domingo, agosto 31, 2003

Querido diário

Termina hoje o mês de Agosto. Como podes verificar, foi no já afastado dia 31 de Julho que dei início a este nosso diálogo. Desde então nem um só dia te faltei. Aqui deixei desabafos e recordações, sentenças e opinações, recados e confissões, palavras de amores e desamores.
Completado um mês, e apesar da confidencialidade do lugar, reencontrei dois ou três amigos, e parece-me ter feito outros dois ou três. Nada mau – é difícil fazer um amigo e muito mais difícil é conservá-lo.
Fora isso, este nosso sítio mantém-se quase tão reservado como um boletim paroquial. O contador de visitantes acusa muita gente, mas bem sabes que isso se deve aos meus incessantes clics. Cá na paróquia a regra é fazer de conta que nem existimos; e parece justo, se pensarmos como nos falta o brilho intelectual e os certificados de bom comportamento que aos outros sobejam. Pelos arredores, pátria fora, a nossa inexistência é dado assente.
Tal recato tem as suas vantagens; repara que mesmo a minha passageira exaltação contra Pedro Mexia não chegou ao conhecimento do visado; é bom que assim seja, senão ainda ele iria fazer queixa ao pai e eu teria que enfrentar mais um embaraço (o pai é pessoa de minha especial estimação).
Inexplicavelmente, quem se interessou por nós foi uma senhora de um quotidiano da capital, paradigma do jornalismo de referência. E vai daí inseriu lá no “Público” um artigo de divulgação ao nosso modesto cantinho na rede, o qual provocou um súbito afluxo de turistas (assim como o Pulo do Lobo quando Cavaco se lembrou de falar nele). Já passou, mas não quero deixar de agradecer a atenção da senhora (juro que não conheço, faz favor de não insinuar nada. Publicidade de borla aos amigos era no “Acontece”, e isso acabou).
Cumprido um mês de navegação, suspeito que andámos à deriva. Mas que foi calma e bonançosa, sem incidentes nem tempestades de maior, lá isso foi. Falta um rumo, um destino certo; pois é, mas isto nasceu precisamente assim. Para falar de coisas sem interesse nenhum, e entreter o exílio.
Todavia, e sem embargo, aqui só para nós, eu tinha uma íntima esperança de reunir confraria mais alargada; e rói-me alguma desilusão com a falta dos que ainda não encontrei – ou por este mar não navegam ou ainda não deram sinais de vida.

sábado, agosto 30, 2003

Mais excelências eborenses

Andam os gregos a discutir se devem ou não admitir como visitante por um dia o Presidente de Cuba! Nós aqui em Évora temos todos os dias um Presidente de Cuba, e nem por isso o maralhal se queixa.
Diga-se já agora que o homem é de Cuba, mas é fino como azeite de Moura. Mas não nos dá grande importância. Podia informar a gente do que por cá se passa – por exemplo.
Olhei há poucochinho para a Sé, e observei intrigado a descomunal torre cilíndrica que envolve agora a torre sineira da nossa catedral.
O que estarão ali a fazer? Os amáveis leitores poderão informar-me que obras decorrem no vetusto monumento? E onde leram a informação?
Quer-me parecer que nem os majestáticos serviços estatais se dignam explicar-nos nem o município resolve suprir a falha.
Dei uma volta pelos arredores... e deparei com obras no depauperado Convento do Espinheiro (que bem as merecia, há muito).
Olá! Esta é novidade das gordas! Um cartaz anuncia “Hotel Convento do Espinheiro”, adornado com cinco abundosas estrelas.
Alguém sabia disto? O meu concidadão sabia, e não me disse? Ou sou eu que ando distraído? O que eu sei é que o Convento do Espinheiro é jóia maior do património nacional; e temos o direito de ver esclarecido o aproveitamento planeado, antes que surja alguma surpresa irremediável.
Qual o destino da capela tumular de Garcia de Resende, esse gigante das letras pátrias, que até já serviu de pocilga a porcos?
O "Grupo Pró-Évora" teve conhecimento do assunto? Se teve, também nada me disse – e eu até sou dos que têm as quotas em dia. Fica interpelada toda a blogosfera eborense.

Excelências eborenses

Como notarão todos os visitantes, e sentem todos os locais, o comércio eborense é, em regra quase sem excepção, de uma mediocridade confrangedora.
Comentam os entendidos que isto já está muito perto de Lisboa.... e estabelecimento de qualidade não medra, a potencial clientela numa hora dá um saltinho à capital.
Mas heróicas excepções também há. E faço questão de deixar hic et nunc um público louvor a duas dessas deliciosas excepções.
Ambas delícias para o espírito, uma por via do estômago e outra por via do intelecto. Ambas de comer e chorar por mais.
E as duas com sede na mesma zona da urbe: ao pé do Largo dos Castelos, à vista do imponente edifício do Quartel dos Dragões de Olivença, na Rua de Cicioso, fica a Pastelaria “Pão de Rala”, criação de D. Ercília, artista benemérita; e ali perto, na Travessa dos Arcos, pouco abaixo do Largo da Porta de Moura, fica a Livraria “Som das Letras”, "onde os livros têm a palavra". Feliz iniciativa do Luís e da Anabela, um simpático casal de eborenses por adopção.
Primeiro a pastelaria: obra de autor, digo de autora, a casa tornou-se em poucos anos lugar de culto, santuário da doçaria alentejana, templo da gula, monumento ao bom gosto e à autenticidade – numa cidade onde praticamente só havia uns postos de venda de bolos, todos enjoativamente banais.
Depois a livraria: o Luís e a Anabela, dando a tudo um toque pessoal, também criaram obra de autor, a justificar copyright – uma livraria que gosta de livros, como já não se encontra mais, numa terra onde só há papelarias.
Só não digo que estamos perante a única livraria de Évora por respeito à velhinha "Nazareth", que também é papelaria, e perfumaria, e posto de venda de livros escolares, além de outras coisas mais, mas mesmo assim mantém algo do que foi; e foi muito, na vida da urbe eborense, desde o último quartel do século XIX. Recordo aliás que a tradição da casa é a diversidade, e não apenas o comércio livreiro; há muitas décadas, na letra de uma revista eborense que então fez bom sucesso, assim a descrevia João Vasconcelos e Sá:

“Dentro dos arcos da Praça
a loja do Nazareth
tem selos, correntes, carteiras e pentes,
impressos, rosários, botões, calendários,
compassos, carimbos, romances, cachimbos,
kodaques, tabaco, postais e rapé”.

E nisto dou por mim a sorrir com a lembrança do bom velho Joaquim Nazareth, sempre solícito e prestável (talqualmente acontece agora com os jovens donos do “Som das Letras”, quando por lá passamos a esgaravatar as estantes e expositores) perante o cliente que não encontrava o que queria: “Não há manda-se vir”.
E nunca faltou ao lema.



Editoras

Quando penso em editoras portuguesas, desperta todo o meu afecto pela “Guimarães”.
Quanto de mim devo à velha casa da Rua da Misericórdia, não saberei dizer. Mas são muitos anos de uma relação especial, sempre renovada, com a editora de Delfim Guimarães e Francisco Cunha Leão.
Por via dela, também o convívio mais chegado com a Filosofia Portuguesa. E sempre, sempre, lhe encontrei aquele gosto sóbrio e discreto de fazer bem, o apuro e o rigor da forma, a par de uma cultura já centenária de apego e devoção às nossas coisas e aos nossos autores.
Outras poderiam suscitar-me maior sensação de afinidade, até pela filiação intelectual e política dos seus mentores originários, e logo me ocorre a Verbo, de Fernando Guedes et allia, mas o gigantismo alcançado determinou irremediável distanciamento. Outras surgiram e desapareceram, em passageiras tentativas de firmar os pés no difícil terreno em que se desenrola a terrível batalha pela sobrevivência, mas dessas ficou-me a lembrança da dignidade da tentativa e do mérito do que ainda assim se fez.
Mas a "Guimarães" permanece, tranquila, no caminho traçado, como um velho amigo a que sempre se regressa.
Nestes anos mais chegados, alguns amigos temerários têm prosseguido a aventura da edição no ingrato mercado português. Estou a pensar concretamente na "HUGIN” e na “Nova Arrancada”, que em Lisboa se lançaram nessa guerra.
Encontrei-as agora na net; e, não há dúvida, obras já têm; permita o destino que ainda esteja aqui a cumprimentá-las quando lograrem atingir a idade da “Guimarães”, estando nós todos no estado de saúde que esta apresenta, evidentemente.

Um blog para ler devagarinho

Contra todas as regras da bloguística, persiste o Caminhos Errantes.
Mas não é ele que tem que mudar! Sois vós, leitores superficiais e apressados! Devotos consumidores de leituras fáceis! Pois não vedes que precisais de alimento mais substancial, que este humilde blog, alinhavado ao estilo fast-food, não vos pode proporcionar?
Ide, ide, que bom proveito vos fará. Ali, o pássaro de Minerva fez seu poiso. Ide, em respeitoso recolhimento. E pensai, saboreando cada pensamento, se esse nobre exercício não for já de todo estranho às vossas pobres pessoas. Com todo o tempo do mundo.

sexta-feira, agosto 29, 2003

Tragédia em Damão

Triste notícia chega de Damão.
Cedeu hoje parte de uma ponte sobre o rio Damanganga, entre Damão Grande e Damão Pequeno.
Aconteceu pelas 13:30, hora local, manhã cedo em Lisboa, quando circulavam sobre a ponte um autocarro escolar e diversos motociclos.
Receia-se que existam dezenas de mortes, incluindo muitas crianças.
Para todos os damanenses, e para todos os amigos, fica aqui a informação que o Supergoa acompanha esta notícia com actualizações constantes.
Fica também a devida solidariedade aos familiares e à comunidade atingida.


Lembrando José Agostinho de Macedo

Aproxime-se o leitor de Lisboa pela Ponte Vasco da Gama, sem pressas, ao cair da tarde, quando o Sol, deitado à sua esquerda, já coroa a Ponte Salazar, bordando as águas e o casario de reflexos doirados, e saboreie delicadamente este poema. De um alentejano esquecido, que de Beja rumou à capital e assim o escreveu vai para duzentos anos.


A Cidade Bela

Quanto é bela Ulisseia! E quanto é grata
Dos sete montes seus ao longe a vista!
Das altas torres, pórticos soberbos
Quanto é grande, magnífico o prospecto!

Humilde e bonançoso o flavo Tejo,
Sobre areias auríferas correndo,
As praias lhe enriquece, as plantas beija.
Quão denso bosque de cavalos pinhos
Sobre a espádua sustenta! Do Oriente
Rubins acesos, fugidas safiras,
E da opulenta América os tesouros,
Cortando os mares líquidos, trouxeram.

Nela é mais puro o ar; e o Céu se esmalta
De mais sereno azul. O Sol brilhante,
Correndo o vasto Céu, se apraz de vê-la.
E quase se suspende, e, meigo, envia
Sobre ela o raio extremo, quando acaba
A lúcida carreira, a frente de ouro
No seio esconde das cerúleas ondas.



quinta-feira, agosto 28, 2003

Os ex-comunistas

Alguns conhecidos meus acham exagerada a desconfiança que eu, de quando em vez, manifesto em relação aos ex-comunistas – que, como é notório, enxameiam cada recanto da república. Tomam a minha atitude por preconceito, ou reflexo adquirido.
Mas não é assim. Estou de caso pensado. E explico.
O que neles me causa apreensão não é o que foram; é o que neles ficou depois de deixarem de ser. Se houvesse mudança autêntica e verdadeira, admissão de erro, arrependimento activo, com gosto levantaria eu as defesas. Mas a gente examina o processo mental que neles se operou e não é isso que encontra.
Segundo os próprios, que desse modo se explicam, em infindáveis e lamentosas justificações que já por si muito dizem, passou-se que o curso da história tornou impossível o imobilismo ideológico que criticam nos permanecentes. E vai daí eles aceitaram transformar-se – mas contrariados, como ressalta de todos os depoimentos. De muitos com propriedade se pode afirmar que nunca saltaram o muro – saltaram para o lado, para o muro não lhes cair em cima.
A mudança não veio de dentro, foi-lhes imposta de fora. Eles deixaram de ser... mas vivem cheios de pena, angustiados com a perda, em constantes sobressaltos de nostalgia.
E no geral mantêm todos os tiques da seita; é observar como aqueles que surgem a proclamar as excelências do debate público e aberto ficam enxofrados quando o debate ameaça alastrar a opiniões que não sejam as suas. Eles gostam do debate, sim; mas desde que fique entre eles e o próprio umbigo.
Perguntarão agora em quem estarei eu a pensar; e eu sei muito bem em quem estava a pensar, mas, perdoem-me esta fraqueza, não vou dizer – só para vos obrigar ao trabalho de lançar os palpites e adivinhações que ao caso se ajustem.

