para escrever noutro sítio. É natural, esses não têm motivação alguma para persistir neste meio. Não têm "tempo".
Ao princípio não era assim: como novidade prestigiante a coisa dava estatuto, distinguia com diploma de avançados e criativos alguns personagens à procura de balanço para subir nos círculos em que já tinham posição. Com este aliciante a blogação foi moda, e muita gente já importante ou com pretensões a sê-lo viveu a sua hora de glória na blogosfera.
Deste ponto de vista há que reconhecer que funcionou bem. Porém, em consequência disso mesmo foi-se pouco a pouco despovoando desses habitantes, à medida que esses blogadores se foram alcandorando a outros lugares que lhes apeteciam mais.
E com o tempo, há que reconhecer, a moda passou de moda. A blogação generalizou-se. Entraram as pessoas comuns. Hoje isto está cheio de gente comum. Os importantes, os importantões e os importantinhos não apreciam isso. É de mau gosto e mau tom. Não fica bem. A mistura aborrece-lhes.
De maneira que este espaço está realmente a ficar para nós. Os que não temos voz noutros areópagos, os comuns mortais que vivem o dia a dia entre a multidão, sem beber do fino nem comungar com os deuses. Valha-nos isso, porque não temos mais nada e a distância entre nós e eles alarga-se todos os dias.

Frase do dia

Vem no Axónios Gastos:
"Estranho país este onde tudo arde e ninguém se queima!"

Fim de mandato

O vice-presidente da Câmara Municipal do Porto, Paulo Morais, após quatro anos com a tutela do urbanismo, sintetiza o que aprendeu com a experiência: «O financiamento da carreira política daqueles que tomam decisões ao nível do aparelho de Estado é feito por quem tem interesse directo nas decisões
Isto e muito mais pode ler-se numa entrevista à revista Visão, onde denuncia «negócios imobiliários que financiam dirigentes, campanhas e partidos».
A entrevista está a ser muito lida, mas pouco comentada por quem de direito.

Anúncio: o que antes de ser já era

Os jornais anunciam que no dia 31 Mário Soares irá anunciar que será candidato a Presidente da República. Tratando-se de um conhecido mentiroso, relapso e contumaz, estes anúncios só podem ser anunciados com todas as cautelas. Tudo aponta portanto para que neste caso seja verdade o que se anuncia.

Vamos ver-nos gregos

Já não é a primeira vez que um artigo do conhecido médico e professor universitário Manuel Antunes me pareceu suficientemente importante para o transcrever na íntegra.
Vejo-me obrigado a reincidir, e a sublinhar a simplicidade e a evidência dos conceitos expostos por Manuel Antunes - na razão directa da sua importância.
Pilhado do "Diário de Notícias", aqui vai o "Vamos ver-nos gregos".

