Tenho lido de várias origens opiniões convergentes sobre a necessidade e a conveniência de "legalizar a prostituição".
Como acontece frequentemente com as soluções que se apresentam para problemas complexos, também esta proposta enferma de simplismo e equívocos vários, que a meu ver a tornam irrelevante no debate em que pretende situar-se.
Antes do mais, o que se pretende dizer com "legalizar a prostituição"?
A pergunta é pertinente, porque ao contrário do que parece ser convicção generalizada a prostituição em Portugal nada tem de ilegal.
Existe no Código Penal a incriminação do lenocínio, configurado como um crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual. É punível por isso a actividade de quem se dedique a explorar as prostitutas, abusando destas, mas não as prostitutas nem a prostituição.
Se a ideia de quem fala em "legalizar a prostituição" consiste apenas em abolir essa incriminação, então o que desaparecia é a perseguição criminal dos chulos, não das prostitutas, que não existe.
Na verdade, a prostituição foi encarada pelo legislador como um comportamento perfeitamente lícito, se livremente assumido (invocando expressamente a orientação de demarcar o Direito Penal de qualquer conotação moralista).
Por conseguinte, não deve ser esse o cerne das posições em apreço. Confirma-se que não, ao observar que as principais preocupações a que procuram dar resposta os que falam na tal "legalização da prostituição" correspondem a finalidades de ordem sanitária (a saúde pública) ou de ordem fiscal (os impostos).
Mas sinceramente, não compreendo o que propõem que seja feito no plano legislativo. Tornar obrigatório que aquele ou aquela que queira exercer a prostituição esteja inscrito como tal e se sujeite aos cuidados médicos adequados a prevenir os riscos que tais actividades normalmente implicam?
Essas imposições legais correspondem a uma versão actualizada do regime que já vigorou em Portugal em outros tempos, quando as prostitutas estavam sujeitas a matrícula no Governo Civil e a vistoria periódica.
Porém, e como me parece claro, em primeiro lugar a legislação nesse sentido é que implicaria, diferentemente do direito actual, uma ilegalização da prostituição (só seriam lícitas as actividades de quem tivesse carteirinha profissional e cumprisse as normas, sendo por consequência ilegais todas as actividades nesse ramo de clandestinos e biscateiros, que nem os mais ingénuos podem afirmar que deixariam de existir).
Deste modo, e paradoxalmente, criava-se uma situação em que as polícias teriam que andar atrás de quem livremente praticasse prostituição sem obedecer à regulamentação obrigatória, passando autos, multas e participações - situação oposta à actual, e de resultados muito duvidosos.
E, acrescento, afigura-se que uma situação dessas seria muito pouco compatível com o enquadramento jurídico contemporâneo. Aliás, mesmo em outros tempos, em que sempre seria possível deter quem fosse encontrado em actividades sexuais (por conduta imoral ou outra qualificação qualquer) e conduzi-lo/a à esquadra para averiguar da regularidade da sua situação profissional, não me parece que essa regulamentação tivesse produzido grandes resultados no controlo efectivo dessas actividades.
A concluir: desconfio que na prática essa política iria conduzir a que apenas cumprisse realmente os cuidados sanitários definidos como obrigatórios quem agora voluntariamente já o faz. Tanto na vertente da oferta como na vertente da procura.
Quanto aos argumentos fiscalistas, que dão relevo à conveniência de arrecadar as receitas fiscais correspondentes a uma actividade económica com grande expressão: lamento desiludi-los, mas também não acho provável que os proventos tivessem qualquer significado. Actualmente, nas casas abertas ao público onde essa actividade é exercida com disfarce (sob denominações de bares, boites, salas de diversão, salões de massagens, etc) todo o pessoal está devidamente "legalizado". Ou seja, não trabalha lá ninguém que não tenha contrato de trabalho, declarado à inspecção, e que desconte os seus impostos e para a segurança social. Naturalmente que esses contratos dizem que a categoria profissional é de empregado de balcão, bailarina, recepcionista, cozinheira ou lá o que calhe, e todos referem o ordenado mínimo nacional, mas a verdade é que todos os que têm estabelecimento aberto estão defendidos contra as fiscalizações.
Se a prostituição, por força de lei, passasse a só poder ser exercida em locais licenciados e por profissionais registados como tal, acreditam os leitores que os contratos de trabalho iriam declarar rendimentos muito superiores, e o número de trabalhadores a descontar iria subir radicalmente? Eu não acredito.
Nesta altura alguns replicarão que o que não falta por aí são locais esconsos que não precisam de proteger o alvará que não têm, nem sequer como café, e gente que se dedica à prostituição sem ter qualquer cobertura contratual.
É verdade. Mas alguém acredita que essa economia paralela deixaria de proliferar caso a lei limitasse a actividade às sociedades civis ou empresários individuais devidamente autorizados, aos locais devidamente licenciados, aos profissionais devidamente habilitados?
Por favor: se nem os canalizadores ou os electricistas de ocasião podem ser eficazmente controlados pela máquina fiscal como seria detectada e controlada a prostituição espontânea e avulsa?
Iria legislar-se no sentido de tornar obrigatória a passagem de recibo ao cliente (a medida conseguiu aumentar muito as cobranças em relação aos médicos, por exemplo)? E para estimular a exigência do recibo seriam concedidos benefícios fiscais nessa matéria, em sede de IRS?
Uma vez que o escrito já vai longo, termino. A minha convicção, em síntese, baseada em algum conhecimento da realidade, é que a "regulamentação legal" aludida pouco iria modificar tanto no que respeita à saúde pública como no que toca às receitas fiscais. E continuaria a existir, como existiu sempre, a prostituição que não assumiria o nome, porque nenhum dos sujeitos envolvidos no acto está interessado nessa oficialização.
As opiniões em análise relevam muito mais de uma visão fetichista e mágica da lei, que conduz à crença de que mexendo na legislação se mudam os factos a que ela se refere, do que propriamente de um conhecimento autêntico da realidade.