Recados para Évora

Eu bem queria participar nesses simpáticos debates que percorrem a blogosfera eborense e que têm por tema, louvável, a valorização da urbe.
Mas não tenho coragem. Circundo as muralhas e dou de caras com as tais manilhas gigantes acumuladas junto às Portas de Alconchel; continuo em direcção à Porta da Lagoa e dou por mim a passar o indescritível troço-de-muralha-caiada-com-janelas que ficou em amostra na própria Porta da Lagoa, para contrastar com a massa pétrea do Calvário; um pouco à frente passo sob os arcos do aqueduto deparando à esquerda com um denso matagal e à direita com os restos degradados das construções encostadas à muralha, que devia estar limpa em execução de um programa com cinquenta anos; prossigo, e após ultrapassar a zona de obras da Porta de Avis e nova rotunda da Ladeira do Seminário acabo por chegar à espantosa calote esférica vermelha, com pedras de granito à volta, que ficou a marcar a rotunda da Porta de Machede; seguindo viagem, para a direita, encontra-se logo o enorme espaço que foi o antigo matadouro, e onde a querida Câmara conserva o esqueleto arruinado das antigas construções, e um centro de escultura em pedra que dia e noite vomita poeira e barulho para os moradores da zona da Avenida S. João de Deus...
Estaciono, e vou até à zona mais nobre da cidade, pagar a conta à EDP. A Praça de Sertório lá está esventrada, em obra de onde fatalmente surgirá nova maravilha requalificadora; mas antes levanto a cabeça para a Igreja de Santiago, e logo desvio o olhar tal o aspecto horrendo e tenebroso do templo, que não vê cal há séculos.
Os nossos chafarizes e fontes, do Largo de Machede, do Largo de São Mamede, da Porta da Lagoa, da Rua Serpa Pinto, e sei lá que mais, em vez de se apresentarem como oásis refrescantes e límpidos exibem-se ressequidos como permanentes vazadouros de porcaria.....
Não tenho coragem. Vem- me à memória, em ameaçador galope, a história trágica das sucessivas melhorias que nestas últimas duas décadas foram destruindo o espaço do que foi o Jardim das Canas, no Largo de São Domingos (os mais novos não imaginam já que ali era um jardim). E a perspectiva de mais melhoramentos afigura-se aterradora.
E não tenho coragem. Chega um conhecido e conta que a cidade está em sério risco de a breve prazo ter um estádio municipal, ao Bairro de Almeirim, como já foi exibida a maqueta, e um outro do Lusitano, à Estrada das Alcáçovas... e penso de imediato o que irá fazer o Juventude. Eis o milagre da multiplicação dos estádios, que depois de ter afectado o país chegou enfim à nobre cidade de Sertório!
Contemplo, esplendorosa, a "cultura de excelência" do impagável Professor Zorrinho...
E falta-me a coragem. Não consigo falar de floreiras, tenham paciência.


quarta-feira, agosto 27, 2003

O sangue e a terra

Para quem queira perder-se em profundos ensaios académicos sobre os apelos de eros e a ruralidade transtagana, coloco aqui, em confronto, dois poemas, um de Azinhal Abelho e outro do Conde de Monsaraz. Ora faça o leitor o favor de avaliar.

Comoção Rural

Já não há quem queira dar
uma filha a um ganhão…
Senhor Pai, senhora mãe,
que grande desolação.

Já bati a sete portas
por mais de mil e uma vez;
Vá-se embora seu ganhão,
disseram com altivez…
A minha filha é prendada,
não é para qualquer tunante,
sabe ler, sabe escrever
e todo o seu consoante.
O que é que tem um ganhão?
Um azinho dum pau torto;
só vive das tristes ervas,
não tem onde cair morto.

Os olhos já não são olhos,
estão desfeitos em chorar,
porque a um pobre ganhão
já não há quem queira dar
nem mulher para dormir
nem a filha para mulher;
nem quem o ajude a vestir,

nem quem o ajude a morrer.
Ramos secos, estéreis flores,
pedras de arestas cortantes
perdidas num vendaval,
perdidas numa aflição…
Eu já não posso gritar;
Senhor Pai, senhora Mãe,
que grande desolação
nestes matagais com longes,
aonde os anjos se afundam
em húmus e punição!

Azinhal Abelho (Nossa Senhora de Orada, Borba, Alentejo, 1916 / 1979)


No Monte

No monte, o lavrador, cansado da labuta
Do dia que passou, monótono, uniforme
São oito horas, ceou, recolheu-se e já dorme,
Feliz por ver medrar as terras que desfruta.

A lavradora, não; activa e resoluta,
Moireja até mais tarde e descansa conforme
A faina lho consente e a barafunda enorme
De homens e de animais que em derredor se escuta

Mas a filha, que tem vinte anos e que sente,
Nas solidões da herdade, a alma descontente
E o sangue a referver num sonho tresloucado,

Encosta-se à janela; ouvem-se as rãs e os grilos;
E os olhos de azeviche, ardentes e tranquilos,
Ficam-se horas a olhar as sombras do montado...

Conde de Monsaraz (Reguengos, Alentejo, 1853-1921)








terça-feira, agosto 26, 2003

O eborense Doutor da Mula Ruça

Ao que apresenta prosápia superior às suas habilitações, ou que presume aquilo que não é, chama-se ainda agora habitualmente “doutor da mula ruça”.
Pois bem: a expressão hoje generalizada tem uma origem bem concreta e determinada. A história foi investigada e contada pelo erudito portuense Sousa Viterbo, na inestimável revista “Tradição”, que há mais de cem anos se publicava na notável vila de Serpa (agora também cidade!), e que reuniu um escol de colaboradores como nunca mais voltou a acontecer nestas brenhas transtaganas (mérito do senhor Conde de Ficalho).
Relata o conhecido investigador, arqueólogo e historiador, que na primeira metade do século XVI viveu em Évora a figura que deu origem à popular expressão.
Foi ele António Lopes, eborense de origens humildes e parcos recursos, que a dada altura foi estudar para a cidade espanhola de Alcalá de Henares, então universidade de grande reputação. Por lá se demorou dez anos, alcançando o grau de bacharel em artes e medicina.
Todavia, a falta de meios de sustento obrigou António Lopes a regressar a Évora – sem ter atingido o almejado doutoramento.
Uma vez na sua cidade António Lopes passou a ganhar a vida praticando as suas artes da medicina, como tinha aprendido na Universidade, e ao que parece com êxito, conseguindo granjear a fama e o respeito generalizado, tanto dos pobres da cidade, que tratava gratuitamente, como das pessoas de posição que a ele recorriam. Todavia, havia honras e privilégios que eram exclusivos dos doutores, formados pela Universidade de Lisboa ou reconhecidos pelo monarca, pelo que a falta do título causava evidentes prejuízos ao clínico praticante.
E vai daí o António Lopes, em 1534, requereu ao Rei D. João III que lhe concedesse a desejada qualificação, para poder gozar também das referidas honras e privilégios de doutor. Como agora se diria, pediu o reconhecimento, ou a equiparação ... que não um mero doutoramento honoris causa, como se verá a seguir.
Com efeito, o monarca, considerando os méritos científicos já demonstrados e os relevantes serviços já prestados, despachou o requerimento – mandando que António Lopes fosse devidamente examinado.
O interrogatório aconteceu no dia 19 de Maio de 1534, e foi efectuado por um júri presidido pelo físico-mor Doutor Diogo Lopes, e composto pelos Doutores António e Francisco Mendes e pelo Mestre Francisco Giraldos, servindo ainda de testemunhas o cavaleiro fidalgo Diogo d’Afonseca, o Licenciado Gaspar Ribeiro, físico da rainha, e o boticário Diogo Gomes.
Assim uma espécie de exame do Vasquinho da Anatomia, na “Canção de Lisboa”, não sei se estão a ver. E ao que parece o examinando António Lopes também sabia onde ficava o “mastoideu”, e terá prestado boas provas.
Por carta régia de 23 de Maio de 1534, logo na sequência do exame, foi concedido pelo rei a António Lopes “o grau de Doutor, ou que goze dos privilégios, honras, liberdades, franquezas e excepções de que gozam os doutores que saem por mim feitos ou dos que fazem em a Universidade de Lisboa”.
Deste modo logrou António Lopes conquistar o reconhecimento que lhe faltava, legalizando a situação que detinha de facto. Mas na época em que o exame ocorreu já ele era habitualmente designado como “o físico da mula ruça”, por ser de norma deslocar-se num animal com essas características.
E eis como nasceu a popular expressão, a qual como se conclui não tinha na sua origem qualquer conotação pejorativa.

Apelo aos eborígenes

No Évorablog, o Giraldo e o Sertório resolveram pôr em discussão o destino do Rossio de S. Brás.
E pedem que todos participem, dando a respectiva opinião. Achamos bem, esta ideia da discussão pública e aberta; já lá vai o tempo em que os assuntos da cidade tinham como lugar próprio para ser discutidos o colectivo... do partido.
Como ponto de partida, está lançada a pergunta:deve o Rossio continuar a acolher a Feira de S. João?
O Giraldo e o Sertório agradecem antecipadamente a colaboração, pedindo que qualquer contribuição seja enviada para o respectivo endereço: evorablog@hotmail.com
Aqui nos associamos à iniciativa, remetendo os nossos leitores (presumindo que algum há-de haver) para o forum assim oferecido.

segunda-feira, agosto 25, 2003

O Diabo à solta

Ontem, 24 de Agosto, foi dia de S. Bartolomeu.
Aqui na região o Santo é festejado sobretudo em S. Bartolomeu do Outeiro (Oriola de Cima), estranha terra que os homens, sabe-se lá porquê, colocaram no cabeço mais alto que assinala a meia distância entre Portel e Viana, em miradouro natural sobre os domínios da Baronia de Alvito, e que o tem como seu padroeiro.
Nessa data sai ele à rua, em procissão, com a sua rude carantonha talhada em pedra dura, arrastando aos pés, acorrentado, o mafarrico, figurado numa simiesca criatura.
Segundo a lenda, foi o próprio Santo que teimou em ficar naquele outeiro, pois de lá poderia avistar os seus irmãos, S. Pedro, S. Vicente e S. Bento, instalados em outras tantas ermidas, também elas altaneiras a vigiar a planura.
Em baixo, aos pés do monte, avista-se prazenteiro o Santuário de Nossa Senhora de Aires, o mais belo santuário mariano da planície, já chegado a Viana.
Que eu saiba, o santo também é venerado em Borba e Vila Viçosa, onde tem monumentais templos que lhe são dedicados, e teve também uma igreja a ele consagrada numa das saídas de Évora, junto à Porta de Avis, sobre o baluarte também com o seu nome – mas dessa desde o século XVII só resta a ruína que lá se vê, vítima que foi da artilharia de D. João de Áustria.
S. Bartolomeu é um santo a ter em especial consideração: segundo a hagiografia católica, é o único santo a conseguir acorrentar o demónio, tendo prometido que todos os dias 24 de Agosto voltaria a prendê-lo.
Se tem ou não mostrado eficácia bastante, isso é outra conversa. E sobre esse ponto a doutrina divide-se.

A solução

Tenho pensado muito nos intrincados problemas que os americanos enfrentam no Iraque. Sinceramente. E de repente ocorreu-me a solução. Afinal é bem simples, e transmito-a sem esperar agradecimentos. Aqui vai. Nomeiem já o General Lemos Pires comandante das forças militares destacadas para a região.
O homem encontra a saída.