Há uns meses, após uma visita que fizera à Grécia, escrevi neste jornal, num artigo com este mesmo título, que os portugueses estavam a caminho de ser ultrapassados pelos últimos da Europa. Entretanto, com o alargamento da UE, já não somos outra vez os últimos, mas passámos do 15.º lugar para o 19.º ou 20.º, o que não é certamente nada de que nos devamos orgulhar.
Referia eu, então, que não via como se pudesse melhorar esta situação "a não ser que tomemos rapidamente a consciência de que a cada um de nós, e não apenas aos que nos governam, compete fazer o que cada um possa para melhorar a sua postura de cidadania... A começar pela educação".
Penso que isto se justifica cada vez mais e, de facto, a inconsciência do nosso atraso geralmente não nos permite estar despertos para o adiantamento dos outros. Daí a aparente incapacidade dos portugueses em se superarem para produzir melhor e mais racionalmente.
Desde então, o País tem vindo lentamente, com aparente surpresa, ainda que não de todos, a aperceber-se de que já não está de tanga, como dizia um nosso ex-primeiro-ministro, nem de fio dental, como disse alguém de quem não me lembro, mas completamente nu. Como na velha história do rei, provavelmente sempre tivemos esta realidade à vista, mas só agora é que nos vamos apercebendo dela.
Recentemente, vi e ouvi uma constelação de estrelas economistas (ou economistas-estrelas, o que não é bem a mesma coisa) discutir, num bem conhecido e popular espaço de debate televisivo, as causas do descalabro da nossa economia e das contas públicas. Aumentar as receitas, propõem uns, diminuir as despesas, sugerem outros. Reduzir o peso do Estado na economia ou melhorar a sua performance são ainda duas soluções diferentes apresentadas pelos dois grupos, não necessariamente os mesmos.
Debate, aliás, muitíssimo interessante e instrutivo. Para minha surpresa, contudo, ninguém falou daquilo que me parece ser um problema fundamental. Não sou, obviamente, nenhum entendido em matéria de economia, mas parece-me que a falta de produtividade, não apenas das empresas mas especialmente dos cidadãos, é uma das principais causas da situação crítica em que nos encontramos.
Há meia dúzia de anos as estatísticas demonstravam que a produtividade nacional, somatório das produtividades individuais, era inferior a dois terços da produtividade média da UE, que é, aliás, minimizada pela inclusão da nossa no cálculo. Pior ainda, ela tem vindo a decrescer progressivamente, sendo agora pouco mais de metade das dos restantes europeus, como foi revelado por estatísticas publicadas esta semana.
Ora, parece-me evidente que bastava melhorarmos um pouco esta produtividade (nem necessitaríamos de chegar aos cem por cento) para termos o problema resolvido, obviamente desde que não desatássemos a gastar os ganhos adicionais, aliás um hábito bem português.
Isto é, a solução do problema está muito mais nas mãos dos cidadãos do que nas do Estado. Fazer crescer as receitas e diminuir as despesas não depende do cidadão; aumentar a produtividade depende essencialmente dele. E isto, parece-me, nunca foi devidamente explicado aos portugueses. É preciso dizer-lhes que produzir bem é não só importante mas um dever de cidadania os professores têm que gastar mais tempo a ensinar, os médicos e enfermeiros têm de tratar mais doentes, os juízes, procuradores e advogados têm de resolver mais processos judiciais, os funcionários das finanças têm de atender mais utentes, os polícias têm de exercer maior vigilância, os alunos têm de estudar e aprender mais, etc., etc. Tudo o resto ocorre paralelamente.
E isto poderia fazer-se quase de um dia para o outro, assim o quiséssemos todos, mas tem de ser especialmente promovido nas nossas escolas, com a introdução de disciplinas especialmente dedicadas ao ensino das matérias relacionadas com a cidadania, que hoje não temos mas já tivemos, e pelas quais temos até uma repulsa instintiva.
As nossas crianças e os nossos jovens estão a ser criados num ambiente de facilitismo que lhes faz crer que os problemas, se os houver, acabarão por se resolver por si próprios ou com o dinheiro dos papás. E também por isso estão cada vez mais alheados dos grandes debates da sociedade, políticos ou não.
Aqui, sim, os nossos governantes têm pecado por omissão. O nosso sistema educativo tem que ser profundamente reformado, desde o jardim-de-infância. Os nossos problemas não se resumem tanto à falta de licenciados como ao défice de instrução e cultura dos que não chegam à universidade. Mas a escola não pode fazer tudo. A própria sociedade tem de se reformar, a começar na família, que hoje descarrega nos professores toda a responsabilidade da educação dos meninos.
Enfim, é urgente reformar a mentalidade dos cidadãos. O leitor já se apercebeu de como é cada vez maior o número de portugueses que, quando entrevistados na rua acerca de problemas do dia-a-dia, como a subida dos impostos, o aumento do preço dos combustíveis ou o aumento da idade da reforma, diz "eu não percebo nada de política - não ando a par", assim remetendo toda a responsabilidade para os políticos e governantes que até têm culpa se chove ou não chove?
Cada vez mais, os portugueses vêem estas questões nacionais à luz dos interesses próprios e de como eles os afectam. Olham para o aumento da idade da reforma apenas como uma "chatice" que os obriga a trabalhar mais, sem ter em conta que ela é uma inevitabilidade que resulta de uma expectativa de vida mais longa (nos últimos trinta anos ela aumentou dez), que aumenta o total das despesas com as pensões, e da diminuição do número de trabalhadores mais jovens, que são quem verdadeiramente paga essas pensões.
Ouço muitas vezes dizer "logo que possa reformo-me"; muito raramente alguém diz "logo que o Serviço - ou o País - possa, reformo-me". Enquanto continuarmos a pensar que o início da vida profissional é simplesmente o início da contagem descendente (quanto mais curta e rápida, melhor) para o seu fim, este país não tem qualquer hipótese de melhorar a sua situação.
Hoje, quase toda a gente concorda que a produtividade deve ser recompensada. No entanto, conhe- ço poucas experiências sérias assentes nesta filosofia que se baseia numa avaliação objectiva da prestação individual. Não com base em tabelas extremamente complexas como as que agora se pretende instituir para os trabalhadores da administração pública, que apenas complicam as coisas e ainda vão contribuir mais para o cinzentismo.
E nem mesmo no sector privado tal prática vingou. Todos reconhecemos que a prestação de cada um é diferente e, como tal, deveria ser premiada de modo diferente, mas todos nos recusamos a aceitar que o vizinho do lado possa ser mais produtivo que nós. E normalmente os bons exemplos são encarados com desconfiança e não como modelo a seguir.
E por este motivo, e ao contrário do que tantas vezes afirmam os nossos mais altos cargos políticos, provavelmente apenas porque o estatuto assim o exige, eu não estou nada optimista em relação ao nosso futuro. Penso, até, que ele vai ser apenas a continuação de um passado que, mais vezes sim do que não, sempre demonstrou que nós somos um povo que "nem se governa nem se deixa governar". A não ser que nos superemos!

Egrégios avós, infames netos

Para o Alentejo e para o mundo tem vindo a fazer-se desde Setembro de 2003 um blogue da melhor cepa, com momentos que bem justificariam um destaque que por distracção minha ainda nunca aqui lhe foi dado: para ele vai a devida vénia e a reparação possível.
Não esqueçam a leitura do "Egrégios avós, infames netos!"

Alma alentejana

A defesa dos valores e da identidade alentejana, o orgulho alentejano, fizeram nascer a Fundação Alentejo-Terra Mãe.
Nas suas finalidades estatutárias atribuiu-se a missão de investigar, divulgar e preservar a história, as tradições, os costumes e os falares do Alentejo, assim como os valores culturais, artísticos, arqueológicos, paisagísticos e ambientais da região. Propõe-se também criar prémios e bolsas de estudo, promover as artes e ofícios tradicionais, apoiar a criação de empregos e a fixação de residência no Alentejo e, quanto a solidariedade social, apoiar as crianças, os jovens e a terceira idade.
A Fundação apresenta no seu Conselho-Geral, presidido por Diogo Pires Aurélio, diversas personalidades nascidas no Alentejo, como Murteira Nabo, Rui Nabeiro, Henrique Granadeiro, João Cutileiro, Manuel Ferreira Patrício, Joaquim Nazareth, Manuel Lopes Porto, Menezes Cordeiro, Manuel Fialho, Fernando Madrinha, Manuel Madeira Piçarra e Rogério Alves.
Está previsto para 15 de Outubro o lançamento da revista trimestral Alentejo-Terra Mãe, coincidindo com a sessão de apresentação da Fundação e do respectivo portal de Internet.
A revista anuncia uma tiragem média de 30 mil exemplares e distribuição gratuita em todo o Alentejo, bem como nas áreas envolventes da Grande Lisboa, Setúbal e Algarve, e será dirigida por José Flamínio Roza, também instituidor da Fundação.
No primeiro número o tema forte será "Economia ou Desenvolvimento?", centrando-se na discussão dos grandes projectos turísticos para o Alentejo e nos cenários possíveis para o futuro.

