o sexo dos anjos
Um blogue às direitas em tempos sinistros
domingo, agosto 31, 2008
sábado, agosto 30, 2008
Agradecimentos
Encontro na net
Cortinas de fumo
Do Abrupto:
Para que serve a RTP ao governo? O Telejornal das 13 horas de hoje dá um magnífico exemplo, tão escandaloso como inequívoco. Todo ele foi construído para responder às críticas ao Ministro da Administração Interna e ao governo sobre a incapacidade de lidar com o agravamento da criminalidade.
Depois de várias reportagens sobre operações realizadas um pouco por todo o país, um típico caso do uso das forças policiais para disfarçar um problema político de fundo, sem sabermos se os resultados são satisfatórios, se este tipo de acções são as adequadas à situação actual, se têm ou não continuidade, etc., etc., típicas acções destinadas a "encher o olho", os responsáveis pelo Telejornal foram visitar ao seu gabinete o Ministro da tutela da RTP e da propaganda, certamente a seu pedido, para este fazer uma declaração de ataque à oposição. Em contraponto, há apenas imagens antigas de declarações da oposição, entremeadas pelos ataques do Ministro Santos Silva, feitos de encomenda para a peça da RTP. A estrutura da peça é a do discurso governamental, com a agravante de ser feito de encomenda, - o Telejornal não o discurso -, para controlar os danos e dar o pódio ao Ministro.
No alvo
Do Portugal dos Pequeninos:
"O PS, na encarnação Guterres e quando Costa, o actual e irrelevante presidente da CML, era ministro da Justiça, "reformou" o processo penal no sentido de agravar as medidas de coacção. As cadeias encheram-se a seguir de presos preventivos desde - ironias do destino - deputados da nação até vulgares ladrões de bicicletas. Na dúvida, prisão preventiva. O PS, na encarnação Sócrates e com outro Costa na Justiça, voltou a "reformar" o processo penal para o "aliviar" da "dureza" da medida máxima de coacção. O resultado imediato foi a soltura de muitos presos preventivos, rapaziada que, de certeza, é mais dada a entrar numa gasolineira aos tiros do que nas "novas oportunidades". O problema é dos criminosos, de quem aplica a lei ou de quem, consoante a "encarnação" e os "tempos", a faz e desfaz?"
sexta-feira, agosto 29, 2008
Levantemos a voz
Somos mais e somos melhores. Eles são poucos, fracos e cobardes. Quando alguém os enfrenta encolhem-se, quando alguém os combate fogem.
Porque desistimos, porque nos afastamos, porque consentimos?
Tudo lhes demos sem luta. O país que dizemos ser o nosso, a gente de que somos, a terra de que nascemos.
Sobrevivemos cada um em seu canto, entristecidos e mudos. Muitas vezes o coração dói, a alma se revolta - mas resignamo-nos, e seguimos calados.
Porque escolhemos o exílio, se aqui estamos?
Só são derrotados os que desistem.
É preciso passar da revolta interior à revolta activa, e erguer a voz, e gritar não ao que não queremos.
Revoltemo-nos, pois. Tomemos a palavra. As palavras têm muita força. Proclamemos a verdade. A verdade tem muita força. Gritemos por justiça. A ânsia de justiça está no coração dos homens. Ergamos bandeiras, ocupemos a praça pública, passemos à ofensiva.
Recusemo-nos ao acomodamento, ao calculismo mesquinho, à morte em vida.
Levantemos a voz. Onde quer que seja preciso, onde a consciência o imponha, em toda a parte e a toda a hora - faça-se ouvir a nossa voz.
Cessem o cansaço, a desilusão, a amargura, as contrariedades, os desgostos, as derrotas, os abandonos - nada conta, quando nos devemos ao que é mais que nós.
Livres, orgulhosos, insolentes, sem falsos respeitos por falsas conveniências - levantemos a voz.
quarta-feira, agosto 27, 2008
Os frutos das reformas
Os efeitos são precisamente os que na altura podiam prever-se. Calculando por alto, mas sem exagerar, parece-me que o executivo conseguiu evitar dessa forma que neste momento estivessem presos uns 2000 indivíduos que de outro modo o estariam. Contando os que sairam logo por efeito da aplicação das novas normas, as prisões preventivas que neste entretanto não foram decretadas e sem essas modificações o seriam, e as suspensões de penas que foram aplicadas em situações em que anteriormente não o seriam, é esse o número.
Se as informações mais recentes, referentes a 1 de Agosto, indicam que nessa data existiam em Portugal um total de 11 013 presos, não é difícil concluir que a não terem surgido as tais novidades legislativas o número seria agora superior a 13 000, com tendência a subir até aos 14 000 - números estes que, aliás, já tinham sido atingidos em anos recentes, quando as exigências ditadas pela criminalidade eram menos prementes do que as actuais.
Alguém com experiência no terreno duvida que a manutenção em liberdade destes 2000 candidatos permanentes à cadeia esteja em estreita relação com a vaga de crimes que toda a gente agora discute? Basta ler com atenção as notícias para verificar a frequência com que se relata que os detidos num assalto já tinham sido detidos dias antes noutro, e estavam com medidas de coacção comprovadamente inadequadas.
Para reflectir sobre as causas das coisas, e nomeadamente as opções políticas que estiveram na origem deste ano trágico, convido a uma leitura atenta deste artigo do Correio da Manhã de 5 de Agosto (anterior, portanto, à onda mais recente de assaltos e crimes violentos).
Cito:
"O Estado está a poupar 78 mil euros por dia com a diminuição do número de reclusos nas cadeias portuguesas. Só no último ano – e desde que entraram em vigor as novas leis penais que restringiram a aplicação da prisão preventiva e dificultaram as detenções – as prisões perderam 1752 reclusos, o que significa gastar menos 78 154 euros por dia – cada preso custa ao Estado 44,61 euros/dia."
Constantes
Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem (Edição Gradiva, Lisboa, 1992)-pág. 244."A Rússia expandiu-se sob o regime czarista, tal como o fez sob os bolcheviques; o elemento constante foi a expansão, não a forma específica de governo. É provável que um futuro governo russo completamente liberto do marxismo-leninismo continue igualmente expansionista, uma vez que o expansionismo constitui uma expressão da vontade de poder do povo russo."
terça-feira, agosto 26, 2008
Criminalidade: os casos esporádicos de hoje
Trio ataca pizaria
Posto de combustível no Seixal assaltado por trio armado
Dois homens armados assaltaram banco Millennium BCP na Tapada das Mercês
Posto de combustível assaltado na via rápida da Costa de Caparica
Estação dos CTT em Setúbal assaltada à mão armada
Esfaqueou até à morte no meio da rua
Mulher baleada pelo companheiro está em estado grave
Dois homens armados assaltaram banco Santander Totta de São João das Lampas
Assalto a dependência do Banif eleva para três os bancos assaltados hoje
A Justiça, de Costa a Costa
O presidente da Comissão Independente de Juízes, Conselheiro Florindo Pires Salpico, defendeu que a nova legislação institui um mecanismo criado pelo executivo de José Sócrates para «ter acesso e controlar» a investigação criminal, viabilizando uma excessiva concentração de poderes na figura do primeiro-ministro, através da nomeação do secretário-geral de Segurança Interna.
De acordo com a nova legislação, o secretário-geral de Segurança Interna funcionará na dependência directa do primeiro-ministro.
E para terminar desabafou o mesmo Magistrado (aposentado, pormenor que a LUSA não refere) que não se compreende a decisão do Presidente da República de promulgar as leis de Segurança Interna e de Organização e Investigação Criminal, acrescentando que Cavaco Silva ignorou um documento que lhe foi entregue em Maio pela Comissão Independente de Juízes, identificando os «perigos» das mais recentes iniciativas legislativas.
«O Presidente da República foi alertado para as várias inconstitucionalidades destas leis e, não obstante essa chamada de atenção, publicou-as sem nenhum problema. É algo estranho, revela que está muito mal aconselhado nestas matérias. Esperávamos que houvesse uma maior preocupação em analisar estas questões».
Pois é.