Paradoxos

Outro dia, na CNN, um comentador americano (para que não digam que sou eu) raciocinava como segue.
A pior coisa que podia acontecer agora no mundo islâmico, para os americanos, era terem o que apregoam. Isto é, democracia e eleições livres.
E concretizava: com eleições verdadeiramente livres, neste momento, na Arábia Saudita, no Iémen, no Egipto, na Jordânia, nos Estados do Golfo, no Iraque, no Afeganistão, no Paquistão, mesmo na Turquia, na Malásia ou na Indonésia, os regimes com que os americanos melhor ou pior se têm entendido seriam totalmente varridos. E os vencedores seriam, fatalmente, forças radicalmente anti-americanas (até porque não há outras). Com efeito, os americanos, entre os povos desses países, são vistos não como um inimigo, mas como o inimigo, por razões facilmente descortináveis; e os amigos com que aí podem contar estão apenas nas classes possidentes e entre as forças militares ou policiais, ou nos serviços de informação, tudo sectores fortemente ocidentalizados, por interesse ou por convicção – mas largamente isolados e impopulares.
E ironizava o mesmo comentador: curiosamente, de entre os países de religião islâmica a sociedade onde se pode sentir mais simpatia pela América é a iraniana ...
Não dizia, mas deixava claro: nada a fazer senão ir apoiando firmemente as ditaduras dos amigos, em defesa da democracia...
Ou seja: houvesse eleições livres e democráticas, sem condicionamentos militares ou policiais, nos estados islâmicos cujos regimes são vistos como apoiantes dos americanos, e teríamos multiplicada a situação argelina. Depois das eleições, os democratas, largamente vencidos, tiveram que fazer um golpe de estado e instaurar uma ditadura militar, para salvar a democracia e chacinar metodicamente os anti-democratas que democraticamente as venceram. Confuso não é?

domingo, agosto 24, 2003

Jornalismo de delito comum

O “Correio da Manha”, em título garrafal, a toda a largura da primeira página: “Juiz da pedofilia muda de casa”. Depois, em tipo mais miúdo, fornecem-se os detalhes sobre o assunto, do mais relevante interesse jornalístico, como decerto toda a gente concordará.
O “24 Horas”, também em primeira página: “Rui Teixeira e João Guerra têm medo que lhes tirem fotografias”. A acompanhar, ainda em primeira página, as fotografias dos visados, ao que se depreende obtidas à revelia deles. Seguem-se também os pormenores da rotina dos ditos.
Eu não vou tecer considerações sobre respeito pela privacidade, ou direito à imagem, ou direito à reserva e à intimidade da vida privada – que tudo, porém, são direitos consagrados e protegidos na constituição e na lei. Também não vou entrar em considerações àcerca de segurança, que todavia parecem ser prementes já que as autoridades policiais têm entendido ser preciso assegurar protecção especial a essas personalidades – o que se compreenderá pela onda de paixões que o processo aludido desencadeia. Paixões, ódios, e interesses poderosos ...
Mas não resisto a deixar algumas perguntas: será possível que isto não seja deliberado, propositado, consciente? Algum jornalista ignora as consequências de apontar alguém a dedo - a cara, a casa, o carro, os percursos, os hábitos, a família - em situações destas?
Quando amanhã um tresloucado qualquer aproveitar o caminho assim aberto, os mesmos senhores jornalistas virão publicar sentidos artigos de indignação contra ... o tresloucado, apenas?
Ou tais artigos já estão alinhavados, em reserva?

Ainda para os “requalificadores” de Évora

A publicação do meu post anterior gerou de imediato reacções de incompreensão. Que sentido faz ressuscitar textos de há sessenta anos, tributários de conceitos sobre património e conservação agora estética e ideologicamente ultrapassados, para mais saídos da pena de um tenebroso fascista, justamente esquecido....
Eu explico melhor: continuem a “requalificar”; livrem-se de tudo o que é “secundário”, “acessório”, "supérfluo", “historicamente datado”, etc. e tal; e depois vejam então o que fica.

Sobre a “requalificação urbana” de Évora

Escrevia há quase sessenta anos o Dr. António Bartolomeu Gromicho:
“E não se julgue, o que tem sido erro corrente, e perigoso, que o valor desta cidade sem par se concentra e se confina nos seus numerosos e ricos monumentos. O merecimento extraordinário da cidade reside principalmente no seu conjunto monumental e pitoresco.
O encanto desta formosa urbe está na harmonia de um todo envolvido, ou antes, emoldurado na muralha fernandina.
Se os belos monumentos existentes fossem divorciados, descarnados do ambiente típico e pitoresco que a envolve, ficariam frias peças de museu, quase inexpressivos documentos de épocas remotas.
Mas, com a evocativa teia emaranhada das ruas, donde realça a brancura alvinitente dos prédios; com os cantos e recantos dos largos e praças, onde se descortinam restos de grandezas fidalgas; com os perfis caprichosos das cumiadas dos edifícios, eriçados aqui e além, de chaminés de traço elegante ou solene, emergentes de telhados de múltiplos planos, de beirais debruçados sobre artísticas e variadas molduras, a que não faltam, por vezes, os belos frisos de esgrafitos; com todo este conjunto de maravilha, em suma, os monumentos brilham de espaços a espaços como pontos culminantes, como figuras de realce da beleza sem par que se espraia e surpreende por toda a cidade.
Enganam-se redondamente todos aqueles que supõem com santa ingenuidade que toda a atracção de Évora se localiza nas construções classificadas de monumentos nacionais.
Puro engano! Mais, perigoso engano.
Se amanhã Évora, vítima da sanha destruidora que em época recente lhe roubou tantas preciosidades; se amanhã Évora, em loucura de modernização, voltasse à destruição das suas casas típicas, ou dos seus artísticos pormenores, à pintura ridícula das fachadas dos prédios, e enveredasse pela abertura das ruas e avenidas geométricas, traçadas a régua e ladeadas de prédios janotas, que se encontram em toda a parte, a cidade cairia na banalidade e perderia sem remissão todo o encanto, todo o pitoresco, que são os seus mais valiosos pergaminhos e o mais belo cartaz da cidade, rainha do turismo português.
Para um estrangeiro, que não sinta a força da nossa história e que tenha admirado as majestosas igrejas de Itália, França, Espanha, Inglaterra, Alemanha, etc., etc., sentiria uma admiração limitada e relativa ao contemplar os nossos belos, sim, mas muito mais modestos monumentos. Maravilha-os, no entanto, este cenário de perspectivas sempre novas, sempre fascinantes, sempre realçadas por um pórtico, uma varanda, uma janela antiga, ou pelo perfil majestoso, ou pela presença imponente de um palácio, de um convento, ou de uma igreja. É, porém, a soma de tudo que é tudo para eles.
E não falo por suposição. Eu que em anos sucessivos fiz de cicerone a muitos visitantes estrangeiros, ouvi-lhes palavras de respeito e certa admiração pelos monumentos, mas de entusiasmo e de emoção por este conjunto de maravilha”.
Aqui fica, à atenção dos nossos “requalificadores” - que eu não diria melhor.





sábado, agosto 23, 2003

O seu a seu dono

A pedido de muitas famílias, aqui fica a identificação completa do livro a que se refere o post anterior.
Título: “As receitas da D. Gertrudes”.
Editora: “Alémtudoedições”.
Endereço postal: Avenida Combatentes do Ultramar, 1-A, 7480-125 Avis.
Mail: alemtudo@mail.telepac.pt
O livro é, todavia, possível de encontrar em qualquer livraria.
Acrescento que o actual Restaurante «Galito», onde são encontráveis D. Gertrudes e Henrique Galito, fica em Carnide, junto à Igreja da Luz, esquina da Rua da Fonte.

As receitas da D. Gertrudes

Surgiu há pouco tempo nas livrarias um livrinho com o título supra. Para os não iniciados, faz espécie quem seja essa D. Gertrudes assim homenageada com honras de nome de livro. Mas se disser que se trata da viúva de Miguel Galito, logo muitos rostos se abrem em sorriso franco.
Passou já muito tempo. Na longínqua década de sessenta, quando todo este território era um vasto deserto no que respeita a amesendação (havia o “Fialho” em Évora, o “Águias de Ouro” em Estremoz... e chega) um casal de humildes aldeões de um lugar ignoto, a Aldeia da Serra, fez de uma tasca um restaurante.
Rapidamente, em propagação boca a boca, o lugar tornou-se objecto de culto: faziam-se excursões para ir ao “Galito”! Nunca a Aldeia da Serra tinha visto tanta gente. Durante anos, sobretudo aos fins de semana, era um corropio de gente a perguntar pela estrada para a Serra d`Ossa.
Durou anos a epopeia do restaurante familiar, com o casal a batalhar dia e noite para maior glória da cozinha alentejana. Servida pelos saberes ancestrais do povo da serra, a cozinha do “Galito” triunfava em toda a linha.
Com o tempo veio o cansaço, e a solidão (o único filho, Henrique, tinha estabelecido a sua vida na zona de Lisboa) e o “Galito” acabou por mudar de mãos – para nunca mais ser o mesmo. A meio da década de setenta, Miguel Galito e D. Gertrudes foram também viver para a área da capital, como parece ser a sina fatal dos alentejanos. Aí chegados, e como as solicitações eram muitas, o bichinho ainda venceu a vontade de descansar: durante algum tempo o casal explorou um restaurante na margem sul, que nunca cheguei a conhecer, e também durante uma temporada a D. Gertrudes deu a sua mão à cozinha do “Barrote Atiçado”, na Pontinha – fazendo deste a melhor mesa alentejana da capital e arredores.
Nestes anos mais próximos a idade impôs finalmente o descanso. Miguel Galito partiu. D. Gertrudes ainda cá está, vivendo a serena velhice de quem provou que também na cozinha se pode ganhar o direito às palmas do heroísmo. E o carinho de alguém resolveu organizar este livrinho de homenagem, simples, despretensioso e autêntico. Achei curioso que fosse o Duarte Moral: devido à sua idade, o nosso mais volumoso jornalista só pode ter conhecido os tempos de glória do “Galito”, eventualmente, pela mão de seu pai. É provável, que aquilo era então o passeio familiar de fim de semana.
Dizem-me que nestes tempos mais próximos o Henrique Galito (também ex-aluno do glorioso Liceu Nacional de Évora), entretanto reformado da sua profissão de bancário, abriu e dirige um pequeno restaurante de grande êxito, ali para os lados do Largo da Luz. Mas isso não sei, que já são tempos do meu pessoal exílio.
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Mais blogs alentejanos

Novato na blogosfera, só a pouco e pouco vou explorando o terreno. E afinal aqui tão perto encontro: há mais vida no ciberespaço transtagano!
Imperdoável, desconhecia a existência de um blog do jornalista Mário Simões (o tímido Mário João do Largo da Misericórdia, criado à sombra dos jacarandás - como me lembro dele na Escola Preparatória André de Resende, há trinta anos atrás!). Recomendo: é o Vivaz.
Mas há mais: animado por outro eborígene, Manuel Cabeça (este não conheço, é mais jovem..) existe o Crónicas do Deserto.
E a partir de Portel ("oh Portel oh Portel/terra da minha afeição/quem me dera poder dar-te/alma vida e coração ...") uma menina mantém não um, mas logo dois blogs: o Alma Mater e o Abrótea.
É obra! Isto já justificava uma federação de blogs alentejanos... Pela minha parte, faço o que posso: já fixei os links na coluna ao lado.

sexta-feira, agosto 22, 2003

Desabafo

De acordo com algumas vozes excitadas, a honra do Estado Português está dependente, inteiramente, do envio de forças da GNR e da PSP para o Iraque, ao que se percebe quantas mais melhor e quanto mais depressa melhor.
Como se pudesse haver honra ou glória em instalar-se abusivamente em casa alheia, a fazer de moços de fretes dos ocupantes!

Tornou-se?