quarta-feira, agosto 24, 2005

A rentrée

Retemperado pelas férias, aliás interrompidas pelo imperativo protocolar da condecoração dos U2, o venerando Chefe de Estado quis assinalar a rentrée com uma visita ao Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil.
Falou em português, pelo que me foi possível apreciar (na medida das minhas limitações) as pérolas da sua oratória sem precisão de tradutor. Compreende-se, agora falava para os indígenas e o inglês é mais próprio para actos oficiais.
Rendo-me mais uma vez: Sua Excelência brindou-nos, com o tom solene que é seu timbre, com uns quantos pensamentos em que a profundidade só rivaliza com a originalidade.
Dissertou sobre fogos. Retive, entre outras maravilhas que certamente me escaparam, que os incêndios devem merecer uma "meditação séria", que o país tem um "problema de ordenamento sério", e que este se relaciona, especificamente, com a "reestruturação da floresta". Apelou a um "debate sério" (a partir de Setembro), e rematou, imparável (esta parte transcrevo ipsis verbis): "Temos que saber que floresta queremos, de que maneira queremos organizar esse recurso fundamental. A reestruturação da floresta portuguesa está na ordem do dia e a partir de Setembro todas as energias têm que ser voltadas para este debate". "Está a chegar o momento em que não podemos adiar mais isto".
Eh pá, o caso é sério!

Marx Bessa sem travões

Já leram "O Diabo"? Pois vão ler, que não se arrependem. A edição é marcada por Marx Bessa, que arranca impiedosamente e vai arrasando no caminho, deixando um rasto de vítimas.
Podem ver uma pequena amostra no "Pena e Espada", cujo reaparecimento se saúda.
Outro reaparecido nas trincheiras é o Corcunda. Vai ter que compensar umas férias tão compridas...

Arde ou não arde?

Diferentemente do "Público", o "Diário de Notícias" optou por não disfarçar o cheiro a queimado que vem dos lados de São Bento. Na realidade, não adiantam tentativas patéticas para tentar esconder o óbvio.
Para se avaliar como o fogo está a atacar nessa zona, pode ler-se Vasco Graça Moura (A diferença na indiferença), Francisco Azevedo e Silva (Muitas promessas e muitos incêndios), ou José de Matos Correia (Para que serve um primeiro-ministro).
A síntese é feita por Luís Delgado, em "Governo que arde".
Assim:
De ciência certa, e tendo como pano de fundo tudo o que se passou e está a passar, este Governo sofrerá, em Outubro, no Centro e Norte do País e nas zonas mais afectadas pelos fogos - que só na catástrofe é que mereceram um pedido de ajuda urgente à União -, uma forte penalização do eleitorado.
Os portugueses têm uma grande facilidade de esquecer as desgraças, e quando começar a chover tudo se esbaterá, mas a proximidade eleitoral não perdoa. Pergunta-se o que é que os incêndios têm a ver com o Governo? Nada e tudo. Nada porque não dependem de nenhum decreto governamental, mas tudo quando as populações perdem os seus bens de vidas inteiras de trabalho e o Governo deveria ter feito mais, muito mais, em tempo útil, e isso não será esquecido pelos eleitores, quando chegar a hora, e por muita injustiça que os autarcas possam sofrer. É o que é, e a isso não será estranha a nova postura governamental, muito mais preocupada, activa, e disposta a não esconder o que é evidente para todos, e que ainda está fora de controlo.
Para o ano será melhor, garante o Governo, com mais meios e uma prevenção cuidadosa. Com isso podemos todos, mas já chega de jurar que tudo estará a funcionar, e todos os meios disponíveis, em 2006. Para quem viveu e vive o drama destes dias, e os que ainda poderão vir, o Verão de 2006 é uma eternidade, e não é com isso que se reconstruirão as vidas. O Governo merecia isto? Não sei, mas a arrogância política "mata", o atirar as culpas para cima dos outros já não pega, e a política da desvalorização não existe, pelo peso e impacto que os portugueses viam, em directo, o que estava a acontecer. São dois países o verdadeiro, a ferro e fogo, e o político, a assobiar para o lado.
Esse mundo, fechado, inatingível, distante e asséptico não existe, com os meios de comunicação que temos ao nosso dispor, e parece extraordinário que o Governo, e o PR, não tenham consciência plena disso. Não precisamos de intermediários, ou psicólogos, para perceber a grandeza do desastre que assola Portugal, e muito menos de discursos irrealistas.
Portugal só precisa que apaguem os incêndios.


Creio que António Costa (visivelmente chamuscado), e mais o seu primeiro (que chegou em último), e o seu núcleo estratégico, estarão todos a lamentar-se que foi azar. Não estava previsto que a "época dos fogos" viesse a ganhar esta expressão quantitativa e se arrastasse de forma tão flagrantemente intolerável. Até dá raiva, mas nestas condições uma estratégia tão simples e geralmente eficaz como o vivam habitualmente, gozem as férias, assobiem para o lado, desdramatizem e esperem que passe, torna-se grandemente comprometedora. A partir de um certo ponto a desvalorização apresenta-se contraproducente. Ninguém tinha calculado que isto chegasse a tanto - raios partam o azar! E vamos a ver como será possível minorar os estragos.

terça-feira, agosto 23, 2005

Bombeiros voluntários

Destaques na edição electrónica do "Público":
À esquerda, a ilustrar uma fotografia de um incêndio, o título "Chamas na Península Ibérica".
O corpo da notícia começa informando que "À semelhança de Portugal, também a vizinha Espanha tem sido este ano assolada por uma série de fogos florestais".
Do outro lado, outra chamada de atenção: "Sócrates promete solidariedade às populações de Coimbra". Em subtítulo, "Meios aéreos estrangeiros não evitam vaga de incêndios".
Assim enquadrada, a peça do centro, com o título "Vinte e um incêndios activos ao início da noite", fica bem mais aliviada da sua carga combustível.
Como se vê, o jornalismo de referência não resiste à vocação para bombeiro. E nas emergências é que elas se revelam.