Justiça de Costas
«Tal como o novo mapa judiciário, as alterações ao Processo Penal e ao Código Penal criam uma verdadeira instrumentalização da justiça portuguesa».
Para o dirigente sindical o pior é que existe um «sentimento de impunidade que a sociedade portuguesa continua a ter em relação ao crime e que, infelizmente é verdadeiro».
E para terminar com uma conclusão: com todas as alterações operadas na justiça portuguesa «cada vez mais quem puder pagar a um bom advogado consegue sempre escapar às malhas da lei».
Tal como o veneno do escorpião está na cauda, e o mérito do soneto reside no seu último verso, a parte final das declarações acertou em cheio.
A derrocada
"No local encontram-se já técnicos do Ministério da Justiça, da Câmara de Fafe e da empresa responsável pela obra."
"Para já, vai proceder-se ao escoramento do tecto para evitar novos desabamentos."
E depois o Tribunal retomará as suas funções, por entre o entulho e as escoras.
Os caminhos de Obama
Parece-me efectivamente que o facto está dentro da linha de comportamento do aspirante Obama. Ele já demonstrou que fará e dirá tudo o que julgar ser preciso para ganhar as eleições. Se Biden foi o escolhido foi obviamente porque foi considerado a melhor escolha para esse objectivo. As decisões políticas neste momento são ditadas pelo imperativo de aplanar o caminho, e ultrapassar resistências.
E porque terá a escolha recaído sobre Biden?
Li comentadores que destacam como finalidade principal a conquista de um eleitorado (ou eleitorados) até agora resistentes aos encantos de Obama. Predominantemente masculino, trabalhador, e de tradição católica. Biden apresenta-se como católico praticante, e, visivelmente, é homem e é branco. Tem notoriedade política há trinta anos. A sua indicação para Vice seria ditada, portanto, pela necessidade de, aproveitando essa notoriedade, conquistar eleitores entre o proletariado branco, e os católicos.
Todavia, outros observadores apontam para outros sectores eleitorais como sendo a justificação da escolha. A comunidade judaica também tem sido relapsa à mensagem de Obama, e tem manifestado alguma insegurança e desconfiança em relação a ele. Trata-se, como é sabido, de uma força nada negligenciável - e para estes a questão determinante no momento do voto será a posição em relação a Israel. Ora, o Senador Biden, ao que parece, já declarou no passado que se considerava "sionista", e fez questão de declarar que tinha "ligações familiares" com a comunidade. Proclamou que Israel é o o único grande apoio da América no Médio Oriente.
Por outro lado, a grande imprensa tem destacado a preocupação de Obama em ultrapassar a sua imagem de fragilidade e inexperiência em questões internacionais, associando ao seu o nome de um senador conhecido como experiente e sabedor precisamente nesse domínio.
Provavelmente, todas estas observações estão com a verdade - exprimem uma parte dela. Pelo menos aludem a questões que não podem deixar de ser consideradas no processo decisional do candidato Obama. Outras haverá, mas estas afiguram-se pertinentes.
Outra coisa será o que me atrai na incógnita Obama, e que exprimi atrás quando escrevi que para mim só poderiam nascer surpresas destas eleições se ele as ganhar. O que eu estava a pensar é que existem com frequência factores que parecem estar para além dos cálculos e da razão - e das vontades dos sujeitos.
A notícia surgida hoje sobre a detenção de uns indivíduos que planeavam matar Obama já nesta Convenção de Denver apresenta o maior interesse. Vamos a ver quais serão as consequências dela na marcha eleitoral. Estamos em dias decisivos.
Georgia On My Mind
Na verdade, ao olhar russo não se vislumbram sequer razões para ver diferenças substanciais de estatuto entre as repúblicas incluídas dentro das fronteiras reconhecidas da Rússia, como a Tchétchénia, e aquelas que imediatamente lhes são confinantes, do lado de fora dessa linha.
Os dados permanentes da geopolítica não se alteram com os regimes. A Rússia era uma potência expansionista no tempo dos czares, continuou a sê-lo com o comunismo soviético e prosseguirá sob Putin. As zonas de choque são as mesmas. O Cáucaso, com as três repúblicas que mencionei, é a zona de passagem da Ásia para a Europa, onde se concentram as linhas de abastecimento de energia de que vivem as economias ocidentais, e constitui também a ligação da grande massa continental russa com o Irão e a Turquia, e através destes para o Oriente Médio. O controlo sobre a zona constitui um objectivo estratégico permanente.
O culminar da operação sobre a Geórgia, ultrapassada a fase militar, situa-se já no plano político. Tudo leva a crer que o Presidente russo, conhecido por vezes por GazPutin, aguarda o momento de anunciar ao mundo que o povo georgiano se dotou de um novo Presidente, e que a escolha recaiu sobre um alto funcionário da Gazprom.
segunda-feira, agosto 25, 2008
Para além das divisões
Nesta ordem de ideias é possível situar a definição do imperativo maior da defesa do Ultramar, orientação que nunca apareceu identificada com o efémero e acidental que o regime era mas sim com o entendimento permanente e invariável da realidade nacional desde que a nação tinha extravasado os limites peninsulares - visão essa partilhada por todas as correntes políticas que em Portugal se tinham digladiado ao longo de século e meio de disputas civis e que se manteve incontestada praticamente até aos anos sessenta do século XX. Nos primeiros anos cinquenta ainda a Oposição se apresentava unida nas presidenciais em torno de Norton de Matos, proclamando enfaticamente que aquele que aceitasse ceder a mais pequena parcela dos territórios do Ultramar devia ser tratado como traidor, e tão traidor como quem aceitasse a ocupação de Lisboa; e no final dos anos cinquenta ainda a mesma oposição se apresentou em frente única às presidenciais reunida à volta de Humberto Delgado sem em momento algum exprimir dúvidas quanto à intangibilidade das fronteiras existentes e internacionalmente reconhecidas. Se as forças integrantes das diversas oposições acabaram por modificar as suas posições sobre a constituição territorial da nação portuguesa isso resultou de factores externos - e só aconteceu tardiamente, em geral por directa influência exterior (como aconteceu com os comunistas, e com o novo Partido Socialista, que veio a surgir, nesse aspecto como noutros, muito diferente do que anteriormente existiu).
A sucessão impossível
Apesar disso, não logrou institucionalizar um regime que lhe sobrevivesse por tempo significativo. O edifício jurídico-político, e ideológico, levantado para enquadrar o exercício do poder salazarista não estava preparado para viver sem Salazar. Penso que ele o sabia. O seu cepticismo não lhe permitia depositar muita fé em regímes políticos. Acreditava no poder, e no seu exercício. Acreditava em algumas grandes coordenadas básicas, a que esse exercício devia subordinar-se. Mas não acreditava que uma determinada forma pudesse prolongar-se independentemente dos factores objectivos e subjectivos para que tinha sido criada. Daí a sua abstenção no que respeita ao tema da sucessão, que impressiona frequentemente os historiadores: apesar de todas as pressões, nomeadamente a do tempo, que apertava, Salazar não preparou a sucessão. Creio que procedeu desse modo porque sabia que não teria sucessor. Sem a sua presença física as leis que regem a vida, e a história, imporiam os seus direitos. Seria estultícia pretender usar de um poder que se extinguiria com ele para tentar condicionar o que viria depois - quando esse poder já nada poderia pesar.
sexta-feira, agosto 22, 2008
Heróis e vilões: um retrato português
1. Um casal que anda há cinco anos a desrespeitar sucessivas ordens de sucessivos tribunais sequestrando uma criança que ficou irregularmente à sua guarda é levado em ombros pela opinião “esclarecida” e transformado em modelo de cidadania. Inventa-se até um novo conceito, inexistente na lei – o de “pais afectivos” –, para enaltecer ainda mais este edificante modelo de fuga permanente à justiça.
2. Um jovem que anda há cinco anos a procurar obter por todas as vias legais a tutela sobre uma filha que ninguém nega ser sua, e que viu todas as instâncias jurisdicionais confirmarem esta pretensão, é transformado em vilão pela mesma opinião “esclarecida” e vaiado na praça pública como se estivesse a cometer um acto ilícito. Na mesma sociedade, recorde-se, onde o conceito de paternidade responsável tantas vezes – demasiadas vezes – é mera letra morta perante a sistemática indiferença de gregos e troianos.