Ainda do jornal oficioso, uma pérola: sob um retrato da senhora, diz o “dn.verão” (página 4) que “A princesa Alice, tia da rainha Isabel II de Inglaterra, era 17 meses mais nova do que a rainha-Mãe, quando esta morreu, em Março de 2002. Há dois dias, ao completar 101 anos, tornou-se a mais idosa da família real britânica”.
Cá para mim o "dn.verão" apanhou demasiado sol na moleirinha.

O país das maravilhas

Algures nos gabinetes do Ministério da Justiça, alguém regressou de férias na segunda-feira passada, transbordante de energia.
Veja-se só o “Diário de Notícias” de hoje. A toda a largura da primeira página, triunfal, um título informa: “Notários duplicam em todo o país”. E para quem julgasse que tal prodígio podia ser resultado de fenómeno natural, e não fruto da dinâmica acção governativa, logo um subtítulo acrescenta que a “Privatização vai permitir que o número de cartórios passe de 300 para 600”.
E da primeira página mandam-nos para a página 30. Chegados à página 30, nesta, inteirinha, expõem-se os prodígios: os cartórios notariais vão passar de 330 para 600; até final do ano abrem os concursos; e, para que não se pense que tudo fica por aqui, consigna-se que estas alterações “vêm somar-se a outras mudanças que a Justiça está a levar a cabo, nomeadamente a reforma da acção executiva e o novo código das falências”.
Temos pois que esperar os próximos fascículos, a publicar sequencialmente até à rentrée do ano judicial e político.
Mas ainda não mencionei a cereja do bolo. Na mesma página 30, mais um título, a encimar nova prosa de gabinete: “Custas judiciais baixam 95%”. Nem mais: noventa e cinco por cento!
Quando eu for ministro quero ter um assessor assim.

Reguengos


Inverno, manhã cedo. A luz que banha
A paisagem é gélida e cinzenta;
A vaga pompa do cenário ostenta,
Ao largo, as serras húmidas de Espanha.

Hortas, vinhedos e a carcaça estranha
De Monsaraz, numa ascensão violenta;
A erva tenrinha os gados apascenta,
Que em tons de bronze a terra desentranha.

E eu olho essa paisagem dolorida,
Testemunha que foi da minha vida,
Povoada agora de visões errantes....

Eu olho-a e dentro da minha alma afago-a,
Que os seus olhos longínquos, rasos de água,
São hoje os mesmos que me olhavam dantes.

Conde de Monsaraz

quinta-feira, agosto 21, 2003

Correspondência do dia

1 – Muito mais estóico que epicurista, por natureza e feitio, fui surpreendido com pública manifestação de apreço do “Epicurtas”.
Que no final marca as suas distâncias, claro... mas e então? Nem todos podem ser do Sporting!
Agradeço a simpatia, e quanto ao resto... deixe-se de predisposições adivinatórias. O meu blog é só o que lá está.
2 – Explorando terreno, descobri “Caminhos Errantes”. Trata-se de um blog de autor, onde ressoa voz própria, fruto de pessoal reflexão.
Fez-me lembrar o slogan irónico que ao tempo da campanha presidencial em que alinhou, quixotesco, o candidato Orlando Vitorino, foi criado pelo António Quadros (creio): “A candidatura que veio do pensamento”. Temos pois um blog que vem do pensamento.
O autor, ainda que jovem, conheceu Barrilaro Ruas – e evoca-o, como ele, realmente, era. Partilhei a lembrança, e a estima.
3 – Também se referiram a este humilde blog o “Coruche”, infelizmente para confirmar que encerrou o “Coruja”, onde eu sempre passava a comprar uns campinos, e o “Bom Dia Alentejo”, teimoso na sua tarefa de acordar Avis. Olhem, coragem e ... até que Dês quêra, qué tempo certo!

Necrologia

Solene, farda número um, olha-me da página do jornal, por entre cruzes negras, em muda despedida. Missa do sétimo dia, Igreja Matriz de Arraiolos...
O Coelho! O próprio, ali, entre os mortos...
Suspendo a vida, no anúncio fúnebre.
Era meu amigo há trinta e tantos anos... desde que ele, miúdo ainda, tinha vindo das brenhas natais (era de São Gregório) para estudar no liceu. Encolhido, ao princípio, desabrochou, depois, num adolescente esfuziante, de riso farto e laracha fácil. Estou a vê-lo na Câmara, com a comissão de finalistas, à procura do Presidente, com quem era preciso falar. Perante a atrapalhação dos restantes, gritava ele nos corredores para os funcionários municipais: “mas onde é que está o nosso preto vermelho?”
O Presidente era já então Abílio Fernandes, como estarão a perceber. Alarvidades dos dezoito anos.
Mas o Coelho não era só a brincadeira e a exuberância que exibia. Era, e aqui chegados ficava repentinamente sério, um homem de convicções. Essa sua faceta era mais ignorada, sobretudo pelos que só o conheceram desde que a carreira militar lhe tinha imposto a reserva e a contenção. Mas nunca, desencantado embora, o tempo lhe corroeu as certezas. O Coelho era camarada – não dos outros, mas dos meus...
Nestes últimos anos encontrá-mo-nos aqui e ali, ao sabor do acaso, e logo regressava a velha cumplicidade, com um sorriso aberto.
A nossa amizade estreitou-se na fase que se seguiu à abrilada, os dois jovens liceais unidos pelo repúdio aos ventos da hora. Foi o tempo de todos os romantismos, o nosso e o dos outros, e nós nesses anos de 1974 e 1975 dávamos tudo no combate contra o rolo compressor da revolução que avançava, em ímpetos de embriaguez colectiva.
Foi época de activismo intenso, com os parcos meios ao alcance de um pequeno grupo juvenil a remar contra a maré.
Mas os muros da cidade, a par dos slogans da revolução, apareciam sempre pintados com outras palavras de ordem (“Guerra do povo aos lacaios de Moscovo!”) e outras siglas (JNR – JUVENTUDE NACIONAL-REVOLUCIONÁRIA).
E nas caixas de correio surgiam, abundantes e regulares, panfletos e comunicados, cascando nas autoridades e nos rumos da revolução. Era o fruto de constante e fervoroso trabalho nocturno, e clandestino (tinha que ser, que era o tempo de... reacção em cadeia!). Tempos heróicos do stencil e do autocuspo!
A vida seguiu o seu curso, e ditou as suas regras. A última vez que conversei com o Coelho creio que foi há alguns meses, no “Trovador”. Falou-me da sua mudança, já que tinha sido colocado em Lisboa no cargo que agora ocupava, deixando de prestar serviço no Quartel-General da Região Militar do Sul. De resto, tudo bem. Para o Coelho, aliás, era assim – estava sempre tudo bem.
Senti como estava longe da exuberância da mocidade, senti que se instalara nele um desprendimento e um cansaço que a vida, e a solidão, por vezes trazem. Mas, confesso, não senti que o sopro da morte o rondasse já tão perto. E afinal ... morreu de “doença prolongada”.
Otro se fue al lucero que en el cielo le esperaba... A meio da vida, e sem aviso prévio.

quarta-feira, agosto 20, 2003

Coruche

Mais um blog com nome de terra, e com raiz na terra.
O “Coruche” recorda que estamos ainda na altura das festas de Nossa Senhora do Castelo (vive-se o rescaldo...). Para quem não soubesse, fica avisado: aproveitem, venham conhecer o Sorraia, subam ao miradouro, saboreiem a paisagem.
E não só, que há mais para degustar - aquilo é terra bem servida do ponto de vista gastronómico. Cá o rapaz, por obrigação profissional, marcou presença em Coruche, com regularidade quase semanal, durante quatro anos. Abancava quase sempre n’ “O Farnel”, sem prejuízo de outras excursões exploratórias. E recomenda: há ali uma cozinha com personalidade, onde se sentem os aromas e os sabores das ervas como no Alentejo, mas se mistura essa sabedoria com as especificidades da beira-rio, e tudo condimentado com uns toques claramente ribatejanos. Nota-se nas migas, nas enguias, nas feijoadas de chocos ...
Eu normalmente ia pela feijoada de chocos, e nunca me desiludiu.
Deixo aqui consignado que não posso ir, mas lá que a saudade fica e não vai embora, lá isso é verdade.
A propósito: o que aconteceu ao belíssimo espaço do “Coruja”? Sempre fechou? E se fechou, qual o destino projectado? Ou não há projecto nenhum?
Coruchenses, não permitam tal perda!

terça-feira, agosto 19, 2003

O fracasso político da estratégia de ocupação militar

Multiplicam-se as notícias sobre o descontrolo da situação no Iraque e no Afeganistão.
Surgiram agora mais ecos sangrentos da tragédia.
Ocupar foi fácil; como muito bem sabiam os que, para a plateia, ergueram papões em contrário, não havia oposição militar que não fosse de umas hordas de maltrapilhos de pé descalço.
Mas parece que, desde o princípio, o planeamento esqueceu o após-ocupação. E o certo é que era previsível isto: agora não é possível retirar, e ficar torna-se dia a dia mais insuportável.
Com efeito, consumada a ocupação do terreno restariam sempre as armas que exército algum pode eficazmente eliminar, as pessoas – e que podem traduzir-se num preço elevadíssimo.
E não admira que elas sejam cada vez mais utilizadas. Sobram razões para o desespero – e cada um sentirá sempre que morre na sua terra, e que os estranhos são os outros.
Ora pode tanto um homem em sua casa que mesmo depois de morto são precisos quatro para o tirarem.
Acresce que no Iraque como no Afeganistão os americanos para terem aliados aceitaram a companhia da pior bandidagem da zona: ladrões internacionais como Chalabi, carniceiros terroristas como Dostum, grandes produtores de droga como os financiadores da Aliança do Norte, tiranetes tribais como Barzani ou Talabani ...
Multiplicaram-se por todo o lado os pequenos exércitos locais, cada um ao serviço do seu chefe e com leis que são apenas as do saque e da rapina.
As consequências da guerra, e desse sistema de alianças, foram desastrosas: desde logo o desaparecimento desses Estados, enquanto estruturas organizadas, com um governo central e uma administração unitária, o que não parece fácil vir a restaurar – com americanos ou, já agora, sem eles.
Depois, e como resultado, o descontrolo total sobre o tráfico de armas, de pessoas, de droga ...
Os exércitos estrangeiros só podem garantir a segurança dos locais onde estão acantonados – e cada vez com mais dificuldade (e essa garantia não abrangia sequer o quartel-general da ONU ...).
O Afeganistão voltou em pouco mais de um ano de ocupação a ser o maior produtor de papoila de ópio do mundo, cultura esta que os talibans tinham proibido e irradicado. Isto quer dizer que em toda a Europa e EUA a indústria de produção de drogas duras voltou a contar com o seu mais importante fornecedor de matéria prima.
Neste panorama, o que menos interessa a todos os intervenientes são a democracia e os direitos humanos, coisa estranha à cultura local e, objectivamente, aos interesses dos ocupantes.
Estes estão perante dilemas dramáticos: se rompem com os aliados que têm ficam sem nenhuns. Não podem sair, e não têm qualquer solução que não seja aumentar os meios bélicos envolvidos.
A isto chegou a estratégia americana: um conjunto de guarnições de ocupação territorial, cercadas pelo ódio das populações e reféns políticos da pior escumalha existente à face da terra.
Os optimistas tendem a pensar que tudo tem uma solução. Nós os pessimistas sabemos que há realmente problemas sem solução.

Novo reduto

Recebo cumprimentos amigos de um blog agora posto em movimento na blogsfera: "Ultimo Reduto".
Que seja o primeiro de muitos novos redutos, eis o que lhe desejo. E que seja um reduto de irredutíveis, inacessíveis ao desalento ...
Entretanto, que não esqueça os conselhos do Manel alentejano: primeiro, lavrar com muitos parelhas sempre deu outro despacho; segundo, paulatim sed firmiter ... tudo como já ficou melhor explicado em postas anteriores.

Convívio fraterno

Lembro-me de uma canção de José Campos e Sousa que evocava, caricatural, um bar onde "a direita catita e a esquerda festiva se juntam ao centro em passos de dança".
Pois o bar existe. Não vou dizer que Portugal seja esse bar, como estarão à espera. Mas basta percorrer a blogolândia e frequentar certos blogs.
Encontram-se cá todos, a acertar os passos.