A net e a crise da imprensa

Está a vir ao de cima, pelo que sei ao menos em França, em Espanha e em Portugal, uma discussão aflita sobre a crise da imprensa e a internet, que se reflecte em campanhas várias.
Os jornais de papel queixam-se de um mercado cada dia mais reduzido pela concorrência dos gratuitos e dos digitais.
E se esses se lamentam do decréscimo das tiragens, todos, meios escritos ou audiovisuais, choram a fuga da publicidade, a cada hora mais escassa e disputada.
Mas se bem olharmos verificamos que as preocupações não se limitam à questão financeira, à luta pela sobrevivência económica.
Se bem repararmos vemos que o que lhes dói, mais do que a fuga de receitas publicitárias provocada pela imprensa digital, é a perda do monopólio da fabricação das representações sociais da realidade.
As queixas mais doloridas vão para “os perigos da Internet”, a falta de controle do que aqui se passa, a necessidade de regulamentação do meio.
Facilmente se percebe a mensagem.
Um dos pilares das nossas sociedades ocidentais é o domínio da cultura e da opinião pública. Como teorizava o ideólogo comunista António Gramsci, os intelectuais é que podem mudar as mentalidades; e com muito mais eficácia do que as escolas, que se encarregavam disso no século XIX, quem tem agora essa função são os media.
Agora as escolas criam analfabetos, e os meios de comunicação dão-lhes as palavras de ordem com que se orientam, ensinam-lhes o que pensar, em quem votar ou o que aplaudir.
A imprensa, a comunicação, não é apenas um negócio que vende noticias, mas também ideias, opiniões, ideologia.
Como já se provou, a imprensa pode vencer exércitos, pode ganhar eleições, e os golpes de Estado dão-se antes de tudo na televisão, na rádio, nos periódicos.
E aqui está a verdadeira razão do pânico: o meio digital parece ser incontrolável.
Os donos do jogo, que há muitos anos impõem as suas consignas e estabelecem um reinado de terror, com um rigoroso patrulhamento ideológico e a denúncia paralisante dos que se afastam da linha justa definida pela cartilha, sentem o terreno a fugir-lhes debaixo dos pés.
Como se alcança com nitidez também em Portugal.
De onde decorre também o alto apreço em que devemos ter, cada dia mais e mais, a internet.

Do Portugal Profundo

A ler todos os dias: um exemplo de intervenção cívica e cidadania, de um português que nos honra pelo que é, e nos envergonha pelo que continuamos a ser. Fracos, complacentes, cúmplices.

O imperativo da reorganização administrativa

Sobre uma questão essencial a enfrentar no nosso país (a reforma da administração local, incluindo a necessária reestruturação do mapa administrativo) publicou José Alberto Xerez um excelente artigo no "Diário de Notícias". Que não passe sem a devida atenção.

Eficiência autárquica
O Estado possui, em Portugal, uma estrutura dirigista e centralizada, mal preparada para servir os cidadãos.
A inversão desta situação passa por aplicar à organização do Estado o princípio da subsidiaridade. Neste domínio a regra de ouro deverá ser a de que tudo o que puder ser eficazmente resolvido a um nível inferior não necessita de ser decidido a um nível superior.
Esta regra de ouro aponta para o reforço da capacidade de intervenção das autarquias, com vista a possibilitar um maior grau de aproximação da administração local aos cidadãos.
Estudos efectuados nos Estados Unidos da América consideram que uma gestão autárquica eficiente exige circunscrições municipais com populações reduzidas, situadas entre os 30000 e os 50000 habitantes.
Os especialistas nesta matéria consideram, pois, que o grau de eficiência da gestão autárquica se vai diluindo à medida que a dimensão populacional das autarquias vai aumentando. Grandes cidades americanas têm vindo a ser organizadas de acordo com este princípio, convindo referir a este propósito o caso de São Francisco, cuja área metropolitana abrange uma série de municípios de reduzida dimensão. Santiago do Chile está também subdividida numa série de munícipios, sendo de igual modo um caso paradigmático a considerar neste domínio.
Em Portugal, muitas das autarquias têm uma população superior aos níveis citados, em particular as que se situam nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.
Convirá referir os casos específicos das câmaras de Lisboa e do Porto, que pelo seu gigantismo e ineficiência deveriam ser subdivididas em diferentes circunscrições municipais, à semelhança do que se verifica noutras grandes cidades espalhadas pelo mundo.
Efectuar uma reorganização administrativa do País, com especial incidência nas áreas metropolitanas, de modo a obterem-se circunscrições municipais com dimensões populacionais mais adequadas, deverá ser um objectivo a prosseguir, de forma gradual, no médio-longo prazo.
A aproximação das autarquias aos seus munícipes implica ainda a existência de uma maior correlação entre as receitas e as despesas municipais, o que pressupõe o acréscimo percentual das receitas cobradas localmente, em detrimento das transferências vindas do poder central .
Neste contexto, impõe-se fazer uma reforma da fiscalidade autárquica no sentido de contemplar formas de tributação que aumentem a quota-parte dos impostos cobrados localmente.
Uma derrama aplicável aos rendimentos das pessoas singulares cobrados na área municipal poderia proporcionar o necessário reforço das receitas locais e uma maior correlação entre as receitas e as despesas camarárias, pelo que os autarcas seriam mais fácilmente responsabilizados pela sua gestão.
Convirá referir que a carga fiscal dos contribuintes deverá permanecer inalterada, o que implica a diminuição do imposto aplicado pelo Estado, por forma a compensar o valor da derrama de afectação municipal.
Deste modo, os munícipes, que suportam localmente com os seus impostos uma parte acrescida das despesas, terão uma maior apetência para analisar como os seus dinheiros foram gastos. Estarão, portanto, mais aptos para sancionarem negativamente com o seu voto a gestão camarária, quando sejam detectadas ineficiências ou desvios da política municipal.
Teria, também, todo o interesse, numa nova concepção de gestão municipal, que as grandes prioridades estratégicas da política autárquica fossem referendadas localmente. A adopção de referendos sistemáticos sobre as principais opções das autarquias permititia aos autarcas desenvolver uma gestão mais adaptada às expectativas das respectivas comunidades.
A concretização destas medidas, ao proporcionar uma maior eficiência e transparência da gestão municipal, possibilitaria aos cidadãos escolher a autarquia mais capaz de satisfazer as suas necessidades e ambições. Estariam, deste modo, criadas as condições para o desenvolvimento de uma saudável concorrência entre as diferentes autarquias, com o correspondente acréscimo de eficiência que daí necessáriamente resultaria.