3. A advogada do casal – que chegou a ser transformada também em heroína de uma causa justa – abandona subitamente este patrocínio. E, num país onde tudo se sabe, de repente parece que ninguém quer indagar quais foram os motivos de tão surpreendente decisão.
É tempo de pararmos para tentar reflectir um pouco no meio desta gritaria “comunicacional” que demoniza uns e notabiliza outros. É tempo de percebermos quem transforma quem em herói e em vilão. E como. E porquê.
E para quê.
Obama: de que cor será o futuro?
O evoluir das sondagens dá conta de dificuldades acrescidas, que parecem acentuar-se com o decorrer do tempo. Pessoalmente, não fiquei surpreendido. Se é certo que por vezes os eleitorados correm atrás do que lhes surge como novo e diferente, não é menos verdade que frequentemente preferem a segurança do que já conhecem. Numa campanha tão longa como as presidenciais americanas, o efeito sedutor das novidades tende a diluir-se.
Nesta linha de raciocínio o candidato McCain terá sempre vantagem. Dele sabe-se o que se pode esperar, não deixa espaço a grandes incógnitas ou incertezas. É o candidato seguro da continuidade. Para mim, só poderá haver surpresa se ele perder.
Obama não se sabe o que viria a ser. Discordo frontalmente da opinião que tem vindo a vulgarizar-se de que com a eleição de Obama para Presidente dos EUA nada aconteceria de políticamente relevante e significativo. Vejo bem que ele próprio se tem esforçado por banalizar essa perspectiva, numa clara estratégia de dissipar receios e crispações (o que também pode estar a ter o efeito indesejado de desmobilizar entusiasmos). Porém, as realidades por vezes não dependem das vontades, nem dos próprios protagonistas dos acontecimentos. E a mim me parece que a posse de Obama como presidente da América seria sem dúvida um daqueles acontecimentos a que não é possível antecipadamente definir alcance e desenvolvimentos - mas dos quais tudo se pode esperar, mesmo o que ninguém espera.
O destino próximo da candidatura Obama pode começar a antever-se com o anúncio do candidato a Vice-presidente, aguardado para breve, com grande expectativa. Mas só com mais tempo será possível responder às interrogações que me motivaram este escrito.
Até pode acontecer que o "fenómeno Obama" venha a esvaziar-se e a desaparecer sem deixar rasto que se veja. A hipótese contrária é que justifica a especulação: podemos estar à beira de assistir a acontecimentos históricos de primeira grandeza, e permanecemos para aqui indiferentes e distraídos a dizer que não se passa nada.
quinta-feira, agosto 21, 2008
Memória do comunismo
O primeiro recorda a invasão da Checoslováquia, e o segundo, a partir desse acontecimento, contém um depoimento mais alargado de Cândida Ventura (actualmente com 90 anos, ela viu tudo e viveu tudo).
Os dois juntos dão-nos o quadro negro em que se movimentava a seita sinistra. Através de Cândida, que foi a primeira mulher no Comité Central, vemos a vida do PCP, aqui e lá fora, os seus protagonistas em retrato verdadeiro e ao vivo (atente-se em Cunhal, o "fulanão" como lhe chamou Flausino Torres, outro ex). Evoca-se Dubcek, Artur London, a esquizofrenia estalinista.
O comunismo não era na verdade tão mau como o pintam vulgarmente os anti-comunistas: era pior. E por vezes nada melhor que os ex-comunistas para nos virem recordar como era.
Infelizmente a esquizofrenia continua bem viva. Em recente publicação, "Os Anos de Salazar", que tem vindo a ser distribuída com o "Sábado" e com o "Correio da Manhã" tenho lido amostras espantosas dos extremos a que pode chegar a "historiografia" do sovietismo restante. No número mais recente um "historiador" relembra os feitos da ARA (Acção Revolucionária Armada) para tecer o panegírico do "braço armado" do PCP, e depois de enunciar as "acções armadas" praticadas oficialmente nos dois anos de actuação oficial da organização (é tudo muito oficial, podia ser publicado no Ávante, ou reproduzir simplesmente os comunicados do grupo, por ex. nunca surge referência alguma a vítimas dos atentados, só são atingidos navios, aviões, estruturas militares... ) conclui triunfalmente proclamando que tudo foi só "heroísmo e coragem". Não deve ter havido ninguém, entre os responsáveis da publicação, com sentido crítico bastante para lembrar que aquilo se chama normalmente terrorismo, e que desses actos resultaram vítimas, gente comum, daquela que o PCP gosta de dizer que defende. Não faltam outros exemplos de esquizofrenia (fuga à realidade, ocultação da mesma), como o último texto do recentemente falecido Martins Rodrigues em que este surgiu a justificar dentro da mais rigorosa ortodoxia estalinista o infame crime de homicídio pelo qual foi justamente condenado (a pena que só cumpriu parcialmente, pois entretanto surgiu o 25 de Abril e logo tudo lhe foi perdoado). Martins Rodrigues juntava a esquizofrenia à paranóia, e era um assassino fanático: nem isso evitou que os editores destes designados trabalhos históricos lhe concedessem a palavra para o discurso auto-justificativo (se a intenção era evocar o "crime de Belas", compreende-se que só se ouça o assassino?).
Silly Season (2)
Silly Season (1)
Uma história exemplar
O ourives José Correia, ontem assaltado em Setúbal, em plena Baixa e ao meio-dia, acabou por morrer no Hospital de São José, em Lisboa. Quando a polícia chegou ao local do assalto, o ourives jazia inanimado no chão, sobre uma poça de sangue, com dois tiros na cabeça. Os dois assaltantes tinham-se retirado, a pé, pelas vizinhanças da Câmara Municipal e do Comando da PSP, ambos a poucas dezenas de metros. Foi chamado o INEM, e uma ambulância transportou o ferido ao Hospital de Setúbal. Quando ali chegou estava em coma e apresentava hemorragia abundante. Porém, devido à falta de serviço de neurocirurgia em Setúbal, foi transferido para Lisboa. Ainda foi internado na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de São José, mas faleceu antes de ser operado, sete horas depois de ter sido atingido.
quarta-feira, agosto 20, 2008
Casos isolados (2)
Graças a Deus que a criminalidade violenta está sempre a descer, como atesta o Governo e demonstram as estatísticas dele.
Casos isolados?
Transcrevo os pormenores da notícia para que não escape o fundamental: uma actuação profissional, organizada, envolvendo planeamento prévio e recolha de informação, utilizando meios expressivos, traduzidos quer no número de pessoas envolvidas quer na logística (veículos, explosivos, armamento), tudo reunido para uma acção criminosa de elevada perigosidade.
Não estamos perante uma realidade que se compadeça com o discurso oficial. Não é a pobreza, nem a exclusão social, nem os preconceitos sociais, que explicam esta criminalidade organizada. E isto não se combate com marchas da paz, subsídios de reintegração e assistentes sociais.
Ao ouvir as teorias em que abundam sociólogos, jornalistas e políticos, somos levados a pensar que eles acreditam que Al Capone teria pautado a sua vida pela mais estrita legalidade caso lhe tivesse sido assegurado, logo desde novinho, o Rendimento Mínimo Garantido. Não é provável que assim tivesse acontecido.
Aguardemos, porém, os pronunciamentos oficiais. Possivelmente vamos ouvir um dos ministros de serviço a dizer-nos novamente que se trata de meros casos isolados.
Todos os dias, já cansa.
terça-feira, agosto 19, 2008
LA CAUSE DU PEUPLE
«Comment émouvoir un peuple aussi désenchanté et blasé que le nôtre, sinon en le faisant périodiquement trembler devant des périls imaginaires?», écrivait Tocqueville dans L’Ancien Régime et la Révolution. Les périls imaginaires, aujourd’hui, sont ceux que la classe politico-médiatique sort de son chapeau pour détourner l’attention des véritables dangers et, subsidiairement, faire oublier ses propres turpitudes. La dénonciation du «populisme» — la «menace populiste», la «dérive populiste», la «tentation populiste» — en fait de toute évidence partie. Depuis le début des années quatre-vingt-dix, ce terme, autrefois peu usité, a fait une entrée en force dans le discours public. Il fonctionne désormais comme une injure politique tout en prétendant, contradictoirement, au statut de catégorie d’analyse.
