De novo as prisões revolucionárias
Retomando o fio do assunto levantado pelos blogueiros de "O Acidental" resolvi escrever mais um breve apontamento sobre o tema.
Como todos os leitores terão notado, a reacção geral quando se fala em perseguições puramente políticas, prisões ilegais generalizadas, até em torturas, no apogeu da gloriosa revolução, é de incredulidade e descrença.
Outra reacção muito vulgar é a dos que acreditam nuns excessos, mas logo os desvalorizam porque se terá tratado de algo muito localizado e que afectou um punhado de pessoas - uns incidentes isolados e lamentáveis (como os do Iraque...). E ainda por cima os lesados foram uns tantos reaccionários, ligados ao antigo regime ou a conspirações várias, para além dos tenebrosos pides...
Em todo o caso o que nunca será de admitir é que se tratou de uma autêntica vaga de fundo, que exprimia a natureza do processo em marcha, e que pelas dimensões que atingiu demonstra ao que se teria chegado se não tivesse havido a reacção vital que pôs fim à marcha da revolução. Nunca por nunca se pode admitir que se tratou da expressão viva da implantação, que estava em curso, de um regime paranóico e obsessivo, histérico e frenético a procurar inimigos por todos os lados, e em crescendo de fanatismo e de repressão cada vez mais acentuada - um regime onde chegou a colocar-se em marcha o sistema cubano dos CDRs (comités de defesa da revolução), pretendendo instituir a delação como regra imperativa, a par das várias polícias políticas embrionárias (era o COPCON, era a 5ª Divisão, eram não sei quantos serviços de informações militares e civis paralelos, todos já com o poder prático de prender discricionariamente).
A verdade dos factos não corresponde a essa versão açucarada. Para se compreender o que estou a dizer, a forma já generalizada e indiscriminada com que se exercia a repressão contra todos os suspeitos de dissidência em relação ao rumo dos acontecimentos, quero lembrar aqui o caso do grupo de extrema-esquerda MRPP, hoje só falado por causa do nosso actual primeiro-ministro.
A razão por que falo desse agrupamento é outra: com efeito, para quem conhece a história da implantação dos regimes comunistas nos países onde vigoraram, é particularmente significativo o momento em que as depurações conduzidas pelo aparelho repressivo instalado deixam de se dirigir apenas contra os inimigos tradicionais (a burguesia, a reacção, o fascismo, os monopolistas e latifundiários, e outras entidades do bestiário da revolução) para se virar também contra a concorrência à esquerda (os aliados objectivos da burguesia, os esquerdistas, a falsa esquerda, os desviacionistas, os revisionistas, os traidores, e quejandas entidades também invocadas nos processos revolucionários).
Ora no nosso caso torna-se particularmente significativo recordar o caso do MRPP. Como se recordarão alguns, desde muito cedo o referido grupo conquistou a antipatia dos donos da revolução, civis e militares, devido à agitação a que se dedicava - e concretamente a sua linha "anti-cunhalista", ou "anti-socialfascista", como se dizia, que praticamente equiparava o "partidão" ao regime derrubado. Por causa disso houve logo prisões, ainda selectivas, como foi o caso dos chefes, tanto Saldanha Sanches como Arnaldo Matos e outros. E houve também perseguições políticas, traduzidas por exemplo no encerramento e proibição do "Luta Popular" e na proibição de concorrer às eleições em 1975 - sem chegar ainda à ilegalização total. Mas a um dado momento, alegando-se não me lembro bem que pretexto, dá-se o assalto geral contra as sedes e as estruturas do MRPP.
A vaga de prisões deu-se sobretudo a 28 de Maio de 1975. Pois sabem os senhores quantos militantes e simpatizantes do MRPP foram arrebanhados e levados para as cadeias - numa mega operação militar-policial de desmantelamento político, contra pessoas a quem indubitavelmente só podia atribuir-se como delito a sua opção política de momento?
Saibam que foram 432 (quatrocentos e trinta e dois). Apenas do citado grupelho de extrema-esquerda, e num período de tempo curtíssimo. O que pensam os leitores da contabilidade a que se chegaria se fosse feita a conta a todos os outros?
Ainda parece que os tais acontecimentos foram apenas uns poucos actos esporádicos, dirigidos contra quatro ou cinco patifórios vindos do antigo regime, e compreensíveis dado o momento de exaltação popular que se vivia?