domingo, agosto 21, 2005

Movimento 560: Jovens apoiam produção nacional

O Movimento 560 quer pôr os portugueses a olhar para o código de barras. 560 é a sequência de números que indica a proveniência portuguesa dos produtos. Trata-se de um pequeno gesto que pode ajudar os produtores nacionais.
A ideia visa fazer algo pelas marcas e produtos nacionais, e parte de um conceito simples: pôr os consumidores a ler os códigos de barras dos produtos, para tentar captar mais compradores de produtos nacionais.
Desde o dia 22 de Julho que o "Movimento 560" existe, com o lançamento do site na internet. Ali se ensina a ler as informações incluídas nos códigos de barras ou, pelo menos, as essenciais.
«Queremos promover a compra do que é nacional, é fácil verificar a origem do produto através das etiquetas e informações inseridas no código de barras», explica um dos promotores da iniciativa.
«A ideia surgiu depois de várias conversas. Na universidade aprendemos a ler os códigos de barras e a informação a que corresponde cada uma das barras e números. Fomos investigar e percebemos que sequência de números corresponde aos códigos de produtos portugueses», explicou.
Na hora de escolher o produto é bastante fácil tomar uma atitude correcta: «É só procurar o código de barras do produto e verificar se o mesmo começa pela sequência numérica 560. Mas para que não haja dúvidas deve confirmar-se na embalagem a origem.»
O "Movimento 560" garante que a mensagem está a passar. E os responsáveis pensam já numa forma de conseguir chegar ao consumidores fora da rede: «Já temos muitas mensagens de pessoas que visitam o site e mostram curiosidade. Alguns blogues também já inseriram imagens nossas e a nossa mensagem, mas gostávamos de chegar ao maior número de pessoas, daí que pensamos em expandir a mensagem através de t-shirts, cartazes, etc». Para isso, o movimento espera poder contar com a ajuda de outros parceiros.
Por nós, aqui estamos!

Entra vara sai canudo

Com atraso, encontrei um delicioso apontamento no Nova Floresta sobre "O Cábula".
É uma injustiça que o país não conheça o que deve à Universidade Independente na promoção cultural das suas élites governantes. Da Engenharia ao Direito.
Aquilo sim, é um estabelecimento de notória utilidade pública. Um sucesso notável nomeadamente no campo das licenciaturas dirigidas ao horário extra-laboral. Para não dizer no campo da alfabetização de adultos.
Nestes tempos em que até os famosos brindes da Farinha Amparo já são uma recordação, os canudos da Independente são imprescindíveis à nossa classe política em ascensão.
Não ter o Dr. para sair no Diário da República é tão absurdo como não ter uma gravata para a tomada de posse.
Mas não há problema: lá no Loja do Arouca há remédio para tudo.

Três semanas depois o homem apareceu

Notou o Ruvasa, que certamente deve ter contado o tempo.
Eu não sei bem de quando data o desaparecimento, mas também reparei que nestes últimos três dias o homem surgiu com notórias instruções para marcar presença permanente em frente das câmaras.
Os assessores de imagem devem ter determinado que era a altura de recuperar visibilidade e iniciativa, e aconselharam-no também a associar os aparecimentos a mensagens positivas. Apareceu assim sucessivamente a proclamar o extraordinário sucesso das cobranças do fisco, a anunciar um novo hospital para Vila Franca, a elogiar o importantissimo papel dos bombeiros no evitar dos incêndios que não houve e a garantir apoios às populações afectadas pelos que houve.
Uma por dia, para marcar o ponto.
Entretanto, logo no reaparecimento, não resistiu ao tom queixinhas e choramingão que tinha notabilizado o outro.
Que são uns mal-intencionados, mesquinhos, politiqueiros, nem o deixaram gozar as férias, coitadinho...
Eu proponho que se ignore o homem. Esqueçam-no. Não liguem. Não vale a pena. Um dia destes quando menos se esperar ele vai-se embora. Cansa-se e pronto.

Prémio os mais viajados

Para os nossos repórteres no Extremo-Oriente: o Miguel do Combustões e o André do Duas Cidades.
Dois portugueses à solta.

O país que não merece ser desenvolvido

Passou injustificadamente despercebido o artigo de João César das Neves com o título supra, publicado há mais de um mês no "Diário de Notícias". É estranho, num tempo em que um badalado livro de José Gil batia recordes de vendas. E, todavia, a meditação sobre o ser de Portugal, ou sobre o ser português, passa por aqui.
E cá vai ele, até como possível contraponto do referido no postal antecedente.