En tant que style, le populisme est surtout le fait de partis attrape-tout, qui multiplient les promesses dans une perspective essentiellement démagogique. Leurs chefs, tribuns aux maxillaires serrés ou au sourire télégénique, exploitent détresses et rancoeurs, capitalisent les peurs, les misères et les angoisses sociales, en désignant fréquemment des boucs émissaires — sans jamais, bien entendu, mettre en cause la logique du capital. Leur posture la plus courante consiste à en appeler au peuple contre le système en place. Cet «appel au peuple» est évidemment équivoque, ne serait-ce que parce que la notion de «peuple» peut être comprise de bien des façons. Le populisme a aussi sa part de naïveté quand il se borne à encenser les «vertus innées» du peuple, la sûreté «spontanée» de ses jugements, qui rendrait inutiles tous les médiations. On a pu dire que les populistes ne font de la politique qu’à contre-coeur. Ils courent alors le risque de tomber, soit dans une attitude purement impolitique, soit dans un poujadisme ronchon.
Cependant, si critiquable qu’il puisse être, ce populisme a valeur de symptôme. Réaction «d’en bas» vers un «haut» où l’expérience du pouvoir se confond avec la jouissance des privilèges, il représente avant tout le refus d’une démocratie représentative qui ne représente plus rien. Protestation contre l’édifice vermoulu d’institutions surplombantes coupées du pays réel, révélateur des dysfonctionnements d’un système politique qui ne répond plus à l’attente des citoyens et se révèle incapable d’assurer la permanence du lien social, il témoigne d’un malaise grandissant au sein de la vie publique, d’un mépris pour la Nouvelle Classe qui ne cesse de s’étendre. Il est le révélateur d’une crise de la démocratie, récemment analysée par Gérard Mendel comme «une tendance de fond où s’additionnent la désacralisation de l’autorité, une perte de foi dans les idéologies globalistes, la convergence gestionnaire des grands partis, le sentiment diffus que les forces économiques sont les plus puissantes». Ce populisme-là surgit lorsque les citoyens se détournent des urnes au simple motif qu’ils n’en attendent plus rien.
Dans de telles conditions, la dénonciation du «populisme» vise trop souvent à désarmer la protestation sociale, tant au sein d’une droite avant tout soucieuse de ses intérêts que d’une gauche devenue massivement conservatrice et coupée du peuple. Elle permet alors à une Nouvelle Classe vénale et corrompue, dont le principal souci est la «délégitimation de tous ceux pour qui le peuple est une cause à défendre au profit de ceux pour qui le peuple est un problème à résoudre» (Annie Collovald) de regarder le peuple avec dédain. Que le «recours au peuple» puisse à lui seul être dénoncé comme une pathologie politique, voire une menace pour la démocratie, est à cet égard révélateur. C’est oublier qu’en démocratie, le peuple est l’unique dépositaire de la souveraineté. Surtout quand elle est confisquée.
Réduit à une simple posture, le populisme devient synonyme de démagogie, c’est-à-dire de mystification. Mais le populisme peut aussi exister comme forme politique à part entière, voire comme système d’idées organisé. Il a d’ailleurs ses grands ancêtres: Luddites et chartistes anglais, agrariens américains et populistes russes (narodnitchestvo), syndicalistes révolutionnaires et représentants du socialisme français de type associatif et mutuelliste, sans oublier quelques grands théoriciens, de Henry George à Bakhounine, de Nicolas Tchernychevski à Pierre Leroux, Benoît Malon, Sorel et Proudhon.
En tant que forme politique, le populisme s’exprime par un engagement envers les communautés locales plus qu’envers la «grande société». Ne se sentant solidaire ni de l’Etat ni du Marché, il récuse tout autant l’étatisme que l’individualisme libéral. Il aspire à la liberté comme à l’égalité, mais il est foncièrement anticapitaliste, car il voit bien que le règne de la marchandise liquide toutes les formes de vie commune auquel il est attaché. Aspirant à une politique conforme aux aspirations populaires, fondée sur cette morale populaire pour laquelle la Nouvelle Classe n’a que mépris, il cherche à créer de nouveaux lieux d’expression collective sur la base d’une politique de proximité. Il postule que la participation des citoyens à la vie publique est plus importante que le jeu des institutions. Enfin, il donne une importance centrale à la notion de subsidiarité. C’est pourquoi il s’oppose explicitement aux élites politico-médiatiques, managériales et bureaucratiques.
Anti-élitiste, le vrai populisme est donc incompatible avec tous les systèmes autoritaires auxquels on n’a que trop tendance à l’assimiler. Il est tout aussi incompatible avec les discours ronflants de leaders autoproclamés qui prétendent parler au nom du peuple, mais se gardent bien de lui donner la parole. Dès lors en effet que l’impulsion vient du haut, qu’elle est le fait d’un tribun démagogue qui fait fond sur la protestation sociale ou le mécontentement sans jamais laisser le peuple s’exprimer lui-même, on sort du populisme proprement dit.
Replacé dans sa perspective propre, le populisme a d’autant plus d’avenir que la politique institutionnelle en a de moins en moins. Dès à présent, il est le seul à pouvoir synthétiser l’axe justice sociale-sécurité qui tend à supplanter l’axe gauchedroite ou les conflits sociaux d’un type plus classique. C’est en cela qu’il offre une alternative par rapport à l’hégémonie néolibérale, fondée sur la seule politique représentative. En offrant de revigorer la politique locale grâce une conception responsable de la politique participative, il peut jouer un rôle libérateur. Il retrouverait ainsi son rôle d’origine: servir la cause du peuple.
Cinco anos depois
Podemos não ter visto satisfeitas todas as expectativas que em horas mais optimistas possamos ter alimentado, mas se compararmos e analisarmos a blogosfera de então com aquela que lhe sucedeu, há que reconhecer que a nossa presença trouxe uma diferença notória, e notada. Abriu-se o leque, alargou-se a oferta. Rompeu-se o huis-clos feito de cumplicidades reverentes. Grande parte do mérito cabe ao Pedro Guedes. Juntamente com o Bruno Santos, sem dúvida.
A sensação de missão cumprida seria completa se entretanto tivesse surgido a renovação, a substituição, que viesse coroar o trabalho realizado. Ainda não chegou esse momento? Paciência, quem semeia algum dia há-de colher. Continuemos.
A crise da blogosfera já foi apontada e denunciada há tempos no Odisseia. Como tentei dizer então, e repito agora, compete-nos inverter o diagnóstico. A nós, e a quem quiser acompanhar-nos. Se não for possível... fica tudo como dantes. Não se queixe depois do conformismo quem agora se conforma e acomoda.
Temos gente? O tempo o dirá. Com o Pedro, sei que se pode contar. O que estive a dizer é mais para os outros, os que não conheço e também passam por aqui. É preciso assumir responsabilidades, ao menos a de existir. Venham connosco.
E obrigado, Pedro.
Afirmação, repetição, contágio
A nossa época é caracterizada pelo domínio das multidões, mas estas são condicionadas pelas ideias que absorveram. Naturalmente, por sua natureza elas não podem absorver conceitos complexos ou raciocínios elaborados. Interiorizam ideias simples, fórmulas que com facilidade lhe dêem uma explicação para a realidade e lhe indiquem objectivos a prosseguir. Normalmente são meras vulgatas, versões simplificadas de filosofias que muito poucos leram. Os grandes pensadores são portanto determinantes na marcha da história, mas só a influenciam à distância.
Pode constatar-se que Gustave Le Bon, apesar de não ter lido António Gramsci, nem Alain de Benoist, já sabia que a cultura está primeiro: os mecanismos que numa sociedade condicionam a visão do mundo interiorizada pelos membros dela são realmente determinantes na marcha dos acontecimentos.