As Arcas de Montemór (lenda)

Entre escombros, na rudeza
De vetusta fortaleza,
Batidas do vento agreste,
Empedernidas, cerradas,
Há duas arcas pejadas,
Uma de oiro, outra de peste.

Ninguém sabe ao certo qual
Das duas arcas encerra
O fecundo manancial
Que fartará de oiro a terra
Mesquinha de Portugal;
Ou qual, se mão imprudente
Lhe erguer a tampa funérea,
Vomitará de repente
A fome, a febre, a miséria,
Que matarão tôda a gente.

Sempre que o povo faminto,
Maltrapilho e miserando,
Fôsse ele cristão ou moiro,
Entrou no tôsco recinto,
Para salvar-se, arrombando
A arca pejada de oiro,
Quedou-se, os braços erguidos,
O olhar atónito e errante,
Sem atinar de que lado
Vinha morrer-lhe aos ouvidos
Uma voz agonizante,
Entre ameaças e gemidos:

- “Oh povo de Montemór,
Se está mal, se és desgraçado,
Suspende, toma cuidado,
Que podes ficar pior!”
E, nestas perplexidades
E eternas hesitações,
Hão-de passar as idades,
Suceder-se as gerações,
E continuar na rudeza
Da vetusta fortaleza,
Batidas de vento agreste,
Empedernidas, cerradas,
As duas arcas pejadas,
Uma de oiro, outra de peste.

Conde de Monsaraz



Confissão

No post que antecede não fui capaz de escrever que o Major Mário Tomé também é alentejano, de Estremoz, e antigo aluno do Liceu Nacional de Évora, e até costuma aparecer aos jantares e convívios.
Tive vergonha.

Maggiolo Gouveia

Eu tinha decidido nada dizer sobre Maggiolo Gouveia; há horas em que o recolhimento e o respeito são paradigma de civilização.
Mas estive a ler o miserável texto que o Major Mário Tomé fez publicar no “Público” àcerca das cerimónias fúnebres.
E chegado ao fim, um comentário impõe-se, imperativo: nunca a canalhice tinha ido tão longe.
Nem a demência sectária pode servir de desculpa.
Perante a morte, mesmo os piores ódios usam suspender-se, reverentes.
Só as hienas e os abutres se lançam furiosos sobre a presa.
E foi o que fez o Major Tomé.
Maggiolo Gouveia, certo ou errado, era um de nós – e morreu longe e só, torturado, fuzilado, num tempo conturbado em que a pátria se revolvia em frenesim revolucionário, que se a uns exaltava, na antevisão dos amanhãs que nunca cantaram, a muitos outros deixou perdidos, os sonhos e os ossos, pelos quatro cantos do império.
Até por isso, o cerimonial decidido agora, vinte e oito anos depois, devia ter o significado de reencontro colectivo com o passado e com o destino que são património de todos – de pacificação da memória.
O Major Tomé, ao tempo dos factos torcionário no Regimento de Polícia Militar, quis aproveitar um funeral para relançar uma guerra civil nos espíritos.
E, infelizmente, não esteve só. A nova esperança do PS, Ana Gomes, resolveu assumir-se porta-voz dos fuziladores, agitada na lembrança do passado remoto – quando os fundadores da Fretilin saíram das faculdades lisboetas para implantar o marxismo-leninismo numa longínqua ilha do Pacífico. E foram por lá praticar o que os seus camaradas de cá, entre as quais ela, nunca puderam senão sonhar.
O PS devia ter vergonha de chegar a isto – ter como rosto o fanatismo dos nossos falhados khmeres rouges.

segunda-feira, agosto 18, 2003

Ensaio sobre a propriedade

Esta contou-me um companheiro transmontano, exímio caçador de perdizes, grande conversador e politicamente conservador, azul até à medula – por devoção à monarquia e ao Futebol Clube do Porto - num dia em que explorávamos as paisagens do Douro. Como a contou assim a deixo.
Havia lá em cima dois pobres lavradores, desde sempre vizinhos e amigos.
Um tinha duas vacas, e o outro tinha dois burros.
Um dia, veio a revolução quebrar o ritmo inalterável daquela existência sempre igual.
Aquele que tinha duas vacas, mas não tinha nenhum burro, ouviu a pregação socialista, e ficou sensibilizado pelas doutrinas sobre a propriedade, a igualdade, a justa repartição da riqueza, etc. - e tirou as suas ilacções.
Dirigiu-se então ao amigo que tinha dois burros, e expôs o problema: agora vinha aí o socialismo, a igualdade, quem tinha mais devia repartir por quem não tinha – em suma, em adesão às novas ideias impunha-se que o amigo, que tinha dois burros, lhe desse um deles, que bastante jeito lhe fazia, e assim ficariam conformes com a doutrina consagrada na constituição.
O outro ouviu, e, bem ou mal convencido, ou apenas esmagado pelo brilho da nova ideologia, acedeu – e deu-lhe um dos burros, em homenagem ao socialismo.
O pior foi depois, quando contou à patroa. Ouviu das boas, que o sentido prático feminino não permitia a esta embarcar nas mesmas cantigas. E terminou a mulher o raspanete com a saída lógica: o nosso amigo tem duas vacas, e nós não temos nenhuma; trata pois de ir falar com ele, e resolver o problema; a nós também fazia muito jeito ter uma vaquinha ...
Ao infeliz pareceu acertada a ideia, e lá foi novamente falar com o amigo. Pôs a questão como a mulher o ensinara, e apelou ao amigo: tem duas vacas, eu não tenho nenhuma, impõe-se assegurar a igualdade – se me desse uma das vaquinhas, como eu já lhe dei um dos meus burros...
Aqui chegados, o primeiro sobressaltou-se – e renegou do socialismo.
- Mas o amigo não percebeu? O socialismo é só para os burros ...

Mais ou menos o mesmo demonstrava o Afonso Botelho, na sua novela “Como o senhor Jacob enganou o socialismo”, que devo ter para aí perdida em qualquer canto.

domingo, agosto 17, 2003

Xácara das Mulheres Amadas


Quem muitas mulheres tiver,
em vez de uma amada esposa,
mais se afirma e se repousa
pera amar sua mulher;
quem isto não entender...
em cousas d'amor não ousa,
em cousas d'amor não quer!

Quantas mais, mais se descansa,
mais a gente serve a todas;
quantas mais forem as bodas,
quantos mais os pares da dança,
menos a dança nos cansa
o gosto d'andar nas rodas.

Que quantas mais, mais detido
a cada uma per si;
nem cansa tanto o que vi,
nem fica o gosto partido;
ao contrário, é acrescido
a cada uma per si!

No paladar de mudar
mais se sente o gosto agudo:
que amar nada ou amar tudo
é estar pronto a muito amar;
o enjoo vem de não estar
a par do nada e do tudo.

Mais facilmente se chega
pera muitas que pera uma;
e a razão é porque, em suma,
se esta razão me não cega,
quem quer que muitas adrega
é como tendo... nenhuma!

Com muitas, descanso vem,
faz o desejo acrescido:
que é o mais apetecido
aquilo que se não tem;
e o apetite é o bem;
e em saciá-lo é perdido.

Também a mulher que tem
seu marido repartido
é mais gostosa do bem
que advém de seu marido!

Tão gostosa e recolhida,
tão pronta e tão conformada,
quanto o gosto é não ter nada;
porque o gosto é ser servida
e não o estar contentada.
O gosto é cousa corrente,
e quem o tem já não sente
o gosto dessa corrida,
que tê-lo, é cousa... jazente...
que tê-lo, é cousa... perdida!

Ora, pois, nesta jornada
não vi nada mais de amar
que ter muito por chegar
e cousa alguma chegada;
não vi nada mais de ter...
que ter muito que perder...
e cousa alguma ganhada!


MÁRIO SAA
(In Cancioneiro do Salão dos Independentes - LÍRICAS PORTUGUESAS - PORTUGÁLIA EDITORA, 3ª SÉRIE, PÁG. 119)


Mais cumprimentos

Palavras amigas surgiram agora no "Mata-Mouros" e no "Desabafos".
Agradeço, penhorado, e retribuo, que quem é pobre não pode ser mal agradecido.
O "Mata-Mouros" é um blog claramente nortista, elitista e liberal - mas os mouros que pretende matar são outros, pelo que não há razão para alarmes.
O "Desabafos" é mais um dos blogs de Avis, que hoje me trouxe a bandeira do Maranhão - e com ela a lembrança de Mário Saa, que era ali do Ervedal, e uma das personalidades literárias mais fascinantes e singulares do nosso século XX. Até morrrer defendeu sempre a sua tese sobre a presença de "Camões no Maranhão"
(Já agora, do Ervedal também é natural o Prof. Antunes Varela, um dos mais ilustres ex-alunos do Liceu Nacional de Évora, que curiosamente não está listado no respectivo site. E também nasceu lá o nosso amigo Artur Fouto, comentador radiofónico da direita eborense....)

Filosofia portuguesa

Circulando na blogosfera, encontro cada vez mais blogs que fazem lembrar loja de chinês.
Profusão de epígrafes, citações, transcrições, referências, erudição de fancaria, a abarrotar do chão ao tecto.
Ideias mal digeridas, a borbulhar, num frenesim, quase sempre para arrombar portas há muito abertas.
Livros e autores, conhecidos em bookshop de aeroporto, em tropel, atirados como arma de arremesso ou exibidos como arma de dissuasão.
Tudo envolvido em papel celofane e fluorescente, reluzentes de novidade.
Trazem-me ao presente a voz reflexiva e irónica de José Marinho, em lembrete certeiro: “Meu filho, olhe que os testículos não são para pensar....”

Governo-Sol

O amigo BOS, na NovaFrente, resolveu dar início ao processo de formação de um verdadeiro governo-sol, e pede sugestões.
Então lá vai o meu contributo.
Antes do mais, o primeiro ministro. Tem que ser o Dr. Paulo Pedroso - é o único político que já está preso.
E a Dra. Fátima Felgueiras dará uma excelente Ministra Sem Pasta - já tem que chegue.

sábado, agosto 16, 2003

A escolha

Imaginem um homem colocado perante a certeza da morte, que se aproxima inevitável.
Vem-lhe à cabeça a hipótese do suicídio.
Dizem uns: se a morte é certa, para quê esperar? O melhor é antecipar-se...
Dizem outros: se a morte é certa, para quê o sacrifício? Aguarde-se, e ela chega...
Esta é a situação do PCP, dividido entre ortodoxos e renovadores.
Uns, face ao inevitável, defendem que se morra, sim, mas devagar; e de morte natural, sem fugas nem sobressaltos.
Outros, perante a inevitabilidade, defendem o salto em frente: arrumemos a coisa, e parta-se para outra.
Em qualquer dos casos, o PCP acabou. Como é natural: o comunismo também já acabou – e não faz sentido manter o continente sem conteúdo.

Contrição

Constato que falei nos blogs centrados em Évora e, distraído, não fiz expressa referência ao Évorasim.
Faço agora, por dever de justiça e esperança de perdão. Mas sobre o conteúdo nada digo: só visto. O Luís Carmelo não é apenas doutro planeta: é doutra galáxia. Vão, e vejam.

sexta-feira, agosto 15, 2003

Cultura de exigência

Uma coisa tenho eu encontrado nos blogs alentejanos de que já falei (caso notório dos citados de Beja, Avis e Évora): no olhar que lançam sobre as pequenas e as grandes coisas das suas respectivas terras desponta uma cultura de exigência.
Livres, críticos, atentos, independentes, parecem representar uma nova esperança, de criação de uma verdadeira cultura cívica de intervenção, com voz e opinião próprias, que tem faltado de todo na (inexistente?) sociedade civil alentejana.
Para quem conhece o triste marasmo de décadas, já não é mau. E quanto mais local mais universal; a postura perante o que se passa à nossa porta é a melhor forma de viver a nossa maneira de ver o mundo.
Excepção continua a ser o impagável Professor Zorrinho, o Pangloss das hostes socialistas. Esteja o PS no poder e tudo para ele está o melhor possível, no mais perfeito dos mundos possíveis. Onde os outros, face ao real, procuram lançar uma cultura de exigência, reivindicativa e livre de qualquer reverência face aos poderes instalados, logo ele vislumbra uma realidade que é ela mesma uma.... “cultura de excelência”.
Mesmo quando era ajudante de ministro, nunca desligou a torneira dos elogios (a si próprio) e da lisonja (ao chefe de então). Agora, para recuperar o terreno perdido lá no partido, deu-lhe para ser o António Ferro do camarada passareiro!
Faz lembrar o título de uma obra de ficção publicada por Fernando Luso Soares aí por 1960: chamava-se o romance “Vontade de Ser Ministro”.