Portugal fez tudo errado, mas correu tudo bem. Esta é a conclusão de um relatório internacional recente sobre o desenvolvimento português. Havia até agora no mundo países desenvolvidos, subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento. Mas acabou de ser criada uma nova categoria: os países que não deveriam ser desenvolvidos. Trata-se de regiões que fizeram tudo o que podiam para estragar o seu processo de desenvolvimento e... falharam.
Hoje são países industrializados e modernos, mas por engano. Segundo a fundação europeia que criou esta nova classificação, no estudo a que o DN teve acesso, este grupo de países especiais é muito pequeno. Aliás, tem mesmo um só elemento: Portugal.
A Fundação Richard Zwentzerg (FRZ), iniciou há uns meses um grande trabalho sobre a estratégia económica de longo prazo. Tomando a evolução global da segunda metade do século XX, os cientistas da FRZ procuraram isolar as razões que motivavam os grandes falhanços no progresso. O estudo, naturalmente, pensava centrar-se nos países em decadência. Mas, para grande surpresa dos investigadores, os mais altos índices de aselhice económica foram detectados em Portugal, um dos países que tinham também uma das mais elevadas dinâmicas de progresso.
Desconcertados, acabam de publicar, à margem da cimeira de Lisboa, os seus resultados num pequeno relatório bem eloquente, intitulado: "O País Que Não Devia Ser Desenvolvido - O Sucesso Inesperado dos Incríveis Erros Económicos Portugueses".
Num primeiro capítulo, o relatório documenta o notável comportamento da economia portuguesa no último meio século. De 1950 a 2000, o nosso produto aumentou quase nove vezes, com uma taxa de crescimento anual sustentada de 4,5 por cento durante os longos 50 anos. Esse crescimento aproximou-nos decisivamente do nível dos países ricos. Em 1950, o produto de Portugal tinha uma posição a cerca de 35 por cento do valor médio das regiões desenvolvidas. Hoje ultrapassa o dobro desse nível, estando acima dos 70 por cento, apesar do forte crescimento que essas economias também registaram no período. Na generalidade dos outros indicadores de bem-estar, a evolução portuguesa foi também notável.
Temos mais médicos por habitante que muitos países ricos. A mortalidade infantil caiu de quase 90 por mil, em 1960, para menos de sete por mil agora. A taxa de analfabetismo reduziu-se de 40 por cento em 1950 para dez por cento.
Actualmente a esperança de vida ao nascer dos portugueses aumentou 18 anos no mesmo período. O relatório refere que esta evolução é uma das mais impressionantes, sustentadas e sólidas do século XX. Ela só foi ultrapassada por um punhado de países que, para mais, estão agora alguns deles em graves dificuldades no Extremo Oriente. Portugal, pelo contrário, é membro activo e empenhado da União Europeia, com grande estabilidade democrática e solidez institucional. Segundo a FRZ, o nosso país tem um dos processos de desenvolvimento mais bem sucedidos no mundo actual. Mas, quando se olha paraa estratégia económica portuguesa, tudo parece ser ao contrário do que deveria ser. Segundo a Fundação, Portugal, com as políticas e orientações que seguiu nas últimas décadas, deveria agora estar na miséria. O nosso país não pode ser desenvolvido. Quais são os factores que, segundo os especialistas, criam um desenvolvimento equilibrado e saudável? Um dos mais importantes é, sem dúvida, a educação.
Ora Portugal tem, segundo o relatório, um sistema educativo horrível e que tem piorado com o tempo. O nível de formação dos portugueses é ridículo quando comparado com qualquer outro país sério. As crianças portuguesas revelam níveis de conhecimentos semelhante às de países miseráveis. Há falta gritante de quadros qualificados. É evidente que, com educação como esta, Portugal não pode ter tido o desenvolvimento que teve. Um outro elemento muito referido nas análises é a liberdade económica e a estabilidade institucional. Portugal tem, tradicionalmente, um dos sectores públicos mais paternalista, interventor e instável do mundo, segundo a FRZ. Desde o "condicionamento industrial" salazarista às negociações com grupos económicos actuais, as empresas portuguesas vivem num clima de intensa discricionariedade, manipulação, burocracia e clientelismo. O sistema fiscal português é injusto, paralisante e está em crescimento explosivo. A regulamentação económica é arbitrária, omnipresente e bloqueante.
É óbvio que, com autoridades económicas deste calibre, diz o relatório, o crescimento português tinha de estar irremediavelmente condenado desde o
início. O estudo da Fundação continua o rol de aselhices, deficiências e incapacidades da nossa economia. Da falta de sentido de mercado dos empresários e gestores à reduzida integração externa das empresas; da paralisia do sistema judicial à inoperância financeira; do sistema arcaico de distribuição à ausência de investigação em tecnologias. Em todos estes casos, e em muitos outros, a conclusão óbvia é sempre a mesma: Portugal não pode ser um país em forte desenvolvimento.
Os cientistas da Fundação não escondem a sua perplexidade. Citando as próprias palavras do texto: "Como conseguiu Portugal, no meio de tanta asneira, tolice e desperdício, um tal nível de desenvolvimento? A resposta, simples, é que ninguém sabe.
Há anos que os intelectuais portugueses têm dito que o País está a ir por mau caminho. E estão carregados de razão. Só que, todos os anos, o País cresce mais um bocadinho. "A única explicação adiantada pelo texto, mas que não é satisfatória, é a incrível capacidade de improvisação, engenho e "desenrascanço" do povo português. "No meio de condições que, para qualquer outra sociedade, criariam o desastre, os portugueses conseguem desembrulhar-se de forma incrível e inexplicável." O texto termina dizendo: "O que este povo não faria se tivesse uma estratégia certa?".

sábado, agosto 20, 2005

O país das maravilhas

Desde que chegou, no seu trotezinho firme e seguro, o progresso tem feito prodígios em Portugal.
Sabiam que já estamos atrás do Chipre?

Directório de blogues em língua portuguesa

Que me dizem da ambição de listar todos os blogues de língua portuguesa?
Pois isso mesmo pretende fazer este novo directório, que tomou para si a epígrafe que foi buscar a Fernando Pessoa: "A minha Pátria é a Língua Portuguesa".
Sonha demasiado alto?
"Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena"!

Católicos de tradição encontram-se em Fátima

Recordamos, como "A Casa de Sarto" tem vindo a anunciar, que decorre neste fim de semana, dias 20, 21 e 22 de Agosto, a Peregrinação Internacional da Fraternidade Sacerdotal São Pio X a Fátima.
Trata-se de uma oportunidade única para todos os católicos portugueses, que podem deste modo tomar contacto e associar-se ao reencontro da Igreja com as suas raízes, com a grande tradição do catolicismo em que também nasceu e cresceu Portugal.

Dia de Goa, Damão e Diu

Hoje, assinala-se o Dia de Goa, Damão e Diu. Em todos os cantos do mundo, a diáspora indo-portuguesa comemora a sua especificidade e identidade.
Conheçam mais no SuperGoa, ou no World Goa Day.

O bem da nação

Eis o mais recente artigo de Nuno Rogeiro na revista "Sábado". Para edificação geral. E que leia quem souber.

O bem da nação

Parte da minha geração militante acreditava no "nacionalismo revolucionário". Eu continuo por lá.