Em suma: no nosso tempo quem manda são as multidões, e estas actuam conforme as concepções que as impregnam. E inevitavelmente observa o autor, sociólogo e psicólogo, a questão fundamental que daí resulta: é preciso estudar o modo como se implantam no corpo social essas ideias, os conceitos comuns que vão transformar uma massa informe de indivíduos naquilo que ele chama uma multidão. Neste ponto tropeça-se numa conclusão óbvia: uma multidão tem condutores, seja aqueles que conscientemente a conduzem, pelo exemplo, pelo prestígio, ou por qualquer outra forma ou razão, seja aqueles que a condicionam, nomeadamente por terem nas suas mãos os mecanismos produtores do tal substracto ideológico que vai dar vida à multidão.
Recorde-se que para Le Bon só existe uma multidão quando uma aglomeração humana possui características próprias que a diferenciam de cada indivíduo que a compõem ("La personnalité consciente s'évanouit, les sentiments et les idées de toutes les unités sont orientés dans une même direction. Il se forme une âme collective, transitoire sans doute, mais présentant des caractères très nets. La collectivité devient alors ce que, faute d'une expression meilleure, j'appellerai une foule organisée, ou, si l'on préfère, une foule psychologique. Elle forme un seul être et se trouve soumise à la loi de l'unité mentale des foules.").
A importância dos condutores, e da produção intelectual com que se alimenta a multidão e se lhe vai criando a sua conformação mental, ressalta assim em toda a sua plenitude. Mesmo os tais filósofos que à distância acabam por ter papel decisivo na marcha dos acontecimentos só assumem relevância operacional através dessa intermediação. São os seus ecos, tornados acessíveis pela simplificação e pela generalização, aquilo que chega às massas.
E como se implantam então nos indivíduos as ideias comuns que os transformarão numa multidão efectiva e actuante, ainda que inconsciente (Gustave Le Bon sublinha que não é pela razão que se edificam as crenças que abalam o mundo)?
O autor explica os mecanismos, que sintetiza em três palavras: afirmação, repetição, contágio.
A afirmação fornece a resposta simples e elementar necessária a satisfazer as interrogações dos indivíduos. Evidentemente, tem que ser acessível a qualquer um, e ir de encontro às questões que se colocam à generalidade. Dispensa e substitui a demonstração. Ganha vantagem com a firmeza e a clareza com que for transmitida; a afirmação não permite margens para a dúvida, as hesitações, a tibieza. A sua credibilidade depende estreitamente da convicção com que chegar aos destinatários.
A repetição é o meio de garantir o triunfo da afirmação. Uma ideia repetida até chegar a todos e todos a sentirem como comum vence resistências, torna-se aceitável, generaliza-se, acaba por ser interiorizada como pacífica e incontroversa.
O contágio é o resultado prático da afirmação e da repetição, na sua marcha progressiva através das sociedades humanas. Traduz-se na transmissão sucessiva de indivíduo para indivíduo das ideias e concepções que se pretendeu implantar por meio de constante afirmação e repetição. Gustave Le Bon relaciona este "contágio" com a "sugestão", observando que a difusão frequentemente opera por essa forma (sugerindo, sugestionando), alargando-se a cada vez mais indivíduos.
Uma lição de política, esta "Psicologia das Multidões".
segunda-feira, agosto 18, 2008
Odisseia
Um abraço amigo, e... mãos à obra. Vamos a ver se a blogação já deu o que tinha a dar, ou se ao contrário ainda nos reserva as suas melhores surpresas.
Astrologia aplicada
Eu não sei, nem tenho modo de saber, se o grande amor de Camões se chamava Violante de Andrade ou Violante de Ataíde, nem mesmo se era Violante. Não tenho sequer a certeza se esse amor existiu, ou se é mera invenção do poeta. Esses amores nascem frequentemente das necessidades poéticas. Estou, todavia, aberto a todas as hipóteses que os entendidos queiram apresentar. (Enfim, confesso que não levaria a bem que algum historiador ou literato da moda venha dizer-me que afinal Camões era gay e só passou a vida a ficcionar paixões femininas para enganar a inquisição e a homofóbica sociedade do seu tempo - e temo que isso venha a acontecer). Leio, pois, com interesse o que Saraiva e Saa escrevem sobre esse assunto, e o mais que um e outro declaram ter desvendado na vida do nosso épico.
Consigno portanto aqui que os livros de Mário Saa e José Hermano Saraiva são a meu juízo duas obras muito curiosas, e deveras úteis quanto mais não seja para despertar a chama dos estudos camonianos. O autor do Ervedal tinha ideias muito próprias, e para além das "Memórias Astrológicas" ainda publicou um opúsculo intitulado "Camões no Maranhão", onde vai mais longe na exposição da sua singular biografia de Camões. Ainda que nos faltem os conhecimentos de astrologia para avaliar o rigor dos raciocínios e deduções apresentados, não custa observar que em sede de interpretação dos textos o entendimento seguido é pelo menos discutível ou duvidoso. Mário Saa era um poeta, dotado notoriamente de faculdades criativas que facilmente se podem impor e sobrepor à prosaica realidade.
Mas, que dizer da prodigiosa imaginação do Prof. Saraiva? O que me pareceu mais divertido da leitura desta sua "Vida Ignorada" é que o autor consegue levantar uma intriga histórica de alto lá com ela, uma conspiração anticamoniana com laivos de telenovela e condimentos que fazem lembrar o Código Da Vinci, ou o José Rodrigues dos Santos. É um bom romance, digo-vos eu. Quanto ao rigor, existe no mercado desde 1994 um livrinho onde Vítor Manuel Aguiar e Silva descasca as artificiosas construções de Saraiva. Nada, porém, que retire o sabor da leitura - é uma obra de ficção histórica a muitos títulos precursora do que actualmente está em voga, e incomparavelmente mais erudita.
De resto, penso que nestes temas históricos não se deve assumir uma postura crispada, a exigir tomadas de partido que nem questões de honra familiar. As discussões a propósito de Camões costumam entre nós levantar susceptibilidades inauditas; em 1948, quando foi da estreia do filme "Camões", de Leitão de Barros, com António Vilar no protagonista, levantou-se furibunda a pena temível de Alfredo Pimenta, clamando contra as inexactidões factuais do enredo. E o motivo de maior indignação estava precisamente nos amores de Camões, que aí têm por destinatária a Infanta D. Maria (mais de acordo com as exigências de um filme, convenhamos). O desgraçado Leitão de Barros ainda se refugiou atrás da autoridade de Afonso Lopes Vieira, que o tinha ajudado com o argumento, mas este também não foi poupado pelo estadulho de Pimenta. Outros tempos, outras guerras.
Cumprimentos
Bem precisados andamos de (boa) companhia!
Obrigado pela visita, e pelas amabilidades. Continuemos, então.
A mortalidade de Camilo aos nossos dias
O que me impressionou e me pôs nestas reflexões foi a observação das causas de morte na obra de Camilo. Julgo que a tal respeito não existe nenhum estudo, nem tese universitária, mas podemos perfeitamente fazer uma digressão pela ficção camiliana e recolher dados sobre a questão. A análise, mesmo perfunctória, aponta para a predominância nessa mortandade de causas que hoje se nos afiguram insólitas. Obsoletas. Se assim era no tempo dele, ou alguma vez foi noutro tempo qualquer, temos que reconhecer que essas causas de mortalidade estão de todo ultrapassadas.
Em Camilo as pessoas morrem de amor, de desgosto, de remorso, de vergonha - quase todas de paixões, tão fortes que deitam abaixo a mais forte constituição. As chamadas causas naturais quase não existem, e quando aparecem estão notoriamente subordinadas - se o desarranjo físico sobreveio, e a doença matou, não foi senão porque o mal do espírito o originou. Lá pelo meio, e como é sabido, também aparecem uns mortos de morte matada, a tiro ou de arma branca, mas também aí se pode ver o mesmo: são as paixões que estão na raiz.
O fenómeno, esta observação empírica, deve provocar forte perplexidade, senão mesmo embaraço ou atrapalhação, nos técnicos do Instituto Nacional de Estatística (não sei se ainda se chama assim, mas todos sabem o que é). O que ressalta aos olhos do eventual especialista leitor de Camilo podemos nós ver ao primeiro olhar, e não somos cientistas. Quem é que morre hoje disso, digam-me lá? Conhecem alguém que tenha morrido de amores, ou de remorsos, ou de vergonha, ou de desgosto? Não creio. Agora as paixões, se existem (pode suspeitar-se que já não haja amor, nem ódio, nem vergonha, nem remorso, nem desgosto além do banal) estão moderadas, pacíficas, racionais e civilizadas. Não são causa de morte. Nem constam dos mapas das estatísticas, entre as causas de morte. Obviamente que não estão incluídas no elenco das causas possíveis.
Largo campo de meditação para os sociólogos, que sabem explicar tudo. A vida mudou muito, e a morte ainda mais.
domingo, agosto 17, 2008
Le Feu Follet (1963)
Uma novela de Drieu La Rochelle, num filme de Louis Malle. Maurice Ronet ao som de Erik Satie. Uma jovem Jeanne Moreau.
A depressão anda no ar.
Curiosamente, Pierre Drieu La Rochelle é um autor frequentado pelos cineastas: além deste filme de Louis Malle, de 1963, conheço um outro: Une femme à sa fenêtre, de 1976, dirigido por Pierre Granier-Deferre, em que foram protagonistas Romy Schneider e Philippe Noiret. Em português chamou-se "Uma mulher à janela".
sexta-feira, agosto 15, 2008
Um centenário: "O homem que era quinta-feira"
Faz este ano cem anos: foi publicada em 1908.
Estive a relê-la outro dia, e a sua frescura, a ironia, a capacidade de surpreender, a seriedade com que Chesterton nos conduz e nos quer levar a pensar enquanto nos diverte surgiram-me como se fosse a primeira vez.
Uma obra inigualável, em que o mestre do paradoxo atingiu o ponto mais elevado da sua criação. Umna incursão fantástica, em que somos forçados a encarar de frente o mais sério sem perder a leveza do sorriso.
Um livro assim só se escreve de cem em cem anos, e Deo Gratias.
Cheleiros
Mas o local guarda, ainda hoje, mais poder evocativo e sugestivo do que o romance. Atravessa-se a aldeia marchando por estrada e ponte novas, que suavizam as inclinações naturais, e observa-se do lado direito a silhueta frágil da velha ponte por onde tudo antes tinha que ultrapassar o riozinho, que ali, por pitoresco acidente geográfico, se erguia como obstáculo intransponível. Sente-se um primeiro sobressalto, ao iniciar a subida, a imaginar o esforço titânico de homens e animais para conseguir levar por ali acima os blocos que iriam dar forma ao Convento. Quantos milhares de toneladas, quantos blocos gigantescos, e a ladeira infindável, a exigir o máximo dos tantos cavalos que puxam agora as nossas máquinas automóveis... A subir, ao calor abrasador do Verão, vem-me à ideia a imagem do Inverno. Como seria, com a chuva e o lamaçal, a tarefa das inumeráveis juntas de bois ao serviço de Sua Majestade que tinham que vencer a encosta, empinada e sem fim?
Que epopeia, amigos, que cena épica, que filme!
quinta-feira, agosto 14, 2008
Batalha da Roliça 1808-2008
Integrado nas comemorações do bicentenário, terá lugar no dia 16 de Agosto, pela manhã, na Serra do Picoto (aldeia e Freguesia da Roliça, Concelho do Bombarral), uma recriação histórica da Batalha ali travada.
Este evento irá contar com a participação de mais de 400 figurantes, numa organização da Associação Napoleónica de Portugal.
Historicamente falando, este confronto precedeu a Batalha do Vimeiro que obrigou ao recuo das forças invasoras do nosso país, decorria o ano de 1808.
Quem estiver pela zona do Oeste, já sabe: não é todos os dias que se pode ver ao vivo um evento das guerras napoleónicas.
Para mais informações sobre o programa, veja-se em Batalha da Roliça 1808-2008.
Las ideas tienen consecuencias
Pode também ler-se um excerto em Libertad Digital: Psicología del niño malcriado
Novos empregos
Já esta manhã um homem assaltou a dependência do Banco Popular na Avenida Visconde Valmor, em Lisboa, ameaçando os funcionários bancários com uma pistola.
Pode dizer-se que é uma área de actividade que já emprega muita gente e se apresenta em crescente dinamismo e expansão.
14 de Agosto
Há que tempos isso foi!
Hoje julgo que já nada seja assim. O trânsito está canalizado por faraónicas autoestradas, que cortam as colinas e os vales em direcção às praias. Cessaram as epopeicas travessias da feira da Malveira, ou das cerimónias mafrenses. Agora os lisboetas podem ir tomar a bica à Ericeira, que fica só a meia-hora. Desgraçada dela.
Provavelmente, também deixou de haver comemorações. Por um lado as verbas são escassas, não há dinheiro para foguetes, e por outro lado a lembrança de Aljubarrota não deixa de ser embaraçosa - um lembrete de outras eras, primitivas e xenófobas, em nada consentâneas com estes tempos de fraternidade e progresso onde deliciosamente navegamos.
Epistolografia
Como ainda não tenho o volume, nada posso dizer sobre o trabalho de Manuel Braga da Cruz ou sobre o conteúdo da correspondência agora dada a público. Fica feita a declaração de interesse.
Comentários
Vamos a ver se será possível manter a situação, e por quanto tempo. Como é óbvio, se voltar a instalar-se o ambiente que me levou a fechar essa opção voltarei a tomar a mesma atitude. Isto aqui não é nenhuma democracia.
Seja bem vindo quem vier por bem.
Jünger e Léon Bloy
(Curiosa a galeria dos "sismógrafos" citados por Jünger: Poe, Melville, Hölderlin, Tocqueville, Dostoïevski, Burckhardt, Nietzsche, Rimbaud, Conrad et Kierkegaard, além de Bloy).
Contos
De modos que ao falar de contos falo daquilo que os respectivos autores crismaram assim, para evitar incómodos. Nos dias mais recentes ocupei-me de contos, para compensar o resto do ano. Li-os de Pirandello, de Papini, de Tomaz de Figueiredo, de Joaquim Paço d'Arcos, de Domingos Monteiro, de João de Araújo Correia, de José Rodrigues Miguéis, até uma breve "antologia do conto ultramarino" em tempos reunida por Amândio César e que junta contributos variados. Um conto tem a vantagem da sua compatibilidade com a vida moderna, pode ler-se no metro, no autocarro, no café, na praia, na casa de banho, e não faz doer a cabeça, nem mesmo uma daquelas só habituada a literatura de supermercado.
quarta-feira, agosto 13, 2008
Webnotas
Com prefácio de João Seabra Botelho, a obra reúne diversos textos publicados pelo autor, entre 1999 e 2003, em diversos órgãos de comunicação social, entre os quais o Diário de Notícias e o Semanário.
Encontra-se disponível para todos os interessados, na Leonardo - revista de filosofia portuguesa.
Geórgia
Os acontecimentos do Cáucaso assemelham-se cada vez mais a uma demonstração do poder imperial. A Rússia quer lembrar ao mundo que é preciso contar com ela, nestes tempos em que uns monopolizavam as suas atenções no império global e outros na China emergente.
Perante esta realidade, do grande urso arrumando o seu quintal, tornou-se risível e patético o discurso americano apelando ao respeito dos princípios: a soberania dos Estados, a integridade das fronteiras... Nisto vem ao de cima a pequenez dos homens que estão colocados à frente dos destinos do Ocidente. Vogando ao sabor dos oportunismos e das oportunidades, sem princípios nem ideias, vêem-se na contingência de constantemente dizer hoje o que negaram ontem, para voltar a proclamar amanhã o que negam hoje.
Soberania, inviolabilidade das fronteiras internacionalmente reconhecidas, respeito pela integridade territorial dos Estados... Como tudo isto terá soado trágico e irónico em tantos cantos do planeta (não só na Sérvia ou no Iraque!). As grandes potências também caem assim: quando deixam de respeitar-se e tornam impossível aos outros respeitá-las.
Insólito é também o espectáculo daqueles que ainda recentemente gritavam horrorizados contra a mutilação da Sérvia e agora aplaudem compreensivos a "libertação" da Ossétia do Sul das garras dos temíveis georgianos... pelos valentes e generosos soldados moscovitas!
Também para estes o respeito pelas soberanias e pelas fronteiras, ou o princípio da integridade territorial, não são mais do que bandeiras de conveniência, que se agitam ou se escondem conforme o momento.
Estes acontecimentos, do meu ponto de vista, ferem de morte, definitivamente, a credibilidade do "eurasismo", cuja presença já tinha aqui assinalado em certos meios políticos europeus. Como ressalta das posições de Alexandre Douguine, trata-se apenas de estratégia imperial russa. E os seus seguidores na pequena península europeia são tão só colaboradores dessa estratégia imperial. Usam a hostilidade a um amo apenas para trocar de amo.
O que está a passar-se explica-se à luz da geopolítica, e não vale a pena esconder ou escamotear essa realidade.
Desgraçados estão os georgianos, como estão os tchetchenos (vítimas de um evidente genocídio que ninguém nega mas a que ninguém está em condições de acudir), como estão os restantes povos da área de segurança definida pelos responsáveis da Grande Rússia.
Com o seu saber de experiência feito, os lideres da Polónia, da Ucrânia, da Letónia, da Lituânia e da Estónia tiveram o único gesto gesto grande e digno desta triste história, ao deslocarem-se à Geórgia para manifestar ao vivo a sua solidariedade. Eles sabem do que se trata. E sem muitas palavras tentaram explicar tudo.
Panait Istrati
E todavia é um caso literário que merecia mais e melhor atenção (lembro-me de Amândio César, com a tremenda generosidade que o fazia agitar-se a cada injustiça com que via manchado o universo literário, ter clamado pelo imperativo de colmatar a falta, sozinho como tantas vezes). A verdade é que a correcta situação e valoração da obra do escritor romeno permanece por fazer (pode apontar-se Vintila Horia como a excepção, mas este tem a explicação óbvia da origem comum, e de outras afinidades de que o exílio não será a menor).
Note-se porém que outros grandes exilados romenos vieram a alcançar melhor sorte, como Ionesco, ou Eliade, ou mesmo Cioran - apesar de todas as resistências.
Para além das obras que citei inicialmente, traduzidas e publicadas em português de Portugal, conheço apenas "Os cardos do Baragan". É uma narrativa poderosa, intensa e dramática, onde se sente pulsar o coração do autor ("solidão e solidariedade". O homem e a terra romenas, na miséria e na tragédia. Não fosse a conturbada trajectória política do homem e os historiadores da literatura empanturrados de neo-realismo certamente o colocariam entre os grandes romances do século XX.
Nariz-de-sola
O autor tinha-lhe chamado cruamente "Nez de Cuir - Gentilhomme d´Amour", e creio que este nome corresponde muito melhor à obra que quis oferecer a público. Os editores de cá podiam vantajosamente ter optado por "Nariz-de-sola", em vez da bizarra escolha do "monstro fascinante".
Juntamente com "O Centauro de Deus" é uma das narrativas de Jean de la Varende que me ocupou nestes dias de lazer.
Como curiosidade, vejo que a obra deu origem a um filme: apareceu em 1952, do realizador Yves Allégret, e chamou-se precisamente Nez-de-Cuir. Contou com Jean Marais, no protagonista, e Françoise Christophe. Disto só poderão eventualmente falar Miguel Freitas da Costa ou Eurico de Barros, que são os donos das mais prodigiosas memórias cinematográficas da blogosfera.
Quanto ao livro: uma Normandia que já não é, já não era quando o autor ficcionava, e não sabemos se alguma vez foi. Aristocrático e telúrico, como La Varende. Um livro sobre a terra, sobre as gentes, sobre os tempos - em visão de pintor.
terça-feira, agosto 12, 2008
Marxismo e asma
Já lhes falei do meu amigo marxista. Sempre o encontro com a bombinha da asma. Ele próprio declara, com tenebroso humor, que se não fosse a bombinha estaria morto e enterrado desde a Primeira Batalha do Marne. Dizem seus amigos que seu marxismo e todo o seu horror à ordem capitalista são de fundo asmático.
Anteontem procurou-me, irritadíssimo. Chama-me para um canto: – “Preciso falar contigo.” Arquejava, e teve que usar a bomba. Fez tanto “suspense” que pergunto, interessado: – “Mas o que é que há?” Olhou para os lados e então, ainda ofegante, disse: – “Aquele teu artigo está de um reacionarismo!” – pausa, e repetiu, de olho rútilo e lábio trêmulo: – “De um reacionarismo, rapaz!”
Até hoje não sei se a sua irritação era mesmo irritação ou deslumbramento. Ainda perguntei: – “Meu artigo?” Ah, sou um autor sujeito a lapsos fatais. Quantas vezes me esqueço do que escrevi há meia hora? Foi ele quem me alumiou a memória: – “O artigo da fome!” Era verdade. Eu escrevera recentemente artigo sobre a fome de 1917, 18 e 19.
É de caso pensado que ponho as datas. E, com efeito, a fome muda o seu comportamento de época para época. Nos anos citados ela não tinha o apelo, o patético, a promoção dos nossos dias. Bem me lembro dos meus seis, sete anos. De vez em quando vinha gente bater na nossa porta: – “Um pedaço de pão! Um pedaço de pão!” Eis a palavra e a imagem: – pão. Há uns quarenta anos não vejo ninguém pedir pão a ninguém.
Outro dia ocorreu um episódio que me parece singularmente ilustrativo. Uma santa senhora deu pão a um mendigo. O sujeito apanhou o pão e o olhou, esbugalhado, como se não entendesse a esmola. E súbito deu-lhe uma ira, um ódio. Agrediu a senhora, deu-lhe uma surra de pão. A vítima pôs a boca no mundo. Com um rapa fulminante o mendigo a derrubou: e, por cima da senhora, queria enfiar-lhe o pão pela goela abaixo.
Assim se comporta a fome da nossa época. Vive do ódio. Outrora, não. Na Confissão que provocou o divertido horror do marxista asmático eu escrevia, justamente, sobre os famintos da minha infância. Ah, naquele tempo tínhamos por aqui uma fome sem raiva, sem agressividade, dócil, mansa e como que consentida.
Um dia houve um enterro em Aldeia Campista. Salvo engano, o morto era “Seu” Ferreira, português rico, dono de um armazém. Quatro cavalos de crepe e penacho puxavam o carro fúnebre. Na hora certa o enterro vai partir. E então acontece o seguinte: o cocheiro desmaia, simplesmente desmaia (caiu-lhe a cartola).
Corre-corre no portão. Dois ou três agarram o homem; dão-lhe tapinhas na cara. Finalmente, abre os olhos; arquejante, geme: – “Quero comer, quero comer.” E fazia o apelo por entre lágrimas. Foi carregado para o interior da casa enlutada. Lá dentro alguém improvisa um prato fundo de feijão com arroz. O cocheiro começa a comer. Súbito pára e, de boca cheia, pergunta: – “Tem uma pimentinha?”
Aquele homem não comia há dois dias. E não faltou à funerária. Lá estava, de cartola, fazendo o enterro de luxo. E, não fosse derrubado pela inanição, chegaria ao cemitério. Eis o que eu queria dizer: era uma fome sem Ministério do Trabalho, sem greve, sem reivindicações salariais. Ainda garoto, tivemos uma cozinheira que tinha um filho por ano, matematicamente. Chamava-se Hortência. Era uma fecundidade radiante. Dizia, na cozinha, esplêndida de vaidade: – “Tenho os meus filhos em pé.”
E assim chegou aos nove, dez, onze filhos. A fome levou nove. Exatamente nove filhos. Os mais resistentes morriam aos cinco, seis anos. Pois a mãe os enterrava sem pena, nem ressentimentos. Ter os filhos e perdê-los era a sua rotina. Ela própria não odiava a fome, e repito: não havia desespero, nem tristeza, na sua fome.
Muitos anos depois, vou a Caxias e a encontro lá. Já se tinham incorporado à vida brasileira os direitos trabalhistas. Falava-se, na época, que o novo salário-mínimo seria de seis mil cruzeiros antigos. A minha ex-cozinheira, já alquebrada, já avó, ralhava com o genro: – “Sei contos é demais. Onde já se viu? Seis contos é abuso.”
Claro que o marxista queria que eu apresentasse uma cozinheira retórica como “La Passionaria”. E, como não a descrevi derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas, o leninista me chamava de reacionário. Curioso é que ele escreve bem. Se deixasse de fazer concessões às esquerdas, seria capaz de obra-prima. Também a asma o prejudica literariamente.
O Brasil de minha infância não tinha assalto por isso mesmo: porque a fome não assaltava e digo mais, a fome ainda não assaltava. O assaltante não quer comer. Mata e fere para ter o supérfluo. Dirá alguém que estou falsificando a verdade. Mas insisto em que só a fome literária do Zola arromba padarias, e só ela pendura o padeiro num pedaço de pau.
Hoje há uma fúria. Quantos vivem da fome? Por exemplo: D. Hélder. Sempre teve gênio promocional e nunca foi um obscuro. Mas faltava ao D. Hélder anterior o dramatismo, a potência, a fama do D. Hélder da fome. A fome tem-no feito. Podíamos apresentar a fome como a autora de D. Hélder. Ele precisava ter, por fundo, a mortalidade infantil. Mas coisa curiosa! Os grandes indignados da fome não são as suas vítimas, mas os que não a têm. Sim, são os bem alimentados que vociferam e dão patadas.
Ainda ontem, uma grã-fina batia o telefone para mim. Reclamava de uma Confissão que tratava, justamente, da fome da Índia. E a excelente senhora agrediu-me como se eu fosse o culpado, da fome do Nordeste, da Índia, Paquistão, Biafra, e de todos as misérias passadas, presentes, e futuras.
Perguntou-me: – “Você acha que a Índia gosta de passar fome? Acha que a Índia gosta de ver as cinzas do próprio cadáver no rio? Sua literatura sobre a fome é desumana.” Eu poderia responder-lhe: – “Meu anjo, por que é que você não asfalta uma favela com seu colar de quinhentos milhões antigos?” Mas sou um tímido e um delicado. E conversei longamente no telefone.
Disse-lhe eu o óbvio total: – a fome é o mais antigo hábito dos hábitos humanos. Ora, um hábito não dói, não faz sofrer. Por exemplo: a Índia. Há seis mil anos que o cadáver é atirado no rio. E o cadáver já não se espanta mais. Lá, milhões de sujeitos não moram. E bebem, a mãos ambas, a água da sarjeta. Do outro lado da linha, a grã-fina esperneava: – “Isso é blague. Não brinque com coisas sérias.” Por fim, como ela tomava a verdade por piada, disse-lhe: – “As vítimas da fome sofrem menos. Quem se descabela, e soluça, e quer chupar a carótida das classes dominantes, são a senhora, D. Hélder e o Dr. Alceu.” Ao ouvir falar no Tristão, pulou: – “Você quer negar a bondade do Alceu?” Com a humildade de um torpe que fala de um santo, desejei que o Mestre tivesse milhares de boas ações, inclusive do Banco do Brasil, da Vale do Rio Doce, Petrobrás e outras. A grã-fina perdeu a paciência. Bateu o telefone.
“Ideas Have Consequences”
Aqui: manuel.azinhal@gmail.com
segunda-feira, agosto 11, 2008
Gustave Le Bon
Espero vir a falar dela, em melhor oportunidade.
Entretanto, pode ler-se com proveito esta recensão ao livro "Les idées politiques de Gustave Le Bon", de Catherine Rouvier (PUF, 1986).
Não se esqueça porém que em Le Bon, tal como se observaria a propósito de Michels ou Pareto, não são as ideias políticas a parte relevante da sua herança.
Solzhenitsyn
Foi um autor que encontrei ainda adolescente, através da leitura de "Um dia na vida de Ivan Denisovich", e foi uma descoberta importante. Vieram depois muitas outras obras, passou muito tempo, mas para mim Solzhenitsyn nunca deixaria de ser sobretudo o autor de "Um dia na vida de Ivan Denisovich".
Creio que já terá sido dito tudo o que havia a dizer sobre a relevância do escritor e da sua obra, pelo que não me alongarei por aí. Queria só dizer aqui que gostava do homem (um blogue no fundo nunca deixa de ser um lugar para falar de nós) e acrescentar que julgo compreender o desgosto e a desilusão que sentiu com as nossas sociedades ocidentais.
Tinha vindo de um mundo onde nada se podia dizer, e, concluiu ele, veio parar a um mundo onde tudo se pode dizer mas isso não serve para nada. O vazio, a inconsequência, a imensa waste land em que nos tornámos, gelaram-no tanto como o Goulag. Ficou para sempre a clamar contra os hollow men que povoaram a terra - sem que ninguém o ouvisse.
Benditos toscanos
Que leveza, que graça, e que profundidade, naquelas pinceladas coloridas com que Prezzolini nos fala do florentino mais famoso e o faz surgir no filme aventuroso do seu tempo!!!
Lembro-me sempre das páginas iniciais de "Malditos Toscanos", e vejo viva na prosa de Prezzolini a razão do seu companheiro de tantas jornadas.
Toscanos, Maquiavel e Guicciardini, Medicis e Papini - todos menos Giuseppe Prezzolini, que era da vizinha Úmbria. Será porque o espírito sopra onde quer - a mim me parece que o estilo sugestivo e vigoroso do nativo de Perugia tem nele todo o encanto e a sabedoria de Florença.
O fascínio da leitura não sei se é pelo biografado, ali pintado a fresco, ou pelo biógrafo, que ali o pinta com mão de artista.
Gostava que lessem também, e me falassem disso tudo.
O Presidente Negro
Em 1926, publicou, depois de o haver escrito especialmente para o público americano, um romance de antecipação futurista - "O Presidente Negro ou O Choque das Raças: romance americano do ano 2228".
O enredo toma como ponto de partida a corrida eleitoral para a presidência dos Estados Unidos no ano de 2228, quando as divisões dentro do eleitorado branco, protagonizadas por um candidato branco conservador e uma candidata feminista, conduzem à vitória insólita do candidato negro, Jim Roy, e à sua transformação no 88º presidente americano.
Depois, bem... Depois, segue-se o resto.
Com traços de ficção científica e exercícios de futurologia, de mistura com muita especulação racialista (brancos e negros engalfinham-se na América, os amarelos dominam a Europa...) o romance nunca logrou ultrapassar o embaraço dos temas. Escaldantes eram, já então, mas em vez da esperada glória, e dos êxitos de vendas, o que isso trouxe foi antes as inibições e os interditos.
Setenta e tal anos depois, suspeita-se que chegou a hora de Monteiro Lobato. Quanto mais não seja, o candidato Obama pode ao menos garantir um bom punhado de dólares aos novos editores de "O Presidente Negro".
terça-feira, agosto 05, 2008
Prova de vida
Todavia, se tudo correr como previsto, o programa retomará a cadência habitual dentro de alguns dias.
Entretanto, neste intervalo, como lembraram alguns dedicados amigos da casa, este espaço completou o seu quinto aniversário. "O Sexo dos Anjos" entrou no sexto ano de publicação. Situa-se já, inegavelmente, entre os veteranos da nossa blogosfera.
Quanto a cumprimentos de aniversário, agradeço especialmente a Bruno Santos, do Nova Frente, a Pedro Guedes, do Último Reduto, a Atrida, do Odisseia, a André Azevedo Alves, de O Insurgente, ao Nonas... do Nonas, e a Henrique Sousa, do Hora Absurda.
E agora, se me dão licença, despeço-me novamente. Até breve.