Aforismo

Admirável, vindo de Machede (grande terra!) a propósito da proliferação de blogs sobre o Alentejo: "Lavrar com mais parelhas sempre deu outro despacho".
Também pode ser usado como lema pelos meus amigos do "nacionalismo de via larga".

Cortesias

O Manel pode ser um tanto ou quanto chaparro, mas não é nenhum ordinário. Já o meu avô dizia: “gosto muito de quem me trata bem!”
Eis pois um post só de vénias e cumprimentos.
Em primeiro lugar, ao “PracadaRepublica”, blog de Beja, que me ofereceu, generoso, um abraço. Não me nego: venham de lá esses ossos!
Aproveito para dizer que Beja está bem representada na blogosfera: além do “PracadaRepublica” marca digna presença o “Ao_Sul”. Os dois, tal como acontece com o “Epicurtas”, totalmente afectados de sportinguite aguda, mas isso é doença hoje muito espalhada.
Pior que eles só mesmo o Miguel, da “Aliança Nacional”, mas aí estará sempre o António José para contrabalançar.
Palavras de simpatia vieram também do “Desabafos”, blog de Avis – que continua a ser a capital da blogolândia, se considerarmos o número de blogs por habitante. Mesmo depois de fechar “O Maranhão”, coisa que custa a acreditar, embora o homem pareça casmurro.
Cumprimentos encorajantes também do Sertório e do Giraldo, responsáveis do “Evorablog” – que aqui retribuo.
Referências ainda ao “Blog-Notas”, que condescende no meu lamento em que o Padre António Vieira não fosse alentejano, e até ao longínquo “Silhuetas”, de Braga, que linkou o "Sexo dos Anjos"
Finalmente, um aceno ao “Novafrente”, que se precipitou em lastimar a ausência de celebrações da batalha de Aljubarrota antes de ler o meu magnífico post.
Aproveito para lhe dizer que se eu estivesse na Ericeira teria dado um salto a Mafra, às cerimónias do Dia da Infantaria. Ou já não há?
Finalmente, uma nota para o “Marsalgado”, que tem realmente momentos de rara inspiração (e juro que não conheço nenhum dos navegantes!) e para o “Catolicoededireita”, que me esmagou com tanta informação.
Obrigado a todos!


quinta-feira, agosto 14, 2003

Dia de Aljubarrota

Faz hoje 618 anos, um bando de jovens alentejanos, ajudados por outros portugueses e ainda alguns ingleses, desbaratou o exército castelhano nos campos de São Jorge e assegurou a independência e a liberdade da Pátria.
Por via dessa batalha consolidou-se no trono, como rei de Portugal, um rapaz alentejano de 24 anos, que tinha a família ali em Veiros e que até então exercia em Avis o cargo de Mestre da respectiva Ordem Militar, o qual ficou conhecido por D. João I.
O estratega da vitória foi outro rapaz ainda mais novo, que era filho do Prior do Crato, e que exercia até então as funções militares de Fronteiro-mor do Alentejo - sendo já alentejano de adopção, embora não tenha nascido cá.
Como se verifica em Fernão Lopes, acompanhavam-no sempre as suas tropas das guarnições alentejanas – como ele diz ao aproximar-se da Lisboa cercada, vinham em socorro da cidade “eu e os meus alentejões” ...
Ficou na história como o Santo Condestável, D. Nuno Álvares Pereira, e levaria depois para Lisboa o culto a Nossa Senhora do Carmo, que aprendeu em Moura.
Heróis lendários da batalha, cantados por Camões, foram os duzentos rapazes da Ala dos Namorados, corpo de jovens voluntários comandados por dois moços imberbes, o Alcaide-mor de Monsaraz, Mem Rodrigues de Vasconcelos, senhor da Herdade do Esporão hoje celebrizada pela produção de vinhos, e o seu irmão Rui.
Foi esse dia 14 de Agosto o princípio do período mais brilhante da história de Portugal.

Mondando o saramago

Regressemos à erva daninha.
Alguns amigos expressaram sempre a sua estupefacção: como é possível que os jurados da academia sueca tenham premiado a obra do ilegível Saramago?
A mim não me admira nada: eles não o leram....
Outros impacientam-se com a minha rabugice: deixa lá o homem, isso são embirrações tuas...
Nem os oiço: quem gostar dele que lhe reveja os textos – e aproveite para pôr a pontuação.
Outros ainda lembram-me que, afinal, um alentejanófilo como eu até devia gostar do Saramago, sempre tão amigo dos alentejanos...
Pois, pois... amigo como as sanguessugas o são das vítimas.
Na verdade, ele amesendou-se no Lavre durante dois ou três meses... e no fim fez obra (isto é, obrou...) daí resultando “Levantado do Chão”.
Um dia eu conto melhor.


O primeiro milhar

Faz hoje precisamente quinze dias que surgiu em rede este nosso humilde blog, denominado “o sexo dos anjos” porque sem finalidade ou destino definido, que não fosse falar de coisas sem interesse a não ser para o escrevente e entreter o exílio interior em que se sentia.
Inseguro e tímido, menino entre os doutores, lá tem cumprido essa função. Outra não sei, que ainda são escassos os ecos.
Todavia, se não engana o contador instalado ad hoc logo de entrada, o número de vistantes do blog ultrapassou hoje o primeiro milhar. Tendo em conta a época do ano, em que, de acordo com as estatísticas, o tráfego na blogosfera diminuiu para vinte por cento do normal, considerando que meio país está a banhos e a outra metade a combater fogos, até que não é nada mau.
Muita gente deve levar o portátil para a praia, certamente...
Por mim, vou continuar – que esta procissão ainda vai no adro.

quarta-feira, agosto 13, 2003

Correio do dia – III

Termino com o ritual quotidiano da leitura do “Diário do Sul”.
Fraquinho, geralmente mal escrito e de composição descuidada, tem o incontestável mérito de ser o nosso diário.
Quero, porém, e a propósito, deixar palavras de louvor que venho adiando há um ror de tempo. Confesso aqui o que ainda não disse a ninguém: abro o jornal e procuro logo as crónicas de Monarca Pinheiro e de Palminha da Silva. São os dois colaboradores da minha eleição. Os escritos deles surgem-me algo perdidos no efémero do jornal, mas têm a marca pessoal de uma labuta incansável em prol da terra e das gentes.
Tão diferentes, mas tão semelhantes na dedicação às nossas coisas, trazem-me a fala, os sabores e as tradições da minha infância (Monarca Pinheiro) ou a defesa culta e inteligente das nossas pedras e monumentos, da nossa história, da nossa fisionomia e da nossa memória colectiva (Palminha da Silva).
Também lia sempre o que publicava o Prof. Afonso de Carvalho, quando este calcorreava “As ruas de Évora” dando nota paciente do que descobria de cada itinerário. Informaram-me que o livro sairá – e espero bem que sim. O parto mostra-se difícil, mas a verdade é que em matéria de partos o Presidente da Câmara tem a obrigação de sair-se bem.
Dizem-me que o apreço agora publicamente manifestado não fica bem a empedernido reaccionário como é o caso deste vosso amigo - já que se trata de notórios esquerdalhos. Conheço-lhes o cadastro, mas fico na minha, que eu cá me entendo. Quem dera que toda a esquerda fosse assim, radicada e situada. Nem eu precisava de encostar tanto à direita.

Correio do dia – II

Passo ao “Diário da República”, dever de todos os dias. Nada de importante, que o Verão também chegou lá a casa.
Minto: foi publicado o Decreto Legislativo Regional n.º 21/2003/M, contendo o “regime jurídico das insígnias honoríficas madeirenses”, coisa de transcendente importância e cuja falta trazia angustiados todos os madeirenses. Nele se estabelece o regime jurídico das insígnias honoríficas madeirenses a atribuir pelo Governo Regional (falta só o respectivo regulamento, que será elaborado dentro de 90 dias - cfr. art. 12º).
Fiquei a saber que as insígnias são três (insígnia autonómica de valor, insígnia autonómica de distinção e insígnia autonómica de bons serviços) e que “visam distinguir, em vida ou a título póstumo, os cidadãos, colectividades ou instituições que se notabilizarem por méritos pessoais ou institucionais, actos, feitos cívicos ou serviços prestados à Região”.
Não confundir com a medalha de mérito da Região Autónoma da Madeira, pois esta, diz o art. 1º, é da competência da Assembleia Legislativa Regional e para atribuir “em situações de relevo verdadeiramente excepcionais”. A esta medalha se refere o Decreto Regional n.º 3/79/M, de 24 de Março.
Ora tomai lá, seus malevolentes – e não digam mal, que “a instituição de insígnias, condecorações ou medalhas que distingam ou agraciem pessoas, premeiem entidades ou assinalem acontecimentos de especial mérito ou relevo é uma prática comum na maioria das sociedades com identidade histórica, política ou cultural própria” – como se explica no preâmbulo.

Correio do dia

Folheio a “Revista Portuguesa de Psicossomática”, com a interrogação do costume.
De quem será a lembrança de me enviar, regularmente, a publicação, tão estranha aos meus limitados horizontes culturais?
Será de alguém que por essa via tenta generosamente alargar tais horizontes?
Ou a remessa deve-se, simplesmente, à indicação do meu nome por uma daquelas empresas que caçam endereços para vender bases de dados?
Seja como for, por respeito e curiosidade, folheio a revista, petiscando aqui e ali. As mais das vezes passo à frente, que não é leitura para o meu dente.
Reconheço um nome que fixei, faz tempo: Manuel Silvério Marques.
O nome ficou doutro local, quando li um artigo sobre a crise do acto médico – que me prendeu, e achei uma descoberta de raro valor e oportunidade. Intuição luminosa, pura: o aspecto essencial da crise do acto médico consiste numa mudança simples mas radical, que se instalou sem que fosse atempadamente diagnosticada – e que se traduz, tão só, em que os médicos deixaram de gostar dos doentes....
Mais à frente, deparo com outro autor a citar Pedro Homem de Melo. E páro, sorriso a meia haste. Melancolia puxa à poesia. Pedro Homem de Melo é pão, e pão da minha messe.
Tinha as raízes mergulhadas nas suas terras do Minho, com a mesma força telúrica com que me agarro à pequena pátria alentejana. Cantava o deslumbramento do rio que lhe passava à porta (“O rio passa em Cabanas/ por entre fragas. Tão lindo/ que embora desça da serra/ parece que vai subindo...”), fitava o mar com o sentimento lírico que perpassa em toda a nossa melhor poesia (“Naquele branco navio/ Que ao longe parece fumo,/ Que as ondas do mar salgado/ Parecem deixar sem rumo,/ Naquele branco navio/ Sou eu quem vai embarcado”).
Dedicou toda a sua vida à vida do seu povo. Com paixão falava dos trabalhos e da romarias, das danças e dos cantares, dos trajes e das tradições da sua terra. Com paixão as divulgou por todo o lado. Quem o compreendeu foi Amália, que gostava dele e também sentia a comunhão de comer à mesa redonda, de fazer parte daquele povo que lavava no rio – e cantou os versos dele, orgulhosa, até ao fim.
Também Amália já se calou.
Lembro o Pedro Homem de Melo, fidalgo altivo e insolente (“ainda no Porto só havia cães, já havia Homens em Atães!”), ébrio nas voltas do vira, ou sapateando o malhão (“Grande poeta é o povo”).
O Poeta D. Pedro jaz hoje esquecido, arrumado, por delitos de incorrecção política, pela estupidentzia dominante.
E vou parar por aqui, que me sinto acometido pelos sintomas da exaustão vital – diminuição de energia, sentimentos de desmoralização e aumento da irritabilidade - , tendo em conta a síntese publicada a fls. 75.

terça-feira, agosto 12, 2003

Entre parênteses

Hoje os leitores, se algum houver, encontram versos alheios em vez de prosa própria.
Ficam a ganhar, obviamente.
E eu também, que contribuo assim para a ilustração geral - e falo, por outras vozes, quando a minha se embarga e prende.