Isso pode hoje parecer arqueológico, ou, para usar uma palavra cara a Vasco Pulido Valente, "fantasista", mas a verdade é que parte da minha geração militante acreditava no "nacionalismo revolucionário" (NR). Eu, pescador, me confesso: continuo por lá.
As simplificações são sempre perigosas, e não se conseguirá colocar o Rossio do "nacionalismo" na Betesga deste artigo. Mas pode ir-se adiantando que, para a nossa clique pensante, o NR não era de "esquerda" nem de "direita", embora pudesse agregar gentes dessas famílias, e de outras.
Haveria por ali anarquistas integrais e integralistas católicos, marxistas e tradicionalistas, "fascizantes" e "comunistas", mas a ideia geral era a de que, na ordem política visível, a "nação" era o valor supremo. A "nação", para o NR, não era porém nem o "torrão pátrio" dos românticos, nem o império dos conquistadores (de opereta ou a sério), nem o "País" dos patrioteiros e da "burguesia", colonialista, neocolonialista ou paracolonialista. Não era também, claro, o "Estado", nem o "sistema de governo".
Tratava-se de outro nome para a "comunidade popular", delineada voluntariamente na história, projectada na universalidade, e cuja liberdade e independência precisavam de ser defendidas, no presente e futuro.
A palavra voluntariamente era sobremaneira importante. Como se sabia dos livros (antes, desde o liceu) e dos factos (a começar pela besta nazi), as nações involuntárias, deterministas, "objectivas" ou "étnicas", eram sempre uma criação administrativa de um poder despótico, apesar dos seus putativos momentos "liberais".
Portugal aparecia-nos como projecto "voluntário", no sentido em que dependia da vontade exclusiva dos seus membros, não oprimiria terceiros (o NR era o contrário do imperialismo, em muitos sentidos), não discriminaria por critérios "externos" (como a cor da pele) e se solidificava "culturalmente" através de múltiplos factores (a observação de Pessoa sobre a Pátria-Língua fazia, achávamos, muito sentido).
0 NR era "revolucionário" (por oposição ao "nacionalismo reaccionário") no sentido em que se dispunha sempre à "revolução" para salvar ou libertar a Nação (em perigo, ou ocupada), e ainda porque advogava a revolução social, no sentido de criar um elemento "interno" de justiça (este era o elemento mais discutível, e que dividia, pois era mais "ideológico" do que "pragmático").
Por outro lado, é preciso admitir que admirávamos - como certas, ou apenas "adequadas" - as revoluções "nacionais" na América Latina, na China, no Médio Oriente, e que partíamos de um princípio: Portugal precisava de uma "estratégia" de sobrevivência e afirmação, e não de meros remendos "tácticos".
Leituras? António José Saraiva e Franco Nogueira, Manuel de Lucena e Borges de Macedo, Pulido Valente e Nogueira Pinto, Raul Brandão e Eça, Pessoa e Torga, e muitos outros, com rasgos ou confirmações. E ainda o pequeno mas luminoso ensaio de José Miguel Júdice, introduzindo o incompreendido e interdito José António.
Porque me lembrei eu de tudo isto? É preciso fazer um desenho?

O elixir da jumentude

A propósito de uma anunciada concentração de homenagem a Rudolf Hess, o PCP, que já só sobrevive a balões de oxigénio, entrou em frenesim histérico.
Saindo da letargia senil e agitando-se numa saborosa linguagem tirada dos arquivos do anti-fascismo raivoso, o decrépito ancião inundou os jornais com a sua «mais profunda repulsa e indignação», explicando de dedo em riste que se trata de homenagear o «braço direito de Hitler e comandante do tristemente célebre campo de concentração de Auschwitz» e que a Constituição portuguesa proíbe «actividades de natureza nazi-fascista».
Consideram os órfãos de Estaline que «não basta o anúncio de medidas de acompanhamento da concentração por parte das forças policiais» e exigem tremelicantes que o Governo e os poderes públicos «façam cumprir os preceitos constitucionais», manifestando ainda «estranheza pela inacção dos poderes públicos face a sítios na net e a estruturas difusoras de ideais fascistas, racistas e xenófobos, em clara afronta aos princípios constitucionais, ao regime democrático e à memória dos milhares de homens e mulheres que sofreram os horrores do nazi-fascismo».
Rejubilamos com as melhoras do doente. Afinal ainda mexe!
E associamo-nos às justas palavras de ordem: saia de imediato um mandado de captura contra o tal Rudolfo! Já!

Os blogues vistos das redacções

No "Diário de Notícias", sobre "O Verão quente de Sócrates", escreve a dado passo Filipe Santos Costa:
Blogosfera - Os blogues são o meio que mais tem zurzido no Governo. Que importância tem isto, sendo a sua audiência tão limitada? É que os blogues de política são bastante lidos nas redacções dos media tradicionais e, desta forma, condicionam em certa medida o olhar da comunicação social. Este efeito foi notório no caso da Ota e do TGV - cerca de 70 blogues, entre eles os mais influentes, fizeram campanha exigindo informação sobre estes projectos, o que terá ajudado a manter a atenção sobre o assunto. Nos cursos de jornalismo chama-se a isto agenda setting, ou seja, a escolha dos assuntos que são notícia.

Depois do texto dos colegas Marina Almeida e Miguel Gaspar, parece que o debate sobre a blogosfera continuou vivo no matutino da Avenida da Liberdade. Curiosa é a polarização de opiniões: sobre o que uns viam como acentuada irrelevância declara este que está a comandar as agendas. Não é dizer pouco.

