O vale do Douro, para além de bons vinhos, também produz com frequência grandes escritores.
Mesmo agora, temos aí vivos, activos e pujantes, António Barreto e Francisco José Viegas, que bem podem apresentar-se como frutos do Douro.
Mas quem suba o rio pode evocar Teixeira de Pascoaes, Amândio César, João de Araújo Correia, Miguel Torga ... sei lá eu!
Mesmo lá nos confins do Alto Douro ainda pode recordar-se Guerra Junqueiro, Campos Monteiro, Trindade Coelho, já que o Freixo, Moncorvo ou Mogadouro são também paisagens dominadas pela presença esmagadora do grande rio.
Ora vem esta conversa por em 6 de Novembro de 1903 ter nascido em Barqueiros um extraordinário cultor da portuguesa língua, o contista, novelista, romancista, dramaturgo e poeta Domingos Monteiro (curiosamente também exemplo do hospital de letras que a Medicina portuguesa tanta vez parece: era médico, tal como Torga, Namora, Lobo Antunes, Júlio Dinis, Taborda de Vasconcelos, e tantos outros).
Estamos portanto em pleno centenário do autor de “O Mal e o Bem”, “Contos do Dia e da Noite”, “A Traição Inverosímil”, “ O Caminho para Lá”, “ Histórias Castelhanas”, “Histórias deste Mundo e do Outro”, “Enfermaria, Prisão e Casa Mortuária”, “O Primeiro Crime de Simão Bolandas”, “O Sobreiro dos Enforcados”, e um larguíssimo
et caetera.
Ao que parece a Câmara Municipal de Mesão Frio não esqueceu o acontecimento. O meu amigo António Cândido Franco também não. Mas, quiçá pelo meu isolamento, não me tenho dado conta de outros sinais.
Fosse o homem um ignoto húngaro, neo-zelandês ou boer, a escrever em inglês de vulgata, e a nossa
estupidentzia até salivava como o cachorro de Pavlov, ao sentir o centenário.
Língua portuguesa
Minha adorada língua portuguesa,
Tão rica em si mesma e tão fecunda,
Pão sem fermento com que como à mesa
E alegria vital que ainda me inunda,
Desde o bárbaro latim, que vou seguindo
Teu caminho de som, abrindo às almas
Uma nova harmonia singular,
Tão doce e pura ao mesmo tempo que eu
Por ti desço ao inferno e subo ao céu
Pela graça de ouvir e de falar.
Sigo-te, sim, mesmo através da História,
A que só tu pudeste dar sentido,
Porque só tu conservas a memória
Do que já foi e ainda há-de ser vivido.
Tu que abriste em flor nos cancioneiros
Nas queixas doces dos cantares de amigo,
Inventaste essa porta enfeitiçada
Que separa ou une os corações
E que deste os teus frutos verdadeiros
Com Gil Vicente e os versos de Camões,
Língua de blasfémias, de ameaças,
De musicais hipérboles sentidas,
Que rasto singular por onde passas
E que estranho sinal deixas nas vidas!
Tu que atravessaste os desertos
E os mares bravios nunca navegados,
Com palavras que são braços abertos
E que nas bocas rudes e agressivas,
Feitas para gritar e p'ra morder,
Puseste o enxame das palavras vivas
Com que te falam e amam sem saber.
Domingos Monteiro