DEUS NA PLANÍCIE

O espírito de Deus flutua e erra
por todo este côncavo profundo.
Assim errava Ele sobre a terra
quando pensou na criação do Mundo.

É noite. Aqui não há mar nem serra.
Há o infinito, o vago. E cá no fundo
minh'alma que se excede e que se aterra,
ó Hálito-Supremo em que eu me inundo!

Ó Hálito-Supremo!... É noite escura.
E o Criador no enlevo em que eu me alago
domina e empolga a Sua criatura.

Sucumbe em mim o bicho vil da terra
E como no Princípio sobre o vago
O Espírito de Deus flutua e erra.

António Sardinha (In Epopeia da Planície)



«A LUÍS DE CAMOENS»

Com solene indiferença, o tempo desmantela
As heróicas espadas. Traído e sem vintém,
À nostálgica pátria-tua-mãe
Tornaste, oh capitão, tão-só p`ra morreres nela

E com ela. À flor do mágico deserto,
O valor português tombou ferido
E o áspero espanhol, sempre vencido,
Ameaça desde logo este costado aberto.

Quero eu saber se, aquém da derradeira
Fronteira, pressentiste, humildemente,
Que quanto se perdeu — o Ocidente

E o Oriente, a lança e a bandeira —
Perduraria (alheio a toda a humana
Mutação) nessa tua Eneida lusitana.

JORGE LUÍS BORGES
(Versão portuguesa de Rodrigo Emílio)

segunda-feira, agosto 11, 2003

Arnie the Barbarian

Nas profundezas do seu exílio transtagano, Manuel Azinhal há uns bons anos que não entra numa sala de cinema. Por esse motivo os seus conhecimentos sobre a importante saga do “Terminator” devem-se todos ao pequeno écran.
Todavia, também guarda nos arquivos da memória algumas lembranças sobre Arnold Schwarzenegger, o musculado e (agora) famoso candidato a governador da Califórnia (e não só, que o homem visa claramente percorrer o caminho de Reagan).
Em data que já se apagou do registo, recorda-se aqui o escriba de ter ido ao Odéon (se a memória não falha assim se chamava um cinema que ocupava o gaveto da Rua dos Condes com a Praça dos Restauradores) para ver um filme protagonizado pelo referido actor em ascensão (não sei se já à data político em projecto).
O filme era “Conan the Barbarian”, do realizador John Milius, e o sempre bem informado Eurico de Barros, então fonte onde este vosso amigo procurava superar a sua ignorância na matéria, tinha feito saber que o mesmo tinha levantado polémica nalguns círculos da crítica bem pensante, que atacara realizador e actor por a obra, ao que diziam, seguir uma estética e um guião de características fascizantes.
Na verdade o filme desenvolve uma espécie de epopeia com tons de viagem iniciática, localizada num passado mítico, onde o herói, Conan, vai sucessivamente ultrapassando todos os obstáculos até vencer em apoteose as forças do Mal, representadas para o efeito por uma seita sinistra. Busca encosto numa imagem nietzschiana do super-homem, ou pelo menos na imagem que o consumidor vulgar associa a essa ideia, e com uma subtileza americana: logo a abrir aparece perante o espectador, destacada sobre o écran vazio, uma frase do filósofo, em letras gordas: “o que não nos mata torna-nos mais fortes”. Dado o mote segue-se o filme propriamente dito.
Era esse aceno a Nietzsche e essa inspiração na vulgata do super homem que estavam na origem dos ataques da crítica esquerdófila.
Mas não foi isso que me trouxe à lembrança o filme; na realidade foi o post antecedente, sobre a morte da bezerra....
Eu conto. Estava eu, e toda a sala, em solene e respeitoso silêncio perante o impacto da frase inicial, em negros caracteres sobre o écran nu (o que não nos mata torna-nos mais fortes) quando me deu uma forte vontade de rir, e não resisti a explicar em voz alta, quebrando a gravidade do momento: qualquer alentejano sabe disso; lá diz-se sempre “o que não mata engorda”...
E eis novamente como a sabedoria popular alentejana é perfeitamente equiparável à melhor filosofia.



A morte da bezerra

Foi este blog baptizado “o sexo dos anjos” por ser essa expressão entendida universalmente com o significado de pensamento inútil e vão, indiferente aos apelos da hora.
Vai daí, lembrei-me agora que no Alentejo quando alguém surge meditabundo, distraído do essencial, a pensar sem objectivo nem sentido prático, logo se diz que está a pensar na morte da bezerra. Eis como a sabedoria popular alentejana em nada fica atrás dos sábios de Bizâncio.
Quando arranjar vagar para fazer novo blog, irá chamar-se assim: “a morte da bezerra”.

Coisas do arco da velha-II

O texto em questão deixou-me intrigado e perplexo.
Para quem o saiba ler, todo ele é um exercício de memória selectiva... cheio de esquecimentos muito bem lembrados.
Como exemplo, o leitor vulgar fica a saber que o pai de José Miguel Júdice lhe morreu quando ele tinha três anos – e que foi um “membro clandestino do partido comunista”. Mas nunca saberá que ele não morreu nessa condição, e pelo contrário dedicou os últimos anos da sua vida a combater o mal que tinha conhecido por dentro.
O filho dirá que não vinha a propósito falar do António Júdice militante anticomunista. E que aliás faz alusão a isso ao contar como Cunhal, cavalheiro, lhe dirigiu elogios à mãe para evitar falar-lhe do pai.
Mas fica a impressão que não será muito respeitoso para com o falecido transmitir dele uma caracterização que ele em vida energicamente repudiou.
Ou que poderá ser ainda o medo ao anátema, à excomunhão, lançadas ao tempo sobre as posições e a pessoa de António Júdice exactamente pelas forças a quem José Miguel faz delicadamente cócegas com o texto em referência.
Ou quiçá um piscar de olho, um pedido de indulgência, dirigido precisamente àqueles que não pouparam a António Júdice nenhum ataque, nenhuma calúnia .. nada!
Ou talvez a construção de uma biografia, a criação de imagem, mais conformes com os padrões da ortodoxia antifascista, indispensável a quem sonha com outros voos. O pai ao serviço do filho...
Seja como for, a omissão converge com outras omissões notórias, em outras ocasiões, quanto à trajectória pessoal do autor. Ora a omissão calculista, o retocar interessado, da biografia paterna ou da própria, com vista a expurgar destas o que nelas choca com o politicamente correcto, o conjunto de ideias aceites pelo sistema dominante, de forma a tornar-se mais frequentável para este, não parece compatível com o jovem idealista que marcava presença na academia coimbrã no começo dos anos 70 – e que radicalmente se insurgia contra esse sistema.
Daí a perplexidade.


domingo, agosto 10, 2003

Coisas do arco da velha

Faz pouco tempo, a Ordem dos Advogados promoveu grandiosa homenagem a Francisco Salgado Zenha.
Proclamado advogado honorário, louvado como intransigente defensor dos direitos humanos, apontado como modelo de excelsas virtudes, com direito a medalha de ouro da Ordem, fotobiografia, discursos vários... foi por lá uma romaria, com todos a tecerem loas ao santo.
Entre os mais, também se distinguiu nas louvaminhas o actual bastonário da Ordem, José Miguel Júdice, que escreveu curioso texto de tom memorialista.
Acontece, porém, que o homenageado, in illo tempore, exerceu cargos ministeriais – entre os quais, várias vezes, o de Ministro da Justiça (noutra pasta celebrizou-se pelo famoso discurso sobre a necessidade de poupar a “gasolina que queimamos nos radiadores dos nossos automóveis”, mas esta boutade parece-me de somenos).
Como Ministro da Justiça, foi o encarregado, ou encarregou-se, de surgir na televisão, há-de haver vinte e oito anos e meio, para responder a crescentes preocupações internacionais, jurando solenemente que em Portugal não havia presos políticos – e que isso eram campanhas da reacção.
Nessa data em que assim solenemente o afirmou julgo eu que existiriam, amontoados a trouxe mouxe nas prisões portuguesas, vários milhares de pessoas que não poderiam ter outra classificação que não essa – presos políticos, engavetados as mais das vezes por simples presunção do que seria o seu pensamento, sem que acto algum lhes fosse imputado e sem que o encarceramento tivesse sequer qualquer simulacro de cobertura jurídica.
Entre esses presos estava também um jovem assistente universitário, de nome José Miguel Alarcão Júdice.
Disso não te lembras, José Miguel?


Cruel dilema

Pela ordem normal dos acontecimentos, as próximas eleições em Portugal serão as eleições europeias de 2004.
Deste modo, a incógnita mais relevante, em termos de equilíbrio interpartidário, e com relação directa a estas eleições, será saber se os partidos governamentais se apresentarão em lista conjunta ou em listas separadas.
Paulo Portas tentará que haja listas conjuntas: dessa forma diminui os riscos de humilhação, e o certo é que pode sempre defender essa via como a mais consentânea com a existência de uma coligação a nível de governo. Terá no entanto que enfrentar algumas resistências a nível do PSD, tanto maiores quanto o cabeça de lista provável será Pacheco Pereira, que não morre de amores por tal solução.
Concorrendo PSD e CDS numa lista única, terão Manuel Monteiro, convencido que é a sua oportunidade e que pode fazer a diferença, a morder-lhe os calcanhares.
Concorrendo PSD e CDS em listas separadas, terá Paulo Portas que lançar para a arena, à última hora, um sacrificado qualquer, e fazer depois um penoso esforço de equilíbrio entre as responsabilidades da coligação e a necessidade de mostrar alguma coisa que diferencie a sua lista da outra do PSD.
Entretanto, a morder-lhe os calcanhares, estará Manuel Monteiro, convencido que é a sua oportunidade e que pode fazer a diferença.
Sempre é verdade que o partido de Manuel Monteiro foi criado a pensar nestas eleições europeias.

Compensações

Apreciando alguns dos seus camaradas, como eventuais secretários-gerais do PS, refere-se Carlos Candal em termos elogiosos a António Vitorino, que segundo ele “é um homem de grande categoria e porventura o homem mais inteligente e com maior cotação do PS”.
Fundamentando melhor, explica que António Vitorino “apesar de ser um “zé ninguém” em termos físicos, é um tipo que se impõe e sabe estar”.
Nós também já tínhamos notado: quando um homem tem uma perna mais curta que a outra, a outra é sempre mais comprida.



Chuva em Novembro, Natal em Dezembro

Na capa de “O Diabo”, ouve-se o vozeirão de Carlos Candal sentenciar definitivo: “Ferro, para além de feio, não tem garra”.
(Ele há gente assim, bonita e cheia de garra).
Abre-se o jornal, e o homem também se abre.
Questionado sobre se pensa que a actual direcção do PS “não tem futuro político”, não diz sim nem não, mas diz isto: Ferro (...) “tem contra si o facto de não ser carismático. Para além de ser feio, não tem garra. Um líder tem que ter outro fulgor, brilho, categoria ostensiva, e Ferro Rodrigues tem lacunas nesse terreno. E o elenco que o acompanha ninguém sabe muito bem quem é”.
Para quem não entendesse a resposta, proclama enfático logo mais à frente, interrogado sobre as diferenças entre guterrismo e ferrismo: “ainda não há ferrismo e não vai haver”.
Com tudo isto, o que falta então para que seja consumada a sucessão? Candal, um passo atrás, analisa os eventuais sucessores e esclarece essa dúvida: “penso que é uma questão de oportunidade”.
Fica clarinho, pra militar entender: à primeira oportunidade, vai o Ferro prá sucata.

LETREIRO

Tudo o que sou o sou por obra e graça
da comoção rural que está comigo.
Foi a virtude lírica da Raça
a herança que eu herdei do sangue antigo.