quinta-feira, agosto 18, 2005

Aprendizagem da serenidade

Do falecido escritor francês Louis Pauwels quase todos, pelo menos os da minha geração, conhecem "O Despertar dos Mágicos", escrito em co-autoria com Jacques Bergier. Não é exagero afirmar que mudou a vida a muita gente; pelo menos significou para uma imensidão de leitores a descoberta de um outro universo mental, esse mundo paralelo explorado pelo pensamento a que Pauwels denominou de realismo fantástico e que rompia decididamente com o positivismo instalado, entrando sem preconceitos pelas fronteiras do insólito, do desconhecido, da aventura do conhecimento sem fronteiras nem limites. Sei bem que muitos com o tempo acabaram por perder o fascínio por essa atmosfera de fantasia, que lhes tinha enchido a adolescência e a juventude. É a vida, com os seus ditames e exigências. Mas a obra mantém-se entre as mais divulgadas e conhecidas a nível mundial.
Em Portugal, e na mesma linha de "O Despertar dos Mágicos", veio ainda a ser publicado "O Homem Eterno", da mesma parceria Pauwels-Bergier.
Porém, no mesmo processo de crescimento, a mim vieram depois a tocar-me particularmente duas obrinhas bem mais obscuras de Louis Pauwels, também editadas em Portugal. Uma é a "Carta Aberta às Pessoas Felizes", em que o autor apresenta aos leitores a sua tese, simples mas original, de que as pessoas felizes são a maioria, estão em maioria, apenas desconhecem tal facto, submersas que estão pelo domínio absoluto das ideologias que têm como pressuposto a infelicidade dos homens. Descobrissem os felizes essa sua condição maioritária e sacudissem o jugo da má consciência e angústia semeadas permanentemente pelos que vivem da exploração do tema das desgraças do mundo e o conjunto da humanidade poderia ser bem mais feliz.
Este livro de Pauwels mereceu uma resposta de Paul Sérant, escritor da mesma geração e pelo menos em parte dos respectivos percursos seu companheiro de convívios e tertúlias, o qual escreveu de imediato uma "Lettre Ouverte a Louis Pauwels sur les gents inquiets et qui ont bien raison de l'être". Neste escrito, como o comprido nome indica, o autor replicava a Pauwels que podia ele ter muitas razões, mas a verdade é que também não faltam motivos neste mundo para permanecer inquieto, por mais tranquilizante que fosse o quadro visto pelos olhos de Pauwels. Entre a inquietação pessimista de Paul Sérant e o optimismo tranquilizante de Louis Pauwels trava-se interessante diálogo, de agradável e proveitosa leitura.
Também foi publicado em Portugal o ensaio de Pauwels chamado "Aprendizagem da serenidade". Neste, em consonância com a apologia do optimismo e da felicidade apresentada no outro, Pauwels procura desenvolver a receita, expondo-nos a sua visão da necessária serenidade que é estádio indispensável para alcançar a desejável situação de pacífica harmonia e confiança que seria a chave do equilíbrio, próprio e colectivo, propugnado na outra obra. É uma espécie de teoria da indiferença, trabalhada como método de vida. As derrotas não vergam nem afectam a quem a elas permaneça insensível e distante, calmo e seguro no caminho.
Eu confesso que permanecei sempre desconfiado e contrafeito perante as divagações intelectuais de Pauwels nesta sua fase; parecia-me sempre uma curiosa mistura de ocidentalismo entusiasta servido por demasiadas leituras orientalizantes. E, certamente por incapacidade pessoal para aderir aos ensinamentos do mestre, lá continuei de espírito inquieto e agitado, como me vem de nascença. Mas não querendo deixar de reconhecer os méritos da ideia nunca deixei de recomendar aos outros: " - Vejam lá, o que é preciso é a aprendizagem da serenidade... os serenos duram mais..."
E para meu uso particular cunhei também uma filosofia própria: o que é preciso é bossa de camelo. Criar em nós as reservas de energia para continuar, seja o que for que vier de fora. Derrotas, adversidades, desgraças várias nunca faltaram. Pode-se sobreviver no deserto, se soubermos que é uma prova de resistência. Quem encara cada etapa como o fim da estrada é que já não tem forças para alinhar na etapa seguinte.

Sangue, suor e lágrimas

Há dias um amigo deste espaço elogiou a minha “facilidade em escrever”. O intuito não era ofensivo, era simplesmente descartar-se das responsabilidades – eu desafiava-o para desenvolver também um blogue e ele assim, coitado, não pode - porque não tem a mesma facilidade em escrever. De caminho passava-me a mão pelo pêlo. Claro que engoli, mas irritou-me. Facilidade? Que sabe ele das minhas facilidades ou dificuldades? Quem sabe da tenda é o tendeiro. Eu é que posso dizer o que custa. Para usar palavras de outro, que têm a vantagem de já estar escritas, aqui só há sangue, suor e lágrimas. Se o pobre soubesse do meu trabalho e dos meus horários caía para o lado.
A verdade é que não existe tal facilidade. Nunca houve tal. Um bom texto, para aproveitar outra vez frases já feitas, nasce de uns dez por cento de inspiração e de noventa por cento de transpiração. Por exemplo, o leitor encontrou já aqui belos textos de Gustavo Corção, que é sem dúvida um grande escritor. Pois dizia este que nunca publicava um artigo sem que, depois de o “acabar”, o lesse pelo menos umas sete vezes – sempre refazendo e alterando o que não soava bem.
O mito da inspiração é música para românticos e preguiçosos. Cai bem nos espíritos de quem procura mistificações ou alibis para a inércia. Mas não existe tal. O que existe sempre em literatura, como em qualquer arte, é trabalho de oficina – tendo atrás a vida, a imaginação, a criatividade, o génio individual, ou lá o que quiserem, mas sempre e necessariamente o trabalho oficinal. Não há espontaneidade que não nasça de muito trabalho.
Claro que sempre houve quem se deleitasse a compôr a imagem. É muito conhecido entre nós um trecho célebre de Fernando Pessoa, que era um grande pintor, em que ele explica aos vindouros a génese da sua sequência “O Guardador de Rebanhos”. Deixou ele escrito que andava à cata de inspiração há um ror de tempo, e nada. Parecia que a fonte tinha secado. E súbita noite, sem aviso ou prenúncio, chegou-lhe repentina vontade de escrever, como se uma força superior o comandasse, e vá de correr para uma mesa onde de jacto foi escrevendo em êxtase profundo os seus versos, até ao fim. Mão oculta pegara na sua e lhe guiara a escrita, enquanto em transe o autor/receptor obedecia.
Evidentemente que a historieta é uma imposturice em que Pessoa é fértil. Serve para encher a imaginação das donzelas letradas, dos ingénuos e dos místicos. Mas é de todo mentira. Os poemas que compõem aquela sequência foram laboriosamente compostos ao longo de anos, até assumirem a forma final e lhes ser dado o enquadramento unitário por que ficaram. Alguns deles nasceram mesmo intervalados de bastantes anos, como acontece também com os poemas da “Mensagem”, a quem o poeta acabou por unificar num livro/poema, em políptico harmonioso e feliz.
A moral da história que a tire quem quiser.