Foi esta voz que em minhas veias passa
e atrás da qual, maravilhado eu sigo.
Como um licor de encanto numa taça,
assim se quer esse condão comigo.

Olhai-me: - Eu vim de honrados lavradores.
De avós e netos, sempre os meus Maiores
fitaram o horizonte que hoje eu fito.

«O que estaria além da curva estreita?»
- E da pergunta, a cada instante feita,
nasceu em mim a ânsia p'ra o Infinito.



ANTÓNIO SARDINHA (in "A Epopeia da Planície")

sábado, agosto 09, 2003

Recordando o saramago

Quando o Manel se fez gente, saramago era nome de erva ruim.
Praga, que infestava as searas e definhava o trigo. Pela Primavera, bandos ruidosos de moçoilas, armadas de pequenos sachos, dispunham-se em linha, ombro com ombro, seguindo os regos das searas verdejantes, e marchavam em ordem militar, avançando dobradas, rego a rego, arrancando o saramago e outras ervas daninhas.
Riam e cantavam, cantavam sempre.

(“Mondadeira alentejana
lenço de todas as cores
vai mondando e vai cantando
cantigas aos seus amores.

E um dia mais tarde quando
chega a ceifa – que alegria!
vai ceifando e vai cantando
passa mais depressa o dia
”).

Agora saramago é nome de escritor – prémio Nobel, ou lá o que é...

Católico e de Direita

Encontrar nos tempos que correm um católico católico (isto é, que não seja protestante) e de direita direita (isto é, que não alinhe pela direita curva) é coisa mais rara que água no deserto.
Explorando a blogosfera topei com um, sólido, de doutrina firme e segura. A quem lhe interesse estudar a espécie, recomendo o Católico e de Direita. Recomendava-o sobretudo a bispos progressistas e a clérigos modernaços, mas já sei que é inútil: enquistados na sua convicção teológica básica (Deus é bom, mas o Diabo também não é mau), fugiam logo a sete pés.
Para quem pretenda ir mais longe na web, recomendo uma excursão a França: o DICI, muito bem documentado e actualizado, de orientação tradicionalista.

Diálogos na Blogosfera

I - ACR, amigo, não compreende a minha postura de exilado, e puxa-me as orelhas. Eu sei que não compreende. Mas acredite: exílio não é obsessão, muito menos vanglória. É exílio mesmo. Coisas da vida. No momento próprio, quando Deus quiser, tudo ficará claro. Até lá, continuamos assim – cada um seguindo na faixa de rodagem que lhe foi superiormente destinada.
II - O Anarcaconstipado, observador, faz-nos um reparo certeiro: aqui (dos outros não digo nada, que cada um sabe de si) não se fala de mulheres. Acontece que é verdade. Manuel Azinhal, por educação, pudor, ou respeito, nunca gostou de falar de mulheres. Adolescente ainda, quando a rapaziada, levada pelas borbulhas, encaminhava a conversa para esse lado, cá o Manel abstinha-se de participar. E mantém-se assim: não fala de mulheres, e sente mesmo que isso não lhe fica bem.
Tal não resulta de não gostar das ditas; pelo contrário, o Manel gosta muito – de todas.
Concluindo, o blog nesse aspecto continuará no mesmo rumo: aqui não se fala de “mulheres”. É como um conhecido clube: menina não entra.
Observa ainda o anarca que não gostamos de maricas. Neste ponto o diálogo torna-se mais delicado. E nem vamos entrar em grandes explicações, que não é este o lugar adequado. Mas veja bem o Anarca, nestas horas de pedofilias e aberrações várias, aqueles festivos desfiles do orgulho gay. Veja, e medite. De que têm eles orgulho? Até onde conduzirá “aquilo”?
Não há muito, numa dessas manifestações, em Nova York, uma palavra de ordem furiosamente gritada era “sex before eight – before its too late”. Ficamos por aqui.

Foi há 58 anos

Deve ser próprio das épocas de confusão, e de fim de ciclo, que todas as atenções se centrem sobre irrelevâncias (o sexo dos anjos) e aquilo que importa fique esquecido, para não perturbar a discussão (ou a digestão).
Só isso explica que passasse em silêncio total mais um aniversário do lançamento das duas primeiras bombas atómicas, em Hiroshima e Nagasaki.
A esquerda não gosta de falar disso: o assunto é desagradável, mas afinal as bombas tiveram justa causa, tratava-se de acabar com o fascismo militarista japonês. Foram bombas boas.
A direita curva, sempre temerosa de incorrrer nas excomunhões da esquerda, também não gosta de falar nisso. O assunto é desagradável, certo, mas se a esquerda diz que foi preciso... e afinal quem lançou as bombas foram os americanos, esses generosos e intrépidos defensores da democracia e dos direitos do homem. E estes beneficiam de imunidade.
Os mortos, esses, não falam.
Mas há silêncios que gritam.

sexta-feira, agosto 08, 2003

Grande Alentejão!

Convicto militante identitário, partidário entusiasta do enraizamento comunitário, alérgico à lógica do nivelamento cultural e da indiferenciação mundialista, todo ele terra e povo, assim é o Manel Azinhal.
Pensa que na fidelidade reside o segredo da renovação e do futuro.
E para lá do pensamento existe o sentimento: é um alentejano fundamentalista. Tudo somado, foi com deslumbrado êxtase que se passeou pelo Alentejão.
Belíssimo! Todo o fascínio da planície heróica numa página só.

quinta-feira, agosto 07, 2003

Paulatim, sed firmiter

Nos meus tempos de Liceu Nacional de Évora, e desde muitos anos antes, era ele uma das lendas da casa. Não havia aluno que não conhecesse, e não temesse, o Velho Coruja. Pontificava na sua área de Português e Latim, onde já tinha marcado gerações de estudantes, e as pautas não enganavam quanto às razões do temor: oito, oito, oito, um novezinho a um rapaz em que ele via esperança de salvação, oito, oito, oito, lá vinha um dez a alguém que nas outras estava habituado a ter quinze, oito outra vez....
Poucos, porém, conheciam o nome: o epíteto de Velho Coruja, que o rapazio lhe tinha posto sabe-se lá porque motivos, tinha-se-lhe colado de tal maneira que saía mesmo a quem queria evitá-lo – coisa que o deixava, como agora se diz, à beira de um ataque de nervos. Certa vez a mãe de um colega resolveu telefonar-lhe, para saber novas do rebento, directamente da fonte, e vai daí começou a conversa com um “Sr. Dr. Coruja”... que estragou logo o contacto. A senhora nunca nos tinha ouvido outro nome, e tinha-o como o verdadeiro.
Aqui o Manel, que era curioso, e que sempre foi do contra, simpatizava com a personagem. Fixou que ele se chamava Barros Ferreira, Joaquim José Barros Ferreira, e era transmontano. Mais tarde, quando a confiança o permitiu, passou a manter diálogo com ele, e por vezes até a acompanhá-lo nos seus longos passeios a pé à volta da cidade (conselho médico, que ele seguia escrupulosamente, pendular como um relógio).
Formado no seminário, conservava uma religiosidade profunda, presente em todos os momentos. Rigoroso, levava a peito a tarefa ingente de transmitir às nossas jovens cabeças os rudimentos da Língua, o sentido das palavras, os étimos, as regras... as orações, o estilo, a retórica – bem falar e bem escrever, coisa em que punha todo o seu empenho e em que via a mais alta importância.
Na altura parecia não ter muito êxito, e não era muito popular. Pudera: não havia memória de alguma vez ele se ter atrasado, ou ter concedido um feriado uma vez que fosse... Lembro-me que em certa ocasião uma inusitada agitação e expectativa chegou a dominar a malta: tinha-se sabido, por vias travessas que desconheço quais fossem, que casava uma sobrinha do Coruja, ao que parece em Alcácer do Sal. Dada a sua religiosidade e dedicação à família o Coruja não iria faltar ao casamento. E dada a distância não era possível que ele comparecesse para a nossa aula.
Mas foi: às treze horas e trinta minutos em ponto, quiçá com um atraso de alguns segundos, surge o Coruja, afogueado, com um passo mais apressado que o costume, perante o pasmo da turma reunida à porta da sala, preparada para romper em manifestações de júbilo mal o senhor Francisco desse o segundo toque. E a lição aconteceu, exactamente como nos outros dias ("oh meus amigos, meus amigos, isto assim não pode ser...").
Ainda hoje estou para saber como foi que ele compatibilizou as duas obrigações. O vetusto carocha cinzento em que costumava transportar-se, e o seu respeito pelas normas limitadoras da velocidade, não lhe permitiram de certeza voar entre Alcácer (parece-me que era Alcácer) e Évora. Estou em crer que impôs aos noivos uma hora que lhe permitisse a ele estar presente na cerimónia religiosa e sair dela directamente para o Liceu de Évora, a tempo de não nos faltar com a prelecção.
Confesso hoje que aprendi muito com as exigências do velho mestre. Relembrei, agora, aquilo que encimou esta incursão pelas memórias da adolescência, e que reli há momentos num escrito dele que jazia por acaso entre papelada amontoada e amarelecia. “Paulatim, sed firmiter”.
E por aqui tenciono continuar a blogar – devagar, cautelosamente, mas com firmeza.

Versos para um homem velho

O tigre no seu covil
Não é mais irritável do que eu.
O chicote não é mais silencioso
Que eu quando cheiro o inimigo
Torcendo-se no próprio sangue
Ou pendendo de prestável árvore.
Quando esgaravato o dente da sabedoria
O silvo sobre a língua dobrada
É mais terno que odioso
Mais amargo que o amor da juventude
E inacessível ao jovem.
Reflectido pelo meu olhar feliz
O idiota sabe que é louco
Digam-me se não devo estar contente.

T. S. Elliot (tradução de Fernando Guedes)

Frederico von Hayek em Lisboa

A minha geração, pensando num conjunto de gente mais ou menos da mesma idade unida por alguma comunhão de ideias, conhecia, por alto, o pensamento de Hayek, e tinha a noção da sua importância. Afinal o homem até tinha recebido o prémio Nobel da Economia, poucos anos antes.
Mas naqueles anos de brasa da ressaca revolucionária a prioridade ia toda para o combate imediatamente político, pelo que o autor interessava sobretudo enquanto crítico do socialismo global.
Fazia-se, por assim dizer, uma instrumentalização ditada pelas circunstâncias, que eram as do rumo obrigatório para o socialismo, constitucionalmente imposto e culturalmente asfixiante.
O mesmo acontecia, aliás, com autores como Karl Popper, ou Raymond Aron, ou mesmo Konrad Lorenz e a sua Etologia, omnipresente em todas as nossas publicações da época enquanto inimigo das utopias igualitaristas, do optimismo antropológico, das ideias base em que assentavam as certezas da esquerda institucionalizada.
Era o tempo de recordar em jeito de provocação que, tal como para comprovar que a água do mar é salgada não é preciso bebê-la toda, para verificar os malefícios do socialismo não é preciso socializar toda a economia – basta socializar uma parte.
Quem se dedicava efectivamente ao estudo e à divulgação da obra de Hayek era o Orlando Vitorino. Em guerra acesa ao socialismo, e em afirmação do liberalismo em que acreditava, o Orlando veio a traduzir, a prefaciar e a editar o “Caminho para a Servidão”, edição essa que julgo de todo desaparecida hoje em dia.
Mais tarde, no prosseguimento da sua reflexão filosófica, viria o Orlando a publicar a “Refutação da Filosofia Triunfante”, e passado mais algum tempo a “Exaltação da Filosofia Derrotada”, oferecendo a todos o fruto do seu pessoalíssimo labor.
Para lançamento da edição do “Caminho Para a Servidão”, e em desafio ao socialismo oficial, o Orlando conseguiu trazer a Lisboa o renomado prémio Nobel. A visita passou discreta, o escritor ignorado pelos media e pelos círculos do poder cultural instituído. Silêncio total.
Lembro-me dele na conferência do Grémio Literário, e no debate que se lhe seguiu.
Era um cavalheiro idoso, calmo e afável, de modos delicados e aparência